Opinião

Artigo | Em fala de fim de ano, Bolsonaro empurrou “bronca” da covid-19 para Deus

Jornalista comenta a transmissão de fim de ano do presidente Jair Bolsonaro e da primeira-dama

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
O presidente e a primeira-dama em transmissão de final de ano: retrospectiva de 2020 e a questão da pandemia - Reprodução

Um luxo que me dou por estar fora da redação e não ter um editor me dando bafo na nuca para terminar uma matéria: vez ou outra, caminho pela cidade de Porto Alegre, onde moro, ouvido no que as pessoas estão conversando nas filas.

Também gosto de ligar para fontes que tenho espalhadas pelo Brasil e países vizinhos, especialmente o Paraguai, só para jogar conversa fora. E às vezes dou uma passada em uma delegacia de polícia para conversar com o delegado ou o chefe de investigação.

No dia seguinte ao Natal, descobri que um delegado da velha guarda e amigo de longa data estava de plantão. Como andava havia dois dias com a luz do indicador de gasolina acessa, fui abastecer e aproveitei para passar pela delegacia e cumprimentar o meu amigo delegado.

Ele é dono de um vocabulário antigo, chama bandido de meliante. Não perguntei. Foi ele quem falou no meio da conversa. Perguntou se eu tinha ouvido a mensagem de fim de ano do presidente Bolsonaro. Respondi que sim. Ele, sem alterar o tom de voz, disse: “Ele empurrou a bronca da covid para Deus”. Respondi com um “pois é, né?” Enveredamos para os assuntos do futebol.

A nossa conversa durou uma meia hora. Se não houvesse a pandemia provocada pela covid-19, ela não passaria de cinco minutos, porque em tempos normais, nessa época do ano, os plantões nas delegacias ficam cheios de gente, principalmente bêbados. Antes de seguir a conversa, uma explicação para quem não é jornalista. Até os anos 80 era muito comum se ouvir nas delegacias de polícia a palavra “bronca” como sinônimo de autoria de crime.

Os policiais falavam em “empurrar a bronca” no sentido de fugir da autoria. Como já disse, assisti à mensagem de fim de ano do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e da primeira-dama Michelle. Depois da conversa com o delegado, eu assisti à mensagem novamente. Em nenhum momento ouvi o presidente ou a primeira-dama mencionarem qualquer coisa relacionando a covid-19 com Deus.

O Brasil não está entre os países que estão vacinando a população devido à confusão causada na área da saúde pública e ao negacionismo do presidente em relação ao vírus

Diferentemente das mensagens de fim de ano de outros presidentes, como Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP), Bolsonaro fala em abundância o nome de Deus. Foi assim na mensagem do ano passado (2019). A respeito da pandemia, Bolsonaro falou de maneira burocrática dos desafios que ela trouxe para o Brasil e das soluções adotadas pelo seu governo para resolver o problema. Onde o delegado viu “bronca” na conversa do presidente?

Liguei para um amigo comum que temos – os dois são parceiros de pescaria. E perguntei o que andava preocupando o delegado. Ele me disse que ultimamente ele não parava de falar na vacina para a covid-19. Então, quando o delegado falou sobre a “bronca”, estava me pautando. Para quem não é jornalista, no jargão dos repórteres, “pautar” significa sugerir que se faça uma matéria a respeito daquele assunto.

A pauta do delegado, porém, não era sobre o que disse o presidente. Mas sobre o que ele não disse na mensagem. E que nós jornalistas não cobramos com a veemência que o assunto merece. Pela maneira como Bolsonaro falou do vírus, parece que ele é presidente de um outro Brasil. Não do Brasil onde a covid está matando quase mil pessoas por dia, fazendo crescer uma lista que já soma mais de 190 mil mortos.

Em que os brasileiros convivem diariamente com o medo de ser a próxima vítima do vírus, enquanto assistem à população de vários países, como Grã-Bretanha, Estados Unidos, Canadá, México, Argentina e Equador, ser vacinada.

A falta de um plano de vacinação da população não só estressa os brasileiros como também causa um enorme dano na retomada da economia

E esperam ansiosamente por uma notícia concreta sobre quando também serão vacinados. O Brasil não está entre os países que estão vacinando a população devido à confusão causada na área da saúde pública e ao negacionismo do presidente em relação ao vírus – há uma imensidão de matérias sobre o assunto na internet. Tenho escrito e vou repetir.

Os repórteres, especialmente os jovens que vivem na correria das redações fazendo a cobertura dos acontecimentos diários, precisam encontrar um tempo para andar sem destino pela cidade ouvindo as conversas das pessoas. Os brasileiros estão com os nervos à flor da pele com a demora da vacina.

Cada vez que o presidente ou o seu ministro da Saúde, o general da ativa do exército Eduardo Pazuello, falam sobre o assunto, não dizem coisa com coisa. Não são objetivos, estão perdidos no meio da lambança que foi transformado o caso da vacina.

Arrematando a nossa conversa. A falta de um plano de vacinação da população não só estressa os brasileiros como também causa um enorme dano na retomada da economia. O que significa o aprofundamento do desemprego. Tenho dito nas minhas conversas online com colegas e professores de faculdades de jornalismo que é necessário esse tipo de análise começar a aparecer nos noticiários diários, principalmente das rádios e TVs abertas.

Sei que o repórter faz um texto de cinco ou seis linhas sobre os acontecimentos. Mas é possível inserir uma frase alertando o leitor para a gravidade do problema, principalmente a questão da vacina. A paciência das pessoas com as lambanças do presidente Bolsonaro no caso da vacina da covid-19 está se esgotando.

Quem duvidar é só sair pela cidade gastando sola de sapato e saliva para conversar com as pessoas. As pessoas comuns precisam ser ouvidas sobre o que está acontecendo, para falarem o que pensam sobre o assunto. É importante.

* Texto publicado originalmente no site Histórias Mal Contadas

** Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.

*** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Leandro Melito e Katia Marko