Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | Agora que mudou o ano, a gente vai lembrar da solidariedade para 2021?

"A solidariedade em 2020 nos mostrou que com muito pouco, mas com boa vontade, é possível fazer muito"

Brasil de Fato | Porto Alegre |
“A ‘ordem’ social injusta é a fonte geradora, permanente, desta ‘generosidade’ que se nutre da morte, do desalento e da miséria", Paulo Freire. - Foto: Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire - RJ

2020 foi um ano de muitos aprendizados. Uma frase atribuída a Dalai Lama diz que “A tragédia deve ser utilizada como uma fonte de força”, pois bem, a força que surgiu da tragédia do coronavírus foi a solidariedade. 

O último ano nos ensinou a importância do cuidado com o próximo. Nos reconectou com o coletivo, nos ensinou que cuidar do outro é cuidar de si. Que não existe “EU”, isolado. Mostrou, de forma nem um pouco amigável, até para os mais individualistas que não é possível superar o caos sozinho, que viver em sociedade é pensar no outro. Foi um ano que ressignificou a existência em coletivo. 

Nos primeiros meses, viralizou nas redes sociais vídeos de pessoas chamando atenção de outras por não utilizarem máscaras em espaços públicos. O medo, pelo eu e pelo nós, fez com que, inclusive, a responsabilização e cobrança sobre desconhecidos passasse a ser socialmente aceita. 

No entanto, aos poucos a relativização da tragédia foi ganhando espaço. Primeiro com mentiras, remédios e curas milagrosas. Depois com a desvalorização de quem está na linha de frente lutando para que o caos termine o mais breve possível, afinal, “essa vacina é coisa de esquerdopata”, esses cientistas  “são tudo vagabundos comprados pela China”. De pouquinho em pouquinho o individualismo vai ganhando pé outra vez e se sobrepondo à coletividade. 

A tentação de um “rolê” passa a ser cogitada e, aos poucos, experimentada, afinal “já me expus em tantas outras ocasiões, indo no mercado, no ônibus, indo trabalhar…”. Só ver minha família no final de semana, e de pai e mãe, passa a ser um churrasco com tios e primos. Fim de ano então, reúne vó, vô, talvez até aquele amigo que ia passar sozinho… 

Quando percebemos, estamos xingando o influencer bolsominion na internet enquanto no cotidiano promovemos nossas próprias aglomerações, sem perceber que já acabamos aderindo a esse movimento negacionista. Quando a gente já cansou de todo aquele ritual de higienizar tudo o que vem do mercado, de trocar a roupa ao chegar em casa e colocar a roupa que usou na rua pra lavar. Quando a gente passa a usar a máscara somente em espaços fechados em que é obrigatório (lojas, supermercados, farmácias, ônibus), ou para falar com pessoas que a gente sabe que se cuida, mas na primeira oportunidade de tirar a máscara, tiramos!

Ninguém aguenta mais a máscara, isso é certo. A gente sequer se importa mais com o manuseio correto dela. Aquele, ensinado lá no início da pandemia, lembram? Higienizar as mãos antes de tocá-la para não contaminar, trocar as descartáveis a cada duas horas, botar a de pano para lavar cada vez que for utilizada, não deixá-la pendurada na orelha ou em baixo do queixo e cobrir bem o nariz. 

Pois é… parece que com a naturalização do caos e das mortes, perdemos o medo, parece que sequer nos importamos mais. A narrativa do “ano perdido” é algo que parece já estar impresso em nossas mentes.

Obviamente não busco aqui, nem de longe, romantizar a pandemia pelos seus “aprendizados”. Agora que mudou o ano, é preciso, no entanto, olharmos para as contradições que se acirraram nesse processo e que ficaram expressas no comportamento da população: O caos veio, a solidariedade e as saídas coletivas foram o que apontou um sul para a crise nos primeiros meses, aos poucos, conforme o caos foi deixando de ser novidade a narrativa do individualismo veio com força em disputa à hegemonia.

A luta pela redução dos efeitos econômicos se sobrepondo a luta pela redução dos efeitos sociais. Ainda que no sistema em que vivemos não deveria surpreender que o dinheiro se sobreponha à vida. A pandemia deixou isso ainda mais explícito, ressaltou que o Estado e o empresariado tratam a vida humana como descartável, nesse sentido se torna necessário que se fomente ações coletivas de solidariedade como os movimentos sociais vêm fazendo. É importante que se cultive a construção de valores comuns de solidariedade visto que o individualismo não resolve problemas coletivos. 

A solidariedade em 2020 nos mostrou que com muito pouco, mas com boa vontade, é possível fazer muito. O cuidado com o próximo nos fez ter paciência para nos cuidarmos. Essa solidariedade, no entanto, não pode e não deve tomar o lugar do poder público. A solidariedade deve ser laços comuns entre o povo para enfrentarmos a crise juntos. Etapas, da construção coletiva de um novo mundo. Não pode ser confundida com a filantropia individualista, para aplacar a consciência pequeno burguesa.

É importante que seja lembrado que ação individual não substitui política pública. A luta contra a fome passa por políticas de distribuição de renda, somente através dessas políticas - Bolsa família, auxílio emergencial, a tão sonhada renda básica, universal, de cidadania, -  que é possível alterar a ordem social injusta, para que a “generosidade” não precise existir. A solidariedade ativa passa por essas lutas. A filantropia alimenta o ego, mas é a solidariedade ativa que liberta.  

O novo ano chegou e a pandemia não acabou só porque o calendário mudou quando o relógio deu meia noite. O coronavírus ainda está circulando, sofrendo mutações. A vacina não chegou, e para termos previsão de chegada precisamos contar com a boa vontade de prefeitos e governadores, já que o presidente virou chacota internacional por declarações de que a vacina transformaria as pessoas em jacaré. 

Os tempos difíceis não se extinguirão sem o cuidado coletivo, sem a solidariedade. Não a solidariedade assistencialista, mas a solidariedade ativa, política. 

É preciso que os laços que nos uniram quando a pandemia começou, sejam mais fortes que o individualismo, o cansaço e o descaso. É preciso lembrar constantemente que a "boa ação", a "generosidade" de ocasião, não resolvem o problema da desigualdade e da fome. O que resolve é política pública, e nesse momento, ser solidário é lutar por sua implementação. 

* Bacharela em Ciências Sociais - UFRGS; Mestranda em Estado Gobierno y Políticas Públicas - Flacso.

 

Edição: Katia Marko