Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | De contrabando

"Desculpe minhas palavras misturadas, na fronteira falamos assim porque nascemos no meio de los dois idiomas"

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Na fronteira, los donos do mundo desenharam el horizonte em cima de nossa rua e decretaram que nós não podíamos derreter los mapas" - Nico Barreiro /Divulgação

Eu nasci en la fronteira do Uruguay con o Brasil. Minha família, mis amigos e meus vizinhos, falam misturando as palavras do português con el espanhol. O portunhol é a minha língua materna. Cuando eu estava na barriga de minha mãe, já escutava el mundo entrelaçado. Os sons e o silêncio da fronteira na barriga da minha mãe! Despois, na época da escola, me fizeram acreditar que nós, que falamos misturado, éramos pobres, sujos e burros. Eu não sei se el resto del mundo pode sentir cuando alguém te diz que tus palavras não tem sentido, é como se nos dissessem que nosso coração não presta e que para ter vida, temos que se conseguir uno nuevo.

Las palavras são las únicas coisas que temos. Pensamos, sonhamos, recordamos, sofremos nas palavras, e quando algum dono da língua nos diz para falarmos como eles, nos vemos entristecidos, porque se nos muda nossa lingua, já não saberemos que somos.

Contrabandistas de palavras! Corremos da policía do idioma. Sentimos las balas do dicionário zunindo nos ouvidos. Desviamos das flechas de la gramática. Tropeçamos en los acentos. Nos colidimos contra las regras de concordância. As pessoas que nos vêem passar, nem imaginam que tentamos nos salvar da P.M lingüística, porque se eles nos tiram la língua, não seremos mais. Se nos encontram, vão querer corrigir nossos sons, lavar nossa língua e apagar la música de la infancia, para que deixemos de ser fronteira e passemos a ser de un solo país, monolingüe, fácil de entender como las definiciones de um dicionário.

Eu pergunto para os donos das palavras: En que língua falamos na fronteira? Na língua que nos ensinaram na escola ou en la língua que nossas mães cantavam para nós antes de dormir? Materna vem de mãe. Do idioma materno são las palavras de afecto, da ternura, da emoção. Não podemos pensar nem narrar nosso passado sem elas. 

Na fronteira, los donos do mundo desenharam el horizonte em cima de nossa rua e decretaram que nós não podíamos derreter los mapas. Determinarm que a comida de lá não podia encher os pratos daqui e que aquela gente tinha uma tristeza diferente da nossa. Como se la fronteira fosse um defeito do mundo, os reis mandaron seus soldados imporem que os países não podem dividir la comida e que la pátria é monolingüe, e que dentro das linhas de um povo, todos devem falar e escrever igual, e que temos que se apagar essas palavras e substituir por outras mais limpas para deixar de ser projeto de gente, resto de vida, sujeira que fala.

Desculpe minhas palavras misturadas, na fronteira falamos assim porque nascemos no meio de los dois idiomas. 

Cuando eu estava na barriga da minha mãe, já me alimentava de arroz brasileiro. A água era uruguaia, alguna fruta também, mas o arroz, o azeite, o feijão … quase tudo o que se podia comer, era brasilero. Por isso, el contrabando sou eu. Minhas partes estão feitas de pedacinhos de Brasil e Uruguai. Sou das duas partes. E o ar que eu respirava? De que país seria? 

Eu tinha quinze anos e cruzava el puente na minha bicicleta. Eu não sabia – ainda - que era um contrabandista, un malandro, ilegal, vende pátria, rompe idioma. Eu só pedalava no mormaço da fronteira, fazendo força nas subidas, para buscar azeite, arroz, erva, para que meus pais vendessem en el armazém que nós tínhamos en el barrio. 

Minha mãe me dava a lista de lo que eu tinha que trazer: “Fabi, da frutería: traz banana, tomate, batata blanca; do super 300: traz una mortadela e un pacote de pão de cachorro-quente”, e assim sempre. Pedalando por la fronteira, “cuidado con los carros nas esquinas”.
Cuando tinha dezoito anos, comecei a dirigir la moto, una Honda 125 con cinco marchas, e comecei a fazer as compras maiores,foi aí que minha mãe que me dice: “olha quem está en la cabecera del puente, se é o Bigode, volta para casa”. 

A primera vez que me tiraram tudo, eu descubrí que esas ruas cheias de gente: “entre, moça”, “entre, pergunte que não tem problema”, esas calçadas cheias de cestas con roupas, eran otro país, e que eu tinha que me cuidar de las aduanas. 

Cuando era pequeno, eu me atirava en el pasto e olhava pra cima, abria los ojo e no veía nenhuma linha dividindo os países. Eu observava e era todo liso azul. Que azul é Uruguay e que azul é Brasil? Eu olhava os pássaros. Se darán cuenta que estão cambiando de país, ou para eles el aire é todo suave?

Perdão que eu tire pra cualquier lado. Mas é que la ravia desorienta. É como uma névoa en la boca. Porque os ricos não tem fronteira. La aduana é só para os pobres. Los estanceiros, os parentes del deputado, eles passam de un lado pra otro como se tivessem las chaves de los países.

Cuando uno pasa los dias sin comer, enchendo los pulmões con mate amargo, enganando el estómago, e de repente encontra um pedaço de pão, não fica perguntando de qué país é… não importa de onde vienen ese macarrão, ese tomate… “em panela de pobre, tudo é tempero”. 

De qué lado somos los fronteira? Del Brasil e sus olhos fechados? Ou de Uruguay e seus silencios? Se querem me sacar tudo lo que tengo de contrabando, vão ter que desarmarme, poner los brazos en un lado, la língua en otro, o coração..., porque cada parte de meu corpo, tem um pedacinho de cada país. O contrabando sou eu.   

Las personas não podem se despedaçar nem por una aduana no coração. Somos fronteira: olhares de dois países, pernas falando várias língua, sangre caminhando intreverada.

Tal vez nem sabemos que es la frontera. Tal vez, sejam varios lugares, uma forma de olhar, una mancha num mapa ou um estuario onde la água dulce del río se mistura com a agua salgada do mar e crescem os fronteira, esa espécie de vida que no brota en otro lugar. Somos um país tropical pero con frío, onde não sabemos qué tipo de terra amassamos, e el río es agridulce. Não somos una definición, somos una nuvem de gente. Tal vez la fronteira não seja.

Desde menino, eu vou fazer compras no Brasil. Sempre acreditei que estava trabalhando, ajudando meus pais a sobreviver, não sabía que eu era um fora da lei. Qué lei tenemos los fronteira? Los pobres só conhecem la lei del estómago. Minha mãe, una de las vezes que fue me buscar na policía, me dice: “no te preocupes, Fabi, vos no sos un vende patria, porque nuestra patria é um prato de comida”. 

*Fabián Severo (URU) é escritor e professor de Literatura. Atualmente, coordena oficinas de redação e é assistente acadêmico de Letras do Projeto ProArte da ANEP CoDiCen. É autor dos livros “Noite nu Norte. Poemas en Portuñol” (2010), “Viento de nadie” (2012), “NósOtros” (2013), “Viralata (2015) e “Sepultura” (2020). Com “Viralata”, recebeu, em 2017, o prêmio nacional de literatura do Uruguai. Parte de sua obra já foi publicada no Brasil, Argentina, Cuba, Espanha, Canadá e Estados Unidos. Ele é um dos convidados do evento "Noite das Ideias", promovido pela Aliança Francesa.


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Edição: Katia Marko