Pernambuco

ARMAMENTO

Número de armas em circulação explode e comércio para atiradores cresce no Recife

No estado, solicitações posse e porte de armas saltaram de 1.171, em 2018, para mais de 10 mil no ano passado

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Especialistas em segurança alertam para os riscos desse estímulo ao armamento - Divulgação/Pixabay

Vocacionada ao comércio desde sua fundação, a cidade do Recife tem testemunhado o crescimento do setor que mais recebe estímulos do Governo Federal. Entre 2018 e 2020, pelo menos 15 estabelecimentos destinados a armas e munições receberam da Comissão de Controle Urbanístico (CCU), órgão vinculado à Secretaria de Política Urbana e Licenciamento da prefeitura, autorização para se instalar, especialmente, em bairros da zona sul e do centro da cidade.

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A ampliação de ofertas de armas e munições, e também de estabelecimentos para a prática de tiro, é reflexo da política do governo Bolsonaro, que nos últimos dois anos publicou uma série de normas que não dependem da aprovação do Congresso Nacional, apontam especialistas. Esse termômetro tem gerado preocupação em relação à segurança pública da capital.

Foram pelo menos oito decretos que facilitaram o acesso da população a armamentos. O resultado dessas medidas de flexibilização em Pernambuco foi o aumento dos pedidos de posse e porte de armas seguindo uma tendência nacional. No estado, essas solicitações saltaram de 1.171, em 2018, para mais de 10 mil no ano passado, segundo dados da Polícia Federal.

No Recife, o processo de abertura desse tipo de estabelecimento é relativamente simples. Após cadastro do CNPJ na Junta Comercial de Pernambuco (Jucepe), o próprio sistema trava o registro até que haja uma autorização que começa no âmbito municipal. Segundo a Secretaria de Política Urbana e Licenciamento, o interessado deve entrar com um processo de viabilidade pela internet.

“Há alguns parâmetros no caso específico dos clubes de tiro, como a vizinhança ser mais de 50% de imóveis não-residenciais. O que cabe à prefeitura é analisar essa viabilidade urbanística. Mesmo que tudo esteja dentro das especificações urbanísticas, esse tipo de projeto ainda tem que passar pela aprovação na CCU. A comissão é paritária, formada por representantes da prefeitura e da sociedade civil”, explica a pasta em nota.

Com a deliberação do CCU sobre o uso urbanístico, o processo fica a cargo do Exército, que é responsável por todas as demais exigências de segurança, acondicionamento de armas e munições, por exemplo.

Motivo de preocupação

Se por um lado o crescimento da demanda estimula o incremento na oferta, por outro, especialistas em segurança alertam para os riscos desse estímulo ao armamento como o agravamento de crimes e o desvio dos arsenais para o mercado ilegal. Pesquisadores e instituições que se debruçam sobre o tema também chamam a atenção dos poderes municipais e estaduais em relação à cautela com essas empresas de comércio de armas e munições, e de clubes de tiro.

A gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi, afirma que, na “instabilidade normativa” promovida pelo governo federal, o que mais chama a atenção é a regra que amplia para 60 o número de armas que um atirador pode ter. Entre os caçadores, atiradores e colecionadores, os chamados CACs, a pesquisadora acrescenta que a preocupação maior é com os praticantes de tiro esportivo que além de autorização para aumentar o arsenal podem carregar armas municiadas do trajeto de casa para o local de prática.

“Primeiro que manter um número desse de armas em casa aumenta e muito o risco de elas serem furtadas, afinal mesmo que o imóvel tenha câmeras de segurança, por exemplo, mas é uma residência. Há casos que foram usados explosivos em furtos de armas. Outra questão são as chances de agravamento de crimes, há a ideia equivocada que uma pessoa armada terá tempo e habilidade para reagir a um assalto, mas na verdade é muito provável que haja uma troca de tiros vitimizando terceiros”, diz Pollachi.

Babini adverte para ônus que recaem sobre municípios (Foto: Acervo pessoal)

A coordenadora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) em Pernambuco, e professora da Unicap, Érica Babini, concorda e pontua que esse risco e todo ônus da promoção do armamento “acaba ficando para o município”. “O poder executivo municipal não pode se arvorar e criar normas gerais porque se trata de uma lei federal, mas é factível que as prefeituras construam estruturas hermenêuticas por meio de portarias a fim de controlar melhor essas atividades envolvendo armamentos. É um debate que precisa ser feito, pois o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) vem há algum tempo sinalizando a autonomia de estados e municípios, como no caso da pandemia de coronavírus”, argumenta.

Tanto Babini quanto Pollachi destacam que estudos já provaram que mais armas circulando implica diretamente no aumento da violência. “O próprio Ipea já mostrou esse fato que se junta a outras variáveis como a falência do Estado, que abre mão do seu dever, aproveitando-se de uma sociedade sedenta por segurança e estimulando sua sanha punitivista”, pontua Babini.

Pollachi reforça que não é contra a prática esportiva do tiro, mas que não concorda com a falta de controle já que se trata de uma atividade de risco para sociedade. Ela conta que os primeiros dois anos de governo Bolsonaro foram de batalhas jurídicas e legislativas, o que não deve mudar muito em 2021.

“Tentamos abrir o diálogo com o governo federal, mas não foi possível. Então atuamos com ações no judiciário contestando a legalidade dos decretos e portarias, que garantiu que danos maiores fossem mitigados. Por outro lado, fazemos o acompanhamento de projetos legislativos. Dessa forma contribuímos para atender a vontade da maioria da população que em todas as pesquisas se coloca contra o armamento”, diz a gerente do Sou da Paz.