Rio Grande do Sul

MEMÓRIA

Artigo | Antonio Matte partiu e levou parte da história da luta pela reforma agrária

"Essas histórias não ficam registradas em lugar nenhum. A não ser na mente de pessoas como Antoninho"

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Marcha pela reforma agrária do MST na cidade de Palmeira das Missões (1985) - Olderige Zardo

Foi assim que aconteceu, no dia 11 de março, um sábado chuvoso de 1989, em Salto do Jacuí, pequeno município agrícola do interior gaúcho. Fazia uma semana que 1,5 mil agricultores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) haviam ocupado a Fazenda Santa Elmira. Homens, mulheres e muitas crianças haviam cavado trincheiras e adotados outros preparativos para resistir à ordem de despejo dada pelo juiz Ércio Costa Souza. Com mais de mil homens, a Brigada Militar (BM) mantinha o acampamento cercado. No final da manhã, todas as tentativas de negociação para uma saída pacífica dos agricultores haviam fracassado. Na época, o pior horário para os jornalistas trabalharem era no sábado depois do meio-dia. Por quê? Só havia jornal de papel e a edição de domingo fechava no início da tarde de sábado. Não existiam no Brasil celular, laptop e muito menos internet. Para o repórter enviar uma matéria para a redação era um horror. Primeiro, precisava redigir o texto em uma máquina de escrever. Depois sair à procura de um telex – uma enorme máquina de escrever que transmitia o texto através do telefone –, digitar a matéria e finalmente enviá-la para o jornal. O repórter fotográfico, por sua vez, tinha que revelar o filme e transmitir a foto por uma máquina chamada telefoto – que levava uma hora para enviar uma foto. Em caso de emergência, que era a nossa situação na Santa Elmira, se procurava um telefone e ditava-se a matéria para o copidesque – jornalista que revisava os textos antes de serem publicados. Em Salto do Jacuí havia dois telefones para 30 repórteres. Imaginem o rolo. Não era por outro motivo que os confrontos nos rincões sempre eram empurrados pelos brigadianos – como os gaúchos chamam os policiais militares – para sábados à tarde, porque os detalhes e as fotos do acontecimento só sairiam no jornal na segunda-feira.

O confronto entre os sem-terra e os brigadianos foi cinematográfico. Mais de 2 mil tiros foram disparados durante três horas. Um avião agrícola foi usado para lançar bombas de gás lacrimogêneo nos agricultores. Houve luta corpo a corpo. A história toda está contada nos jornais da época e no livro O Massacre da Fazenda Santa Elmira, escrito pelo frei Sérgio Görgen, que teve o rosto destruído a coronhadas de fuzil. Na noite de sábado, os agricultores estavam espalhados por hospitais, prisões e casas de parentes e amigos na região. Eu tinha que reconstituir a história entre a noite de sábado e a madrugada de domingo, porque as tropas da BM dificultariam a nossa locomoção na área no dia seguinte. Foi em meio a essa confusão que encontrei Antonio Matte, o Antoninho, como era conhecido. Liderança forte do MST, ele sempre atuava nos bastidores e estava dentro do acampamento na hora do confronto. Estava entre os presos da primeira leva retirada da Santa Elmira pelos policiais militares. Bloco de anotação e caneta em punho, perguntei para Antoninho o que tinha acontecido. Ele contou: “Eu e outros dois companheiros fomos colocados sentados em um formigueiro para confessar sobre quem tinha planejado a ocupação. Foi uma gritaria. Fomos colocados um por vez no formigueiro. Vi o sofrimento de um dos companheiros e falei para os brigadianos: quem sabe eu sento mais um pouco no formigueiro?”

Observador atento do que acontecia ao seu redor, ele me ajudou a fechar a matéria da Santa Elmira. Eu já tinha conversado com os brigadianos, fazendeiros e outras pessoas. Sentei para escrever o texto no final da madrugada de domingo com uma ideia bem completa do que havia acontecido. Durante os anos seguintes, sempre que topava com o Antoninho perguntava pelas formigas. Eu o conheci lá por 1985. Nascido em 1964, a geração dele teve três opções: lutar pela reforma agrária, se aventurar a povoar as novas fronteiras agrícolas do Brasil ou ir para cidade morar em uma favela e trabalhar nas fábricas de sapato do Vale do Sinos. A luta pela reforma agrária havia sido congelada em 1964, quando as Forças Armadas deram o golpe e derrubaram o governo João Goulart, o Jango, do antigo PTB. Na época, várias entidades lutavam pela reforma agrária, entre elas as Ligas Camponesas, de Francisco Julião, nos estados do Nordeste. E no Rio Grande do Sul havia o Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master). A luta pela terra foi descongelada em 1985, quando os militares saíram do governo e o país começou a se redemocratizar. O Master foi substituído pelo MST.

Nessa época, Antoninho era estudante do seminário em Frederico Westphalen, cidade agroindustrial do norte do Rio Grande do Sul. Foi lá que conheceu o frei Sérgio, já um calejado militante das causas populares. Deixou o seminário e entrou para o MST. Sem dificuldades ganhou o respeito de todos pela sua grande destreza em resolver os problemas. Por pior que fosse a situação, ele sempre tinha um sorriso. Nos anos 80, uma das táticas do MST era formar acampamentos para pressionar as autoridades pela reforma agrária. O acampamento de sem-terra é uma realidade muito dura para as famílias porque conviviam diariamente com real possibilidade de serem cercadas pela BM e retiradas do lugar. Foi em uma situação dessas que ele teve a ideia de formar frentes de trabalho com os acampados. As frentes atuavam na colheita de frutas, como maçãs, e em outras plantações. Essas frentes de trabalho, além de aliviar a tensão entre as famílias, traziam dinheiro. Aqui é o seguinte. Um dos focos da minha carreira de repórter é o conflito agrário (sem-terra/fazendeiro/polícia militar/índio/garimpeiro). E, por conta disso, fiz a cobertura dos principais confrontos acontecidos no Brasil e nos países vizinhos entre 1984 e 1996. É uma realidade dura de se trabalhar, principalmente no interior do Pará, onde, em 1997, aconteceu o Massacre dos Carajás, em que 24 sem-terra foram baleados e mortos por policiais militares. O repórter sempre relata o lado mais duro da luta para o leitor. Caras como o Antoninho nos contavam o lado humano dessa realidade. Uma vez ele me levou para conversar com uma acampada que durante o Natal colocava pedrinhas debaixo da tarimba – cama improvisada – dos filhos e inventava histórias sobre cada uma delas.

Essas histórias não ficam registradas em lugar nenhum. A não ser na mente de pessoas como Antoninho. Aos 57 anos, ele faleceu às 3h da madrugada do último sábado (13/02). Levou consigo muitas histórias humanas dos acampados. Eu tive o privilégio de compartilhar algumas dessas histórias que transformei em matérias. Eu tinha um caderninho onde anotava os telefones das minhas fontes. Não era raro riscar alguns nomes, porque haviam sido mortos em uma emboscada ou confronto em algum rincão remoto do Brasil. Ainda tenho essa agenda em um canto na “bagunça”, uma caixa onde armazeno as minhas coisas antigas. Foi nesse mundo que o Antoninho viveu e conseguia manter o sorriso no rosto por mais tensa que fosse a situação. Siga em paz, meu amigo.

* Texto publicado originalmente no site Histórias Mal Contadas

** Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.

*** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira