Rio Grande do Sul

Dança

Amanecer carrega esperança depois de um período de escuridão

Espetáculo de flamenco é apresentado pelas redes sociais da Casa de Cultura Mário Quintana nesta sexta-feira (19)

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Penso que nós, como artistas, temos que mostrar essa escuridão, mas ao mesmo tempo também podemos mostrar e dançar essa esperança" - Fábio Zambom

“A gente quis trazer um olhar de esperança para todos nós. Precisamos de muita esperança diante dessa doença terrível que tirou, até agora, mais de 240 mil mortos e deixou tanta gente doente e separou tantos lares. Penso que nós, como artistas, temos que mostrar essa escuridão, mas ao mesmo tempo também podemos mostrar e dançar essa esperança e carregar nos corações de quem for assistir essa esperança”, destaca a bailaroa e mestra de flamenco Ana Medeiros, responsável pela concepção do espetáculo Amanecer, que será apresentado nesta sexta-feira (19), no canal do youtube da Casa de Cultura Mário Quintana

Formada em Arquitetura e Urbanismo, Ana Medeiros, que tem 25 anos de trajetória no flamenco, mescla, neste espetáculo nascido ainda quando o mundo vivia sem a presença do coronavírus, os sons da cidade, do flamenco com a história, edificação e memória da Casa de Cultura Mário Quintana. “Amanecer foi um espetáculo muito significativo porque ele foi feito todo na pandemia. A partir da paralisação de todos os setores artísticos e docentes, tivemos que nos adaptar a esse novo formato. (...) A quarentena e a pandemia me trouxe um ensinamento muito importante, que não temos controle de nada e que temos que fazer o máximo com o que se tem”. 
 
O Brasil de Fato RS conversou com a coreógrafa sobre o seu novo espetáculo. Abaixo, a entrevista completa:  

Brasil de Fato RS - Gostaria que tu nos falasse um pouco da tua história, trajetória, e o encontro com o flamenco? De onde vem o La Negra?

Ana Medeiros - Sou Ana Medeiros, La Negra, trabalho com flamenco e arte há 25 anos. O flamenco foi algo que eu vivenciei desde a minha tenra infância, minha vó tocava castanhola, é descendente de espanhóis, minha mãe também tocava, dançava, e a minha casa era muito musical. Essa minha avó casou com um apreciador de chorinho, então era comum fazer as mesclas de música popular brasileira - chorinhos, sambas - e o flamenco e as músicas espanholas. 

A partir disso veio esse sotaque brasileiro e espanhol. E o La Negra vem justamente daí, para homenagear esse meu avô, brasileiro, negro, que casou com essa minha avó descendente de espanhóis, de Jerez de la Frontera.   

BdFRS - O que o flamenco significa para ti?

Ana Medeiros - O flamenco para mim significa identidade, lar, casa. Eu fui órfã muito cedo da minha mãe, dessa minha avó, e era uma maneira de eu reverenciá-las, de eu poder ter a presença delas viva na minha vida. O flamenco me possibilitou esse elo durante muito tempo. Depois a gente vai ficando um pouco mais velha, vai se afirmando na vida e a postura da flamenca ajuda a tu te colocar, a tu enfrentar as batalhas da vida. E agora, na maturidade, posso observar que é maneira de expressão, de expressar tanto as minhas fragilidades quanto a minha fortaleza, por isso amo tanto o flamenco. 


Ana Medeiros tem 25 anos dedicados ao flamenco / Fábio Zambom

BdFRS - Hoje tu apresenta o novo projeto, Amanecer. Qual o significado desse espetáculo? 

Ana Medeiros - Amanecer foi um espetáculo muito significativo porque ele foi feito todo na pandemia. A partir da paralisação de todos os setores artísticos e docentes, tivemos que nos adaptar a esse novo formato. E as coreografias e tudo que envolve esse espetáculo em casa, nesse confinamento e, posteriormente, passado através de vídeos, enfim; e no finalzinho de maneira presencial com todos os cuidados e protocolos. 

Foi muito lindo e o nome Amanecer veio em janeiro de 2020, quando a gente nem vislumbrava essa pandemia. Aparentemente ia ser o nome do espetáculo do meu centro de formação, pensamos na noite como os problemas da vida, como a gente consegue lidar. E a primeira estrela da manhã, que seria essa vênus, que vem 2020 regendo, seria a esperança, a luz no final do túnel, a certeza de que sempre depois de uma noite escura tem um dia lindo pela frente. Foi nesse intuito que pensamos Amanecer. 

Quando veio a pandemia, ele tomou um significado muito grande, muito forte, muito lindo. A princípio íamos gravá-lo na orla do Guaíba, em dezembro, logo após as eleições. Só que teve a vinda da bandeira vermelha e a acentuação do coronavírus e também a lotação das UTIs na nossa Capital, o que nos fez cancelar essa filmagem. A princípio fiquei muito chateada porque as alunas e toda a equipe técnica já estavam empenhadas em fazer essa filmagem, mas respirei fundo e pensei: o mais importante é que todos estamos com saúde, todos estamos bem, é apenas um tempo. A quarentena e a pandemia me trouxeram um ensinamento muito importante, que não temos controle de nada e que temos que fazer o máximo com o que se tem. E as alunas e a equipe técnica abraçaram e colocaram em primeiro lugar a saúde. 

Para minha surpresa, nos últimos dias do ano, recebo uma ligação da curadora Luca Ibarra, uma importante agitadora cultural da cidade, de um projeto da Casa de Cultura Mário Quintana (CCMQ), a Casa Dança. E veio a oportunidade de colocarmos esse espetáculo no contexto arquitetônico e urbanístico da nossa cidade. A CCMQ é um ícone da nossa arquitetura desde a sua criação como hotel, foi a primeira estadia de muitos porto-alegrenses que vieram do interior e assumiram essa cidade como sua, passando pela presença ilustre do poeta que tanto nos representa, Mário Quintana, e tornando um ícone de encontro. 

Quando estávamos fazendo os estudos para essa videodança, esse espetáculo visual, a Casa de Cultura estava fechada até então, agora reabriu para pequenos grupos, mas ela está, como Centro Cultural, fechado desde o início da pandemia. Eu observava que as pessoas iam ali para a sua rua, a Travessa dos Cataventos, e ficavam sentadas na rua, na beirinha das portas da Casa de Cultura. Eu perguntei para um desses jovens casais por que eles estavam ali se a Casa estava fechada e eles reponderam que era o lugar favorito deles antes da pandemia e, só de estar ali perto, já aquecia o coração. 

Aí tomou outra direção esse ato artístico que iríamos fazer. Estávamos lidando com ícone da arquitetura, do urbanismo, mas também dos corações dos porto-alegrenses. E aí toda a pesquisa para fazer esse espetáculo foi com muito respeito e muito carinho nesse sentido, queríamos dar outra versão da Casa de Cultura, a versão do passante, da pessoa que caminha naqueles corredores. Optamos por um tipo de filmagem que dançasse junto com os bailarinos, a câmera está a todo momento dançando junto na mesma perspectiva do rosto dos bailarinos. É como se fosse um bailarino a mais, ou como se a pessoa que estiver assistindo esse espetáculo estivesse dançando, fazendo parte daquele ato artístico e possibilitando caminhar nessa Casa de Cultura tão querida. Possibilitar a esse casal que estava sentado também dançar e circular naqueles corredores que também são seus, que são de toda a população. 

Outra coisa que nos valemos foram dos espaços arquitetônicos, como é fazer uma coreografia para uma cúpula, para se bailar em uma cúpula. A cúpula é um objeto circular, então toda a coreografia, o posicionamento dos bailarinos se deu nesse círculo, e a câmera também acompanhou a evolução da coreografia circular. É o pensar a arquitetura no sentido da arquitetura, do espaço cênico que está sendo abordado. Outra estratégia que tivemos foi de ocuparmos a Travessa dos Cataventos, ocupar no sentido de ouvir os sons. São sons de manhã, do meio dia, da tardinha, são sons diferentes, a cidade tem uma própria vida em cada um destes turnos. 

A trilha sonora, ao mesmo tempo em que ela foi gravada em várias partes do Brasil (tiveram gravações de Curitiba, São Paulo e Porto Alegre), priorizamos também a captação ao vivo. Optamos também por captar o som da cidade, da Casa de Cultura Mário Quintana, e a gente produzir essa música através do sapateado, através dessa vibração que só o flamenco possibilita, dessa maneira tão singular. Então tiveram algumas coreografias que não tiveram música aparente, de fora, e sim os gritos que se chamam jaleos dos bailarinos. 

Então essa escolha de trazer os sons próprios da Casa também foi uma escolha pensada e espero que seja assertiva. Para mim foi assertiva. 

Dançar na rua foi uma sensação de conexão porque o flamenco, no seu DNA, ele é uma dança urbana, é uma street-dance. Porque ele tem sua origem de povos excluídos, os judeus, árabes, gitanos, os negros que também contribuíram muito com o flamenco. Na sua matize popular, ele também teu seu cerne na rua. É claro que não descartamos o flamenco como espetáculo, mas ele também tem sua origem na rua, e dançar com o pé na rua, naqueles paralelepípedos que tiveram vários caminhantes, toda a história de Porto Alegre, é muito significativo. 

No final a gente quis trazer um olhar de esperança para todos nós, precisamos de muita esperança diante dessa doença terrível que tirou, até agora, 240 mil mortos e deixou tanta gente doente e separou tantos lares. Penso que nós, como artistas, temos que mostrar essa escuridão, mas ao mesmo tempo também podemos mostrar e dançar essa esperança e carregar nos corações de quem for assistir essa esperança.   

BdFRS - Como tem sido o fazer arte no meio da pandemia, que completa um ano no país? 

Ana Medeiros - 2020 foi um ano muito desafiador, mas ao mesmo tempo estreei dois espetáculos: em janeiro o Mujeres de Água e em outubro o Som da Madeira. O Mujeres foi com a presença de público, mas o Som da Madeira foi totalmente virtual. Ao mesmo tempo foi difícil passarmos por todo o processo de ensaio e finalização do espetáculo no meio de uma pandemia, onde uma das bailarinas é médica (ao todo são quatro bailaoras), que teve seu número de plantão duplicado em função da pandemia. As três bailarinas são mães, então não tinham onde deixar os filhos. Todo o esquema de ensaio com máscara, distanciamento, não foi fácil a gente se adaptar. E na hora de gravar o espetáculo onde foi cedido, o Centro Cultura do Hospital Santa Casa, a gente dançar com ausência de público, tirando do olho do companheiro e da expressão do companheiro aquela força que uma plateia de 400 lugares te dá, foi muito desafiador. 

Mas ao mesmo tempo conseguimos alcançar públicos que até então não conseguiríamos, foram 800 ingressos, 800 visualizações com pessoas de vários lugares do mundo, de todos os cantos do Brasil. Então nos possibilita também um voo maior essa conexão com a internet, que não podemos e não queremos mais dar as costas. 

Acho que a tendência para o futuro é unir, ao mesmo que temos a possibilidade de filmar na íntegra um espetáculo, ou como no Amanecer, pensar uma linguagem de videodança, podemos manter os espetáculos presenciais. Se Deus quiser, com a vacina conseguiremos ter público com segurança, mas não deixar de filmar ou pensar essa linguagem da videodança para acrescentar a essa leitura. A videodança cresceu com a pandemia, era uma necessidade muito urgente, que pela correria do dia dia, pela normatização dos processos, a gente não se dava conta, não dava o devido valor. A videodança vai acrescentar muitíssimo à linguagem da dança e voar mais alto.

BdFRS - Tu chegastes a descrever que o flamenco carrega em si o DNA de uma arte feita por excluídos, uma arte de rua em sua essência e que grita as mazelas e alegrias da vida. Em um contexto social, como o flamenco trata questões como o machismo e questões de raça e gênero? 

Ana Medeiros - O flamenco, por ser uma arte viva no sentido de evoluir e valer de suas experiências, do seu tempo, ele evolui também nesses conceitos. Podemos observar, no início, o flamenco com letras machistas, letras misóginas, racistas, que expõem o corpo da ‘morenita’, da negra muito sexualizada, e hoje não cabe mais. Eu acredito em um flamenco dinâmico, em um flamenco que acompanhe essa intolerância a essas coisas tão feias, inclusive trocar as letras que eram cantadas ou que eram feitas. Pode ser uma utopia, mas eu acredito que o flamenco vai evoluindo e já está evoluindo neste sentido. Da minha parte, pelo menos, eu tenho o total cuidado de observar isso, de não dançar por dançar, de analisar as letras que estão sendo cantadas, de fazer minha parte nessa arte tão grande e tão viva.


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Edição: Marcelo Ferreira