Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | Uma viagem às origens do Nazifacismo

Comentário crítico sobre o faroeste do Netflix, “Notícias do Mundo”, do diretor inglês Paul Greengrass, com Tom Hanks

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Cena do filme "Notícias do Mundo". - Reprodução/Netflix

Um faroeste USA dirigido por um inglês? Sim, o nome dele é Paul Greengrass, um  experimentado diretor e roteirista da Inglaterra. Não vejo problema nisso, o italiano Sergio Leone (Era uma vez no Oeste, 1968) foi um grande diretor de westerns, assim como o austríaco Otto Preminger (O rio das almas perdidas, de 1954). O longa “Notícias do Mundo” foi produzido pelo Netflix, e isso já informa parte das soluções e omissões do roteiro. É sobre isso que precisamos comentar.

O filme se passa quase todo no estado sulista do Texas, o estado da estrela solitária, como eles dizem. Lá onde ocorre um fenômeno chamado “cinturão da Bíblia” (o temido “Bible belt”), com grupos de fanáticos religiosos, negacionistas e as variações ideológicas que começam na burrice simples, passa pela pseudo-religiosidade da superstição e do pensamento mágico (pré-religioso), terminando na estupidez em estado primitivo. Pois, o roteiro do Greengrass aponta isso, mas de forma muito tímida, quase imperceptível (o cadáver do negro enforcado no início do filme é apenas sugerido, jamais aparece com a clareza do choque). Neste ponto é que se começa a entender as sutis digitais do Netflix na linha do roteiro, afinal, se trata de uma produtora USA que compõe o universo de poder dos “big tech” (hoje, hegemônicos no chamado Deep State).

O filme conta a história de um capitão sulista, ex-tipógrafo, um homem ilustrado, civilizado, que ganhaa vida lendo notícias de jornal para os caipiras e colonizadores da América profunda. O relato começa em 1870, cinco anos depois do fim da guerra civil (1861-65), que confrontou confederados sulistas com a União Federal, logo depois da posse do presidente Lincoln. Motivo da rebelião sulista: se opunham ao fim do regime escravocrata, não só por razões econômicas, mas sobretudo por convicções racistas, religiosas/supersticiosas/morais – sempre expressando um exacerbado supremacismo branco -que perdura até hoje.

O capitão faz uma viagem de volta à cidade de Castroville, no sul do Texas, com importante colonização alemã. A viagem visa reconciliar-se com o passado e com a perda da mulher, segundo ele por culpa de seus próprios erros, na guerra, fora da guerra, na vida. O capitão é um homem com peso na consciência em busca de indulgência, qualquer uma. Nesta viagem, encontra acidentalmente uma menina de origem alemã. O resto vocês podem assistir no Netflix. Trata-se de um roteiro, a meu ver, previsível e quase óbvio, mas a mão equivocada do roteirista (o mesmo Greengrass) é compensada pela delicadeza e sensibilidade do diretor Greengrass. Um bom filme, mas com roteiro incompleto e lacunar. Talvez mais por força do Netflix do que pelo roteirista e diretor Paul Greengrass. Como já disse, o roteiro foge dos temas fortes que a narrativa está propondo, qual seja: por que há ódio naquele lugar, ódio racial, ódio contra os Azuis (como chamam os soldados vencedores da União, do presidente Lincoln, do abolicionismo), ódio contra os povos autóctones, contra os mexicanos, contra o mundo não-religioso, etc. É preciso lembrar que o presidente Lincoln foi covardemente assassinado em 1865 por um militante do reacionário pensamento sulista-escravagista-confederado. Isso diz muito sobre os USA, valendo até os dias de hoje.


“Progresso Americano”, óleo de John Gast, de 1872. / Reprodução/Google Imagens

Muitos perguntam das origens ancestrais do nazifascismo. Onde ficam essas raízes do mal, o ninho originário das víboras? A resposta objetiva, factual e histórica: o Texas, ex-território mexicano, ex-República autônoma, e depois incorporado à União estadunidense por uma guerra fratricida e trágica. Foi no Texas que nasceu o movimento branco do chamado Destino Manifesto, o ovo da serpente do nazifascismo europeu do século 20. Muita gente boa nos USA do século 19, inclusive Thomas Jefferson, proclamava que a Europa estava em crise moral, e que a América era a terra da nova moral, da conciliação do homem com Deus e os céus. Diziam que na América (do Norte) o homem alcançaria a sua redenção e o caminho angelical da verdade – exclusivamente para os brancos, tementes a Deus e cumpridores dos preceitos religiosos. A guerra contra o México visava ocupar territórios por parte dos colonos brancos, europeus, muitos alemães. A doutrina do Destino Manifesto fazia nexo com a Doutrina Monroe (1823), e ambas visavam a anexação de territórios a serem ocupados pelos eleitos por Deus, como o único povo capaz de redimir a humanidade dos seus gravíssimos atos e omissões pecaminosos.

O filme de Greengrass incorpora uma alegoria pictórica do Destino Manifesto na angustiante cena da tempestade de areia, quando o capitão enxerga vultos de retirantes indígenas rumo a sabe-se lá para onde, expulsos pelos civilizados brancos. Uma citação evidente ao óleo de John Gast, chamado “Progresso Americano”, de 1872 (detalhe à esquerda da fotografia anexa). Uma figura feminina representando Colúmbia segura um livro escolar e conduz a civilização para o Oeste. Os nativos e os animais da terra saem afugentados.

Corte rápido. Alemanha, primeira metade do século 20. O movimento nazista quer redimir a Alemanha da humilhação do Tratado de Versalhes de 1919. O discurso da superioridade germânica ganha a classe média e propõe o Lebensraum (espaço vital), capaz de justificar a anexação de territórios e países para o domínio da raça superior ariana. O geógrafo alemão Friedrich Ratzel cunhou a expressão Lebensraum, bem como a sua importância para o povo alemão. Ratzel esteve nos USA no final do século 19 e ficou impressionado com a autenticidade das consignas do Destino Manifesto. Mais tarde, depois de 1919, os nazis reinterpretam as teses de Ratzel para racionalizar e justificar a guerra, as invasões militarizadas, a brutalidade, o terror e o holocausto.  Notem que há um fio condutor que junta fatos aparentemente desconexos, tanto no chamado Novo Mundo, quanto na Velho Mundo. Neste caso, o Velho Mundo foi buscar inspiração no Novo Mundo, para sustentar a ideologia da morte e da destruição que causou 70 milhões de mortos na Segunda Guerra.   Paul Greengrass pulou fora deste compromisso histórico de ligar os pontos convergentes (e mutuamente comprometidos pela estupidez do racismo e da intolerância) da história do capitão contador de histórias, vivido na tela pelo bom ator Tom Hanks. Certamente foi constrangido pelos dirigentes do Netflix para não entrar em polêmicas racistas, ideológicas e muito politizantes. Afinal, o Netflix pertence à plutocracia branca, e mexer neste vespeiro do passado pode estragar os negócios do presente.

 


(*) Sociólogo. Em 18 de fevereiro, 2021.

 

(**) Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcos Corbari