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ARTIGO

Vacinando-se contra a Covid-19, a desinformação e as fake News – Parte I

"O processo de desenvolvimento da vacina segue as mesmas etapas de pesquisa para qualquer produto com objetivos médicos"

Brasil de Fato | João Pessoa - PB |
Reprodução - Card

Há pouco mais de um mês, finalmente o Brasil iniciou o processo de vacinação de sua população contra a Covid-19, ainda que de forma bem atrasada em relação aos demais países. Todavia a campanha corre sérios riscos. 

Aqui já atingimos a casa de mais de 10 milhões de casos confirmados (sem falar naqueles que não foram testados) e de cerca de 245 mil mortos, quase 10% dos óbitos em todo o mundo. Uma verdadeira tragédia para a qual a postura negacionista do governo federal foi determinante. Postura que inclui a difusão de fake news por parte do próprio presidente, seja divulgando falsos tratamentos sem qualquer sustentação científica, seja desacreditando as vacinas desenvolvidas até aqui.

A desinformação e as notícias falsas são, portanto, dois dos principais desafios à campanha de imunização neste momento. Mentiras como a de que as vacinas vão alterar o DNA das pessoas ou teorias da conspiração que afirmam que o objetivo é eliminar mais rapidamente os idosos ou que se quer controlar as pessoas com nanochips escondidos na vacina, entre outros absurdos. Infelizmente isso tem alimentado a desconfiança de muita gente. Assim, o objetivo deste texto é vacinar as pessoas com informação para evitar que caiam em fake news: vamos tentar, numa linguagem acessível dentro do possível, explicar como funcionam as vacinas. 

Já que hoje existem mais de 40 vacinas em diferentes fases de estudo em humanos e mais de 150 ainda em estudos em animais, vamos aqui nos deter apenas nas duas vacinas que estão sendo desenvolvidas e/ou adquiridas no Brasil. Antes de abordá-las, no entanto, é preciso esclarecer duas coisas: as etapas do processo de desenvolvimento das vacinas e as características do vírus que fundamentam a pesquisa. É disso que vamos tratar nessa primeira parte.

Como se dá o desenvolvimento de uma vacina?

O processo de desenvolvimento de vacinas segue as mesmas etapas de pesquisa para qualquer produto com objetivos médicos. A primeira delas são os estudos pré-clínicos, feitos em pequenos animais (geralmente camundongos) objetivando verificar se há resposta imune (ou seja, se o animal desenvolveu anticorpos que protegem contra o vírus) e toxicidade (isto é, se há efeitos adversos). A partir de então, passa-se para os estudos clínicos em seres humanos, os quais se subdividem em 03 fases, ao longo das quais é importante destacar o papel dos Comitês de Monitoramento e Segurança de Dados, composto por especialistas independentes.

Os estudos clínicos de fase I envolvem poucos indivíduos, geralmente menos de 100 pessoas, que sejam saudáveis e com idade entre 18 e 55 anos. O principal objetivo é testar a segurança da vacina, embora também se verifique a imunogenicidade (capacidade de gerar anticorpos de defesa) e variação de dose (qual seria a menor dose com eficácia e segurança). Os estudos de fase II objetivam expandir o perfil de segurança e a avaliação da resposta imune em um grande número de indivíduos (geralmente, centenas deles). 

Por fim, os estudos de fase III buscam determinar se as vacinas previnem a ocorrência da doença (confirmada por laboratório) ou o desenvolvimento de formas graves da mesma. Preferencialmente tais estudos adotam um modelo duplo-cego e randomizado. Isto significa que os voluntários que participam da pesquisa são divididos em dois grupos de forma aleatória (por isso o termo randomizado), um dos quais recebe a vacina (chamado grupo intervenção) enquanto o outro (chamado grupo controle) recebe um placebo (ou seja, uma substância sem qualquer efeito).

Porém, nem os voluntários nem os profissionais que estão aplicando sabem se, naquele momento, está sendo administrada a vacina ou o placebo (por isso o termo duplo-cego); só os pesquisadores têm essa informação. São estudos que envolvem milhares de voluntários e nos quais se busca definir a eficácia do produto, isto é, a percentagem da redução no surgimento da doença ou de suas formas graves entre aqueles que receberam a vacina contra aqueles que receberam o placebo.


As pesquisas sobre o novo coronavírus

Foi a experiência de duas outras epidemias provocadas por vírus da mesma família dos coronavírus humanos que proporcionou as bases para a pesquisa atual sobre o novo coronavírus, o SARS-CoV-2, causador da Covid-19. São estudos pré-clínicos e pequenos estudos clínicos de fase I que chegaram a ser desenvolvidos em relação ao SARS-CoV-1, vírus causador da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, sigla em inglês) que explodiu entre 2002 e 2003 na Ásia, e ao MERS-CoV, responsável pela Síndrome Respiratória do Médio Oriente (MERS) que emergiu no oriente médio em 2012. 

Esses estudos anteriores permitiram conhecer a estrutura viral da família dos coronavírus e os mecanismos gerais pelos quais eles infectam as células humanas, o que garantiu bases sólidas para a pesquisa da vacina para o SARS-CoV-2. Precocemente, portanto, sabia-se qual seria o alvo antigênico, ou seja, contra que estrutura do vírus era preciso induzir a proteção de anticorpos de defesa de modo a neutralizá-lo. Tal alvo é a proteína S (do inglês spike protein), presente na superfície dos vírus  SARS-CoV-1, MERS-CoV e também no SARS-CoV-2 e que dá a aparência de uma coroa a eles, de onde vem o nome da família coronavírus (corona = coroa). Tal proteína é a responsável por ligar o vírus às células humanas e permitir que ele as infecte.


Reprodução / Card

 
No caso do SARS-CoV-2,  estudos pré-clínicos com primatas não humanos (macacos, na linguagem popular), mostraram que tais primatas, propositalmente infectados, desenvolveram resposta imune contra uma nova infecção. Outros estudos revelaram que a vacinação de primatas também protegeu contra a exposição viral e que estes desenvolveram anticorpos neutralizantes. Tais estudos possibilitaram avançar para a pesquisa em seres humanos.

Como se pode perceber, o processo de desenvolvimento de uma vacina é bastante complexo, envolve inúmeros cientistas de vários países, diferentes etapas, monitoramento e supervisão permanente de diversos órgãos e comitês independentes, o que, por si só, diz bastante a respeito da segurança de uma vacina. Teorias da conspiração sobre eliminação de idosos, implantação de chip, etc. não se sustentam pelo simples fato de que uma conspiração dessas exigiria segredo de muitos milhares de pessoas. Não dá pra acreditar em absurdos assim.

No próximo texto, abordaremos, finalmente, como as vacinas que o Brasil está adquirindo, funcionam. 


*Henrique Medeiros É Médico de Família e Comunidade; Professor da UFCG; Doutorando em Saúde Pública pela Fiocruz

Edição: Cida Alves