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Opinião

Artigo | 2020 - O ano que não mudou a vida das mulheres!

O ano de 2020 foi mais um em que o machismo e o patriarcado manteviveram sua rotina violenta como nunca

Brasil de Fato | Porto Alegre |
De acordo com levantamento do ‘Monitor da Violência’ (USP), as principais vítimas de feminicídio são mulheres negras, ou seja, 73% das vítimas. Segundo o levantamento, 631 desses crimes foram de ódio, motivados pela condição de gênero, ou seja, feminicídio - Giorgia Prates

O ano de 2020 foi um ano que muita gente avaliou como um ano atípico por causa da pandemia. Que tudo parou ou que muita coisa mudou. Para nós mulheres, não foi diferente. Para o movimento feminista também não foi. Mesmo com a pandemia da covid-19, 2020 foi um ano que tivemos de ir às ruas, pedir para pararem de nos matar, de nos violentar, de violentar nossas filhas. Foi mais um ano que o machismo e o patriarcado manteve sua rotina como nunca.

Afirmamos isso, com base nos dados que indicam que “a violência contra a mulher permanece como a mais cruel e evidente manifestação da desigualdade de gênero no Brasil” (Monitor da Violência/2020) e segundo um estudo de Organização das Nações Unidas, o Uruguai tem a segunda maior taxa de mulheres assassinadas por companheiros ou ex-companheiros na América Latina.

Não há lugar seguro para as mulheres no Brasil. Não há separação entre espaço público e privado para elas – a morte e a violência sempre estiveram presentes dentro das casas, no transporte público, nas praças, nos templos religiosos, nos espaços de educação e lazer e nos espaços de poder e decisão.

De acordo com levantamento do ‘Monitor da Violência’ (USP), as principais vítimas de feminicídio são mulheres negras, ou seja, 73% das vítimas. Segundo o levantamento, 631 desses crimes foram de ódio, motivados pela condição de gênero, ou seja, feminicídio.

Somente nos primeiros oito meses de 2020 os assassinatos de pessoas trans aumentou 70% comparado ao mesmo período do ano anterior, segundo o dossiê do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH). Este dado só comprova o quanto as pessoas trans estão mais vulneráveis ainda em plena pandemia.

Já o desemprego, não só no Brasil, mas em toda América Latina, alcançou recordes históricos. A Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) projetou que “o desemprego regional iria bater 13,5% no final de 2020, o que significa 44,1 milhões de pessoas desempregadas”. Isso representa um aumento de quase 18 milhões de desempregados com relação ao ano de 2019, quando tínhamos cerca de 26,1 milhões de desempregados na América Latina.

Nesse contexto de crise global, as mulheres têm sido as mais afetadas, por alguns motivos em especial. Em primeiro lugar, as mulheres ocupam os principais setores afetados pela pandemia, como hotelaria, alimentação e serviços domésticos, principalmente aqueles setores historicamente ligados aos cuidados (de crianças, idosos ou doentes). Também possuem uma taxa de informalidade relativamente superior aos homens: de acordo com a Cepal, 11,4% das mulheres latino-americanas se dedicam ao trabalho doméstico remunerado, sendo que 77,5% dessas trabalhadoras são informais.

O outro fator diz respeito à paralisação de aulas presenciais, que provocou uma grande demanda de trabalho voltado ao cuidado (trabalho reprodutivo). Pasmem, isto significa, pelo menos 113 milhões de crianças que estão dentro de casa há quase um ano e que geram uma imensa sobrecarga de trabalho. Obviamente que as mulheres que conseguiram manter seus empregos, nesse contexto, estão enfrentando extremas dificuldades em conciliar duplas (ou triplas) jornadas de trabalho.

Na Fronteira Rivera-Livramento, que une Uruguai e Brasil, o movimento feminista começou o ano de 2020 organizando e mobilizando as mulheres e, em março, mais uma vez, como é nossa tradição, fomos para as ruas em marcha dizendo: “Mulheres livres, nenhum passo atrás com Cristina Benavides”. Fazendo uma homenagem a uma das nossas que deixou seu legado de luta, e o 8 de março de 2020 aconteceu de forma extraordinária na fronteira. Conseguimos unir mulheres de todas as raças e gerações, profissões, religiões, idades, orientação sexual e política, avisando que não daríamos nenhum passo atrás.

Já em Brasília, todas as regiões do Brasil se mobilizaram e foram mais de 3.500 “Mulheres em luta, Semeando resistência” no primeiro encontro nacional das mulheres do MST. Muitas de nós estavam chegando em suas casas quando o Brasil já anunciava oficialmente a chegada da pandemia. 

Ficamos abril e maio em casa isoladas, observando o nosso país e o mundo lidarem com a nova covid-19. Mas os lares das mulheres não são lugares seguros de violência. “O registro de agressão contra a mulher equivale às vítimas da covid, vale dizer que vivemos duas pandemias no século XXI: da violência contra a mulher e a covid-19”, denuncia o FONAVID/2020.

Junho chegou frio e calculista, com o aumento dos feminicídios no Uruguai. Fizemos uma Campanha em frente às nossas casas, nas nossas janelas, denunciando os feminicídios e a violência contra as mulheres. Em Sant’Ana do Livramento o feminicídio de Mariana, que foi torturada um final de semana inteiro em seu quarto de hotel onde residia, nos fez sair às ruas denunciando mais uma vez um crime brutal contra uma mulher.

Uma pesquisa do governo uruguaio realizada em 2019 afirmava que 76,7% das mulheres disseram ter sofrido violência de gênero ao longo de sua vida, e 47% disseram ter sofrido de companheiros ou ex-companheiros. Segundo as autoridades uruguaias, nos primeiros 45 dias de confinamento do ano de 2020, em comparação com o mesmo período do ano anterior, as consultas e pedidos de ajuda via telefone sobre violência de gênero aumentaram de forma drástica em 80%. Até seu oitavo mês houve 19 feminicídios atrozes e 10 tentativas que deixaram as vítimas gravemente feridas, segundo a base de dados mais ampla sobre esses crimes, compilada por organizações feministas. 

Antes do final de junho, um debate latente de nos organizarmos para além da realização do 8M nos encaminhou para a criação da Intersocial Feminista 8M Rivera–Livramento. Então, nasce aqui uma articulação das organizações, coletivos, movimentos de mulheres unificadas pelo feminismo e contra o machismo e a violência de gênero, contra o patriarcado e todas as suas formas de opressão. 

E junho nem tinha acabado quando veio à tona o caso da menina de São Mateus (ES), de 10 anos, estuprada pelo tio e que obteve autorização da justiça para a realização de um aborto no SUS, em Recife (PE). Com isso, o que vimos nas mídias sociais e na imprensa foi a manifestação cruel das ditas “pessoas de bem” culpabilizando uma menina de 10 anos, e não o estuprador. Os dados sobre aborto no Brasil são estarrecedores! Até junho de 2020, ao menos 642 meninas de até 14 anos foram internadas no SUS para fazer um aborto: a maioria por complicações na gravidez e tentativas de interrupção da gestação. No ano anterior, em 2019, a cada 100 internações por aborto, de um total subnotificado de 195 mil, apenas uma tinha sido autorizado pela Justiça (DataSus). 

Em julho acontece mais um feminicídio em Rivera, e organizamos o ato na Praça Artigas contra a morte de Sofia. Enquanto isso, em Montevidéu, uma grandiosa marcha feminista de alerta encheu mais uma vez a avenida central 18 de Julho da Capital, na qual as mulheres recentemente assassinadas foram lembradas. 

Agosto chegou marcando os 14 anos da Lei Maria da Penha no Brasil. Mas em tempos de covid-19, a situação de violência doméstica só se agravou aumentando a dificuldade das mulheres para notificar as ocorrências, o que foi sendo relatado, entre outras instituições, pela ONU Mulheres e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Somente no primeiro semestre de 2020, foram 119.546 registros de lesão corporal em contexto de violência doméstica, uma média de 664 mulheres agredidas por seus companheiros dentro de casa por dia. Esse é o resultado da pandemia. O mesmo aconteceu com os casos de estupro e estupro de vulnerável, os quais chegaram a uma média de 126 casos de estupro e estupro de vulnerável por dia, no primeiro semestre de 2020.

Estes fatos só confirmam o descompromisso do governo federal com a aplicação dos recursos com políticas públicas para o enfrentamento à violência contra as mulheres.

Um estudo da consultoria da Câmara Federal apontou a baixa execução orçamentária na área, enquanto denúncias de violência contra a mulher ao Ligue 180 cresceram 35% durante pandemia. Enquanto isso, o governo gastou apenas R$ 5,6 milhões de um total de R$ 126,4 milhões previstos com políticas para mulheres.

O fato da fronteira Brasil-Uruguai promover uma articulação das organizações de mulheres em torno do feminismo é também o resultado do emergente movimento feminista nos últimos anos contra o fascismo nos governos.

Esses movimentos tiveram resultados positivos nas eleições municipais no Brasil, por exemplo. Várias organizações feministas decidiram disputar os espaços da institucionalidade, seja por meio de mandatos individuais ou coletivos em todo país. As mulheres representaram 52,49% das 147,9 milhões de pessoas aptas a votar nas eleições de 2020 (TSE). Nas urnas, das 50 candidaturas de mulheres pobres, negras e trans às Câmaras Municipais efetivamente apoiadas pelo “Levante das Mulheres”, 17 foram eleitas. No Uruguai a continuação da esquerda Frente Amplista com a eleição da engenheira Carolina Cosse do Frente Amplo, para administrar a capital Montevidéo, foi uma grande vitória.

As eleições mal tinham se encerrado no Brasil e fomos obrigadas pedir justiça por Mariana Ferrer e tantas outras mulheres, contra a cultura do estupro. As urnas se fecharam e o dia contra a violência contra as mulheres chegou em 25 de novembro, quando fomos pra frente dos Poderes Judiciários de Livramento e Rivera pedir justiça às mulheres violentadas e mortas, pedir respostas sobre os processos que andam à passos lentos nas mãos da Justiça. Fomos pedir maior punição e agilidade para os casos de violência doméstica. Fomos denunciar o caso do professor Braseiro, abusador de Rivera e que recentemente fugiu da sua prisão domiciliar deixando na janela de sua casa a tornozeleira. Sim, nós avisamos.

Dezembro chegou sem piedade e os casos de abuso sexual e estupro contra meninas e mulheres foram registrados como nunca em nossa fronteira. Enquanto isso, a face mais perversa do machismo se declarava logo após a noite de Natal, avisando que eles, os machistas, não iriam parar. Foram 16 facadas que mataram a juíza Viviane na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, em frente às filhas. Esse caso comprova mais uma vez que não há raça nem classe social quando querem nos matar. Não estamos protegidas, nem as pobres, nem quem faz parte do sistema de Justiça.

Faltam poucos dias para o 8M de 2021. Nós não vamos parar, não vamos ficar assistindo ao extermínio das mulheres e nem ao avanço do machismo, da misoginia, da impunidade e da morosidade dos poderes Executivo e Judiciário e da cumplicidade da sociedade que não diz um basta à violência contra as mulheres. 

Exigimos: “Mulheres vivas nas ruas, nos lares. Em todos os lugares. Nenhum direito à menos!”

* Ane Cruz é feminista, socióloga, ativista da Intersoscial Feminista 8M Rivera-Livramento

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


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Edição: Marcelo Ferreira