Rio Grande do Sul

Especial Mulheres

“Ter soberania é ter terra, território e territorialidade. É manter a nossa tradição"

O Brasil de Fato RS entrevistou Kota Mulanji, que abre o especial do Dia Internacional de Luta das Mulheres

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Nós estamos na UTI sem ter uma UTI que nos atenda, porque não temos um governo que olhe para nós e que tenha preocupação de nos atender"
"Nós estamos na UTI sem ter uma UTI que nos atenda, porque não temos um governo que olhe para nós e que tenha preocupação de nos atender" - Zé Gabriel / Believe.Earth

Filha de uma mulher batalhadora, do lar, e de um tapeceiro, Regina Barros Goulart Nogueira reconstruiu seu caminho na busca de sua ancestralidade, recebendo nesta descoberta o nome de Kota Mulanji. Advinda de uma família em que as mulheres eram basicamente domésticas, que faziam e mantinham o trabalho doméstico, encontrou na medicina pediátrica o seu caminho. 

Coordenadora do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos de Matriz Africana (Fonsanpotma), Kota abre o especial de entrevistas do Brasil de Fato RS do Mês Internacional de Luta das Mulheres. Ela fala sobre sua história, trajetória, racismo, soberania e espiritualidade, sempre permeada pela tradição dos ensinamentos da matriz africana. 

“O mês de março é um mês emblemático porque ele remonta que todas as mulheres são águas, e todas são sagradas, que a violência que hoje o capitalismo aplica sobre as águas é a mesma que aplica sobre as mulheres, sobre os corpos negros, corpos indígenas, corpos diferentes do eurocentrado. Águas, mulheres, corpos diferentes do eurocentrado são ameaçados. A nossa luta é única. A nossa luta é uma só, por uma civilização, por princípios civilizatórios que respeitem essas questões. Estamos em uma disputa civilizatória. A economia e a saúde não vão se equilibrar enquanto o princípio civilizatório que dominante for o da exploração, da escravidão, da morte, da necropolítica", aponta. 

Abaixo, a entrevista completa:

Brasil de Fato RS - Quem é Kota Mulanji?

Kota - Meu nome civil é Regina Barros Goulart Nogueira, nascida em Pelotas, Rio Grande do Sul, filha de dona Maria Augustina e do seu Francisco de Paula. Dona Maria, uma senhora do lar, batalhadora que fez de tudo, vendeu pastel, costurou, e seu Francisco, tapeceiro/estofador. Sou formada em medicina pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em 1984, com residência em pediatria pelo Ernesto Dornelles, com mestrado iniciado e não terminado em saúde mental pela Universidade Católica de Pelotas e doutoranda em biomedicina pelo Instituto Universitário Italiano de Rosário, na Argentina. 

Reconstruo meu caminho com minha ancestralidade a partir do processo iniciático que é a forma como na diáspora forçada nós, descendentes dos africanos sequestrados e escravizados reconstruímos o caminho de volta à nossa ancestralidade, há 18 anos, e recebo o nome de Mulanji. Mulanji, uma palavra da língua kimbundu, que é falada até hoje, principalmente no norte da Angola, junto com kimcongo que também é constituído como uma língua viva até os dias de hoje, que quer dizer combatente. E recebo o cargo, dentro da estrutura organizacional política estrutural e mítica do povo bantu na diáspora, de Kota. 

E Kota quer dizer mãe também, mas uma mãe com uma responsabilidade social e política junto ao sagrado, aquela que cuida da divindade, que cuida da sua unidade territorial, em conjunto, porque somos várias Kotas, que é o cargo feminino, junto com os Katas, que são os cargos masculinos, e outros cargos que constituem a organização social e política do povo bantu. 

Eu estou coordenadora nacional do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos de Matriz Africana. Tenho uma trajetória dentro da área da saúde: como gestora pública fui secretária de saúde adjunta em Gravataí, no RS; fui coordenadora de programas como o DST/Aids, saúde do adulto, da saúde da população negra, em vários municípios tanto no RS quanto em São Paulo. Estou na ativa como médica pediatra intensivista em São Paulo. Sou médica pediatra em dois hospitais do estado. Estou coordenadora de uma pesquisa em cooperação com a Fiocruz, nesse momento. 

A gente é multi, como dizia o quilombola Bispo, o problema deles é que são mono, nós somos multi. Então estamos em multi lugares, multi coisas.

BdFRS - Nos conte um pouco da tua trajetória até chegar ao Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos de Matriz Africana.

Kota - É a trajetória de quem sempre teve esse compromisso de luta com o antirracismo, de acreditar e conseguir quando é reconhecida por Nkisi (são similares aos orixás dos candomblés de Angola e do Congo), reconhecida pela própria natureza como uma mulher das águas, do fogo e da terra, continuar lutando por essas questões. 

Assim, quando Lula assume o governo e a gente recupera a política de segurança alimentar e nutricional, recompõe o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) e faz o plano e a política nacional de segurança alimentar, junto ao BNDES tinha o programa de aquisição de alimentos. Dentro desse programa, tinha a distribuição de alimentos a populações específicas, nós fazíamos parte do Movimento Nacional pelo povo Bantu (MonaBantu).

Através do MonaBantu, a gente adentra as diferentes organizações nacionais e constitui o que se denominava a distribuição de cestas alimentares emergenciais para as comunidades, naquela época denominadas apenas a partir do conceito religioso de comunidades de matriz africana. E na 3ª Conferência de Segurança Alimentar, em Salvador, em 2011, essas diferentes organizações e, principalmente, as pessoas ligadas a cada território desses que nós hoje denominamos como comunidades tradicionais territoriais, que é uma categoria que reúne as diferentes formas, que nós nos denominamos como terreiro, Ilê, Manzo, Barracão, Casa, que é uma unidade do povo. 

Aí a gente assume essa concepção de povo tradicional de matriz africana, referindo-se a povo aqueles que se unificam a partir de princípios que seguimos, no nosso caso princípios e valores mantidos como a alimentação, a língua, a forma de organização política única, tradicionais. Porque resistimos em um estado de direito contrário à nossa manutenção de matriz africana porque estamos ligados aos princípios civilizatórios da circularidade, oralidade, do respeito condicional ao mais velho, do respeito e compromisso com o mais novo e a natureza como divindade. 

Então, a partir desse conceito, a partir dessa Conferência, nós constituímos o Fórum de Segurança Alimentar e Tradicional e eu, naquele momento, fui designada para ficar junto com a Iyá Vera Soares, do RS, e o Tata Comangi, de Salvador, como responsáveis para constituir. Já em janeiro de 2011 participamos do Fórum de Resistência, em Porto Alegre, em 2012, e em agosto oficializamos o Fórum. De imediato adentro como suplente no Consea Nacional e desde lá temos feito essa trajetória de debates, diagnóstico, de proposta de políticas públicas, de articulação com outros segmentos da segurança alimentar e nutricional e a denúncia do processo de insegurança alimentar biomítica que os povos tradicionais de matriz africana vivem.

BdFRS - Qual a importância da soberania e segurança alimentar para os povos originários e tradicionais? Como garanti-las?

Kota - Todo povo tem seu sistema alimentar próprio, dos tradicionais e originários, os povos indígenas, os povos ciganos, os povos pomeranos, que são povos que, como nós, mantiveram sua língua, sua forma de se organizar politicamente, sua estrutura e seus princípios originários. E nós temos um sistema alimentar que compreende que nós temos que alimentar todo o ser vivo para que se mantenha o equilíbrio biomítico, ambiental e ancestral. 

E a importância de ser soberano não é de só consumir como o sistema capitalista imagina e quer que sejamos consumidores, e consumidores de baixa qualidade. Nós os povos de matriz africana somos consumidores de um alimento saudável porque é um alimento que não pode destruir nem o corpo físico humano, nem o corpo da ave, da mata, da água, da terra. Por isso nos coloca na luta contra o agrotóxico, contra todo tipo de crime que acaba com a biodiversidade. A água para nós é alimento. 

Então, ter soberania é ter terra, território e territorialidade. É manter a nossa tradição, manter a forma como se produz, como se beneficia, como se consome, é a forma de nos manter vivos. Quando nos tiram a forma, por exemplo, se a gente se reportar ao translado dos africanos que foram escravizados dentro dos navios negreiros, eram oferecidos alimentos até nutricionalmente adequados, mas acabava com a forma de beneficiar e com a forma de consumir, que é uma forma solidária, coletiva, circular em que todo o ancestral vegetal e animal é respeitado. 

Então, não ter soberania é não ter vida. Eu poderia traduzir aqui vida com espiritualidade, não ter soberania é não ter espiritualidade, é não ter vida.  

BdFRS - A fome voltou a ser um problema grave para a população brasileira, e agravada ainda mais na pandemia. Como os povos originários e tradicionais foram atingidos por ela? Para o Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos de Matriz Africana, quais os caminhos possíveis para enfrentar esse problema?

Kota - É, de fato o Brasil voltou ao mapa da fome. Para os povos originários e os povos tradicionais não é só a fome de não ter o alimento em quantidade adequada, ou não ter acesso a um alimento que eu preciso. Mas é também a fome de ter garantido a minha forma de se manter vivo. Atinge diretamente nesse processo quando o agronegócio é prioridade de um governo, em que ele prioriza também o agrotóxico, prioriza também a produção de alimentos apenas pelo lucro e não pela manutenção da vida.

Então estamos atingidos na nossa biologia, nossa mítica, nossa ancestralidade de total forma. Quando temos um governo que não respeita o território das comunidades quilombolas, das comunidades ribeirinhas, quando não respeita o povo originário, quando não respeita os povos de matriz africana, quando diz que nosso sagrado não é um sagrado, ele nos atinge e nos mata com fome, fome de tudo, fome de cultura, de alimento, de alimento tradicional. 

O Fórum vê isso como forma de nós nos reestruturamos, temos autogestão sobre o que nós nos alimentamos e para isso nós acreditamos exatamente na solidariedade, na produção local, na radicalidade de consumir aquilo que é produzido pelos nossos, e com o respeito que nós conduzimos. Então, hoje, o Fórum tem estabelecido como meta a constituição de um sistema nacional de desenvolvimento solidário, sustentável, ubuntu. E ubuntu não como essa palavra que o próprio colonizador assume de moda, mas um ubuntu que remete ao princípio em que eu sou pequeno, aquele princípio que eu estou do lado do outro, aquele princípio que reconhece o outro. Reconhece tanto o outro, e o outro não é um outro ser humano, é todo ser vivo, que faz encostar minha cabeça na terra sabendo que ela tem sabedoria para me dar, que faz eu beber a água sabendo que ela tem sabedoria para me dar. 

Acreditamos na autogestão, autogestão financeira e orçamentária de produção e de consumo, nas cooperativas, nas finanças solidárias, dos bancos e fundos solidários para gente poder realmente manter. Como diz o Emicida, nós por nós, a única saída sempre foi nós por nós.    


"A vida, ela pulsa, ela tem sentidos a mais do que o material, tem compreensões maiores do que o próprio ser humano, isso é espiritualidade" / Zé Gabriel / Believe.Earth

BdFRS - O governo de Jair Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea). Por sua vez, durante o governo Temer, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) sofreu perdas. Como recuperar os instrumentos de políticas públicas importantes para a segurança alimentar que foram esvaziados ou eliminados?

Kota - Recuperar o que se perdeu é muito complicado, voltar pelo mesmo caminho que se fez é muito complicado. E na nossa tradição é um ensinamento que os mais velhos dizem. Acreditamos que hoje nós olhamos para o passado para não refazer e não sofrer o que sofremos, mas aprender com os mais velhos como resistiram, ter os pés no presente lutando, ir para as ruas, estando inserido nas políticas públicas, mas olhando e sabendo que nós somos muito pequenos frente a isso. E o que nós fizemos é para, pensando em um mundo capitalista, que eles recebam a conta com crédito e não com débito, é a única forma.

Nós precisamos não voltar, mas precisamos, inclusive, que a esquerda veja nessas tradições antigas essa saída e aprenda com esse processo de quem sobreviveu nessa questão. Tenha nítido que nós não queremos o mesmo que o outro que nos destruiu quer, mas que a gente quer realmente a manutenção da vida, da espiritualidade, de uma política solidária.

BdFRS - O que te levou à escolha pela medicina? Como tu vês a situação da saúde atualmente no país? 

Kota - A gente costuma dizer que as pessoas têm escolha de estudar, mas para negros não era uma escolha, era o único caminho. Quando a frente negra se monta, ela monta pela alfabetização para que a gente entenda a língua do nosso escravizador, entender a forma como está colocada. E para que a gente possa, a partir das formas, estratégias que o próprio colonizador criou, que a gente possa constituir um caminho por dentro desse processo. 

Eu venho de uma família em que as mulheres eram basicamente domésticas, que faziam o trabalho doméstico, mantinham o trabalho doméstico. Eu sempre fui péssima nisso, e nesse sentido, por não poder ser uma doméstica que não fosse medíocre, eu não admito ser medíocre, eu queria ser uma profissional que eu pudesse desenvolver com competência. Doméstica com certeza eu não seria, eu admiro imensamente aquelas que o fazem, porque elas são experts, maravilhosas. Elas sabem a técnica, a prática de manter o doméstico sendo organizado nesse processo e ali tem uma vida. Eu não conseguia ver isso. 

Então eu queria ser médica, e estudar não era uma escolha, era a única coisa que eu tinha para fazer. Aquela velha frase, a única obrigação que você tem é estudar. Eu muito cedo entrei na escola, com 5 para 6 anos, alfabetizei com 6 anos de idade, fiz meu vestibular e entrei na universidade com 15 para 16 anos. E ser médica era acreditar em uma medicina em que os meus iguais, como minha mãe, não precisassem estar mendigando um atendimento; era brigar pelo Sistema Único de Saúde, era brigar por um atendimento público. E aí eu fui ser médica, fui ser pediatra porque eu não me imaginava cortando os outros para salvar. Eu acreditava que eram as crianças, sabia eu que era uma mulher de Dandalunda (na mitologia bantu, é a inquice das águas doces, fertilidade, fecundação, ouro, amor, beleza e riqueza associada ao orixá Oxum), e que essa água que reproduz crianças, mantém crianças. Acredito que eu segui o meu dom, o meu destino ancestral.   

E a saúde no Brasil hoje é muito triste, primeiro porque não temos saúde e por isso adoecemos. Não temos equilíbrio bio-pisiquico, social, ambiental, ancestral, de moradia. Não temos mecanismos, apesar do SUS prever isso, de manutenção desse processo. E frente a uma pandemia que estamos vivendo, eu também acredito que o vírus é pedagógico no sentido de mostrar a falência dos governantes na sua missão. O racismo estrutural, o racismo institucional, ele fez com que as instituições não cumprissem sua missão de garantir saúde e atendimento adequado. Passamos por uma privatização da saúde, um afastamento do compromisso do Estado com a saúde, vide essa PEC reformada que o governo atual apresentou, que desestruturava, tirava os fundos de educação e saúde. 

A saúde está em falência, um caos frente à pandemia. E tudo que o SUS não conseguiu o vírus conseguiu, porque o SUS é um Sistema Único de Saúde, portanto o atendimento privado também está dentro do SUS e a pandemia fez isso aparecer com muita transparência. O sistema privado que se afastava do SUS faliu frente à pandemia, sem condições de atendimento real às complicações que o coronavírus propõe. Não é só as pessoas que estão sem UTI, nós estamos na UTI sem ter uma UTI que nos atenda, porque não temos um governo que olhe para nós e que tenha preocupação de nos atender, de ter saúde coletiva e de constituir um atendimento à doença adequado.

BdFRS - No ano passado, no mundo inteiro, em especial no Brasil, o movimento negro teve um forte destaque através do "Vidas Negras importam" e através de episódios de violência sofridos pela população negra. Como ativista no movimento negro, como tu analisa o movimento atualmente? E como avançar na superação do racismo?

Kota - Realmente a questão do racismo também foi desvelada através das novas tecnologias, através do movimento importante, político, que aconteceu também nos Estados Unidos com a derrota do Trump, mais uma vice-presidência negra depois de ter tido um presidente negro, a vitória de um senador em um dos estados mais racistas como a Georgia. A mudança real da conscientização da população negra no sentido de reverter aquele processo fascista. 

Acredito que a população negra deveria resgatar a sua identidade de povo, os seus conceitos civilizatórios como um caminho, olhar para lá não só até a escravidão, mas para além da escravidão. Que é o que nós conseguimos fazer quando a gente resgata a nossa ancestralidade, saímos do espaço da escravidão e vamos para além desse processo. Como uma terapia jungiana, eu diria, que é aquela terapia que diz, se eu venci lá atrás eu posso vencer, recuperar exatamente aquelas ações, adequadas ao tempo de agora, e poder sair desse processo. 

O racismo é uma ideologia que criou ferramentas de manutenção e preservação dentro do processo capitalista, exploratório. A discriminação, o preconceito a partir da ignorância do que se vive, o negacionismo das questões evidentes. Nós poderemos recuperar a nossa autonomia frente à saúde quando recuperarmos as nossas plantas sagradas, as nossas florestas, as nossas águas com saúde, a forma de nos alimentar adequadamente, aí nós vamos recuperar também a nossa identidade. 

Tudo aquilo que disseram que era de pobre, roubaram esse processo, destruíram quem tinha a ideia de uma alimentação de subsistência e venderam para nós hoje como um processo diferenciado e valorado. Então, hoje, ter o seu prato e sua caneca é ser ecologista, para mim é ser da tradição de matriz africana, é ter minha dilonga. Hoje ter a sua horta é algo exótico, holístico, para mim é autonomia, soberania. 

Então a descolonização do ser, do poder e do saber, para mim, é a saída. 

BdFRS - Como avalias a condição das mulheres negras no Brasil?

Kota - Esses dias eu vi umas fotos, sabe aquelas fotos que a gente vê do Egito e que as pessoas insistem em negar, que o Egito é uma cultura africana? Se você ver e prestar atenção, as mulheres estão posicionadas em muitas fotos como se fossem o útero do mundo, com se fossem o útero daqueles que estão ali dentro, são as mulheres que têm asas, que podem voar. Na verdade, hoje, eu gosto muito daquele filme da Malevola, que quando alguém se vinga dela, corta as suas asas. Eu acredito que nós mulheres negras no Brasil, nesse momento, somos essas mulheres que tiveram as suas asas cortadas, mas que estamos na luta para recuperar. E mais, dizer que com asa ou sem asa, nós vamos voar. 

Eu acredito também que nós mulheres negras estamos muito contaminadas por um discurso que se afasta do princípio civilizatório da circularidade. Na circularidade, cada um, cada uma, cada ude, vamos chamar assim, nunca para nós foi necessário ser todos, todas, todes. As pessoas são as pessoas, têm uma função na roda, têm uma importância significativa e a nossa variável é tempo de dedicação ao coletivo, é tempo, idade e função. As mulheres negras estão nessa busca, nós temos um tempo, toda a constituição no mundo é feminina, nos tiraram essa concepção de poder e nossa tradição. Não disputamos o poder do outro, ao contrário, nós reconhecemos o poder do outro, só o que queremos é que se reconheça nosso poder. E o nosso poder é de voar, virar búfalo, transformar-se em água, se encantar para que a gente possa constituir uma sociedade melhor. 

Eu acho que as mulheres estão nesse sentido, mas a solidão, o processo de se encantar pelo capital, de se transformar em uma consumidora, também é sedutor, e por isso estamos na disputa de narrativas. Estamos enfrentando uma pandemia que nos leva a uma crise sanitária, econômica e civilizatória, a saída é escolher a civilização que tentaram nos tirar, afinal ninguém tentou tirar à toa, porque ela se contrapõe ao que está colocado.

BdFRS - O que a religiosidade e a cultura de matriz africana pode nos ensinar?

Kota - A tradição de matriz africana não tem uma concepção de religião. Religião é uma palavra muito nova, mas ela tem a concepção de espiritualidade e, como eu disse antes, espiritualidade eu poderia traduzir em vida. A vida, ela pulsa, ela tem sentidos a mais do que o material, tem compreensões maiores do que o próprio ser humano, isso é espiritualidade. E essa espiritualidade tem uma contribuição fatal para a mudança desse processo. Se nós não explorarmos todo esse processo dessa espiritualidade, essa amplitude da vida, nós vamos nos consumir e sumir no material. 

A contribuição real da espiritualidade da tradição da matriz africana é exatamente considerar tudo sagrado, quando eu danço não é profano, é sagrado, meu compromisso está em festa. Aliás, é o grande compromisso que eu fiz com o criador, que por mais que eu sofresse eu seria feliz, porque eu aceito a definição daquilo que o criador coloca e vou a luta para conceber uma aceitação melhor para o todo e por todo. Não tem na espiritualidade de matriz africana nada que seja por acaso e também não tem punição, nem pecado. Se eu estou sofrendo é porque em algum momento essa situação que eu estou colocada me levou ao desequilíbrio e eu vou buscar o equilíbrio para ficar melhor.

BdFRS - No mês de luta e resistência das mulheres, que mensagem gostaria de deixar?

Kota - Coincidentemente, o mês de março é o mês de luta das mulheres, é o mês que tem o dia mundial pelas águas e é o mês que tem o dia enfrentamento a todo tipo de racismo no mundo. Essa mensagem que eu gostaria de deixar: Não haverá um mundo melhor se não reconhecermos o poder feminino de manter a vida, a espiritualidade, sem água e com racismo.

O mês de março é um mês emblemático porque ele remonta que todas as mulheres são águas, e todas são sagradas, que a violência que hoje o capitalismo aplica sobre as águas é a mesma que aplica sobre as mulheres, sobre os corpos negros, corpos indígenas, corpos diferentes do eurocentrado. Águas, mulheres, corpos diferentes do eurocentrado são ameaçados. A nossa luta é única. A nossa luta é uma só, por uma civilização, por princípios civilizatórios que respeitem essas questões. Estamos em uma disputa civilizatória. A economia e a saúde não vão se equilibrar enquanto o princípio civilizatório dominante for o da exploração, da escravidão, da morte, da necropolítica.


:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato RS no seu Whatsapp ::

SEJA UM AMIGO DO BRASIL DE FATO RS

Você já percebeu que o Brasil de Fato RS disponibiliza todas as notícias gratuitamente? Não cobramos nenhum tipo de assinatura de nossos leitores, pois compreendemos que a democratização dos meios de comunicação é fundamental para uma sociedade mais justa.

Precisamos do seu apoio para seguir adiante com o debate de ideias, clique aqui e contribua.

Edição: Marcelo Ferreira