Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | Mulheres e Epidemias: um cenário de negligências

A epidemia de Aids e a tuberculose há muito já nos apontavam o quanto as epidemias não são democráticas

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"A invisibilidade das políticas para mulheres está articulada com as políticas de governos que paulatinamente promovem o desmonte das políticas públicas" - Flávio Dutra

As políticas públicas para o enfrentamento ao HIV e Aids têm negligenciado de forma importante as questões relacionadas às desigualdades de gênero e seus impactos no cenário da epidemia. Ao longo dos anos, estamos assistindo à desconexão da agenda proposta pelo governo federal com as questões relacionadas às garantias dos direitos humanos e em especial, os direitos humanos das mulheres e o enfrentamento às violências de gênero.

No último ano, com o advento da pandemia da covid-19, ficaram mais evidentes a importância de compreendermos o impacto das desigualdades de gênero, de raça/cor, econômicas e sociais no processo de adoecimento e/ou risco dos sujeitos. 

A epidemia de Aids e a tuberculose, há muito já nos apontavam o quanto as epidemias não são democráticas e atingem de forma desigual grupos historicamente excluídos e minorias, entre elas, as mulheres. A pandemia da covid-19 tem exposto de forma singular esta situação.

Segundo o Conselho Nacional de Saúde, as mulheres estão entre as mais afetadas. Isso porque elas são as mais expostas ao risco de contaminação e às vulnerabilidades sociais como desemprego, violência, falta de acesso aos serviços de saúde e aumento da pobreza. (Fonte: Conselho Nacional de Saúde).

Nesta seara observamos um recrudescimento da violência contra as mulheres, um aumento do número de feminicídios, um ataque sistemático aos direitos sexuais e reprodutivos, o cerceamento ao aborto legal, um incremento do desemprego e do trabalho precário entre as mulheres, a fragilidade das políticas sociais e ausência de resposta governamental articulada e comprometida com o enfrentamento desta conjuntura.

Além disto, as mulheres estão na linha de frente do cuidado, tanto nos serviços de saúde quanto do trabalho doméstico, remunerado ou não remunerado. Segundo o Conselho Nacional de Enfermagem, as mulheres correspondem a 85% das contaminações pela covid-19 entre profissionais de enfermagem e 64% dos óbitos nesta categoria. 

Mas, afinal, o que a epidemia de HIV e Aids tem a ver com isto? 

O impacto da pandemia nas políticas públicas de HIV e Aids no Brasil é inquestionável. Os dados do levantamento “O impacto da epidemia de covid-19 nos serviços de TB, HIV e Aids no Brasil” apontam redução de 18% nos recursos financeiros destinados às políticas HIV e Aids e superior a 50% nas equipes técnicas dos serviços. Consequentemente, temos retrações importantes na oferta de diagnóstico e nos serviços de assistência às pessoas que vivem com HIV e Aids bem como nas ações de prevenção. 

E qual a relação deste cenário no enfrentamento ao HIV e Aids entre as mulheres?

O desmantelamento de serviços para a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, que levaram ao aumento da mortalidade materna e o cerceamento das mulheres a métodos contraceptivos e insumos de prevenção combinados com o recrudescimento das violências e a crise econômica ampliam a vulnerabilidade das mulheres para uma infecção ao HIV. 

Os dados do levantamento “O impacto da epidemia de covid-19 nos serviços de TB, HIV e Aids no Brasil” refletem o quanto o acesso aos insumos de prevenção nos serviços de saúde é desigual. Enquanto 92% dos homens têm acesso a preservativo externo (camisinha masculina) e 34% a gel lubrificante no cotidiano dos serviços, este percentual se reduz, respectivamente, para 71% e 23% para mulheres. O acesso ao preservativo interno ainda é reduzido, somente 35% das entrevistadas relatam que têm acesso ao preservativo interno (camisinha feminina) e destas 20% ao PI de borracha nitrílica. 

Além do acesso reduzido aos insumos de prevenção, os dados do levantamento também demonstram o quanto as mulheres que estão vinculadas aos serviços de saúde estão alijadas das informações relacionadas as “novas estratégias de prevenção”. Os dados indicam que 49% das entrevistadas desconhecem a Profilaxia Pós Exposição e 51% nunca ouviram falar em Profilaxia Pré Exposição – PrEP. Importante ressaltar que a PEP é uma política consolidada há mais de 15 anos na rotina dos serviços do SUS e a PrEP, embora não seja de acesso universal e não esteja disponível para a maioria das mulheres CIS, foi incorporada nos serviços de saúde em 2017.

Este cenário fica mais complexo com o recrudescimento da violência doméstica. Segundo o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, no primeiro semestre de 2020,  houve incremento no número de feminicídios e de chamadas de urgência por agressão, o que indica o quanto o isolamento social intensificou a violência doméstica. Esta situação expressa menos possibilidades de gerenciamento de suas vidas sexuais, na adoção de métodos contraceptivos e negociação de práticas sexuais seguras.

A similaridade de alguns indicadores evidenciam a correlação entre as duas epidemias. O Brasil ostenta 77% dos óbitos de gestante e puérperas por covid-19 do mundo, sendo a taxa de mortalidade entre mulheres negras o dobro da taxa das mulheres brancas.

Quando comparamos este cenário com o retratado pelo Boletim Epidemiológico de HIV e Aids 2020 percebemos similaridades importantes. Segundo o Boletim houve um incremento de 21,7% nas taxas de detecção de HIV entre gestantes nos últimos dez anos, sendo que destas 49,5% se autodeclaram pardas e 13,7% pretas. Ainda, apesar das infecções entre mulheres terem demonstrado um decréscimo nos últimos anos; desde 2009, os casos de Aids são mais prevalentes em mulheres negras e a proporção de óbitos entre mulheres negras foi de 62%. A convergência destes cenários tangibilizam o quanto os contextos de vulnerabilidade são determinantes no processo de adoecimento e morte das mulheres. 

A crise abancada pela pandemia da covid-19 tem ampliado os retrocessos no campo da saúde, promoção e garantia de direitos, especialmente das meninas e mulheres negras. Este fenômeno está sincronizado com a avalanche conservadora e fundamentalista que tem assolado o Brasil. 

A invisibilidade das políticas para mulheres está articulada com as políticas de governos que paulatinamente promovem o desmonte das políticas públicas comprometidas com a promoção da emancipação e dos direitos das mulheres. Ou seja, o apagamento social das pautas das mulheres nas políticas de HIV/Aids e nas ações de enfrentamento a covid-19 é mais uma manifestação das violências de gênero.

Apesar do número de óbitos ser maior entre os homens, tanto a epidemia de Aids quanto a de covid-19 impactam de forma inquestionável a vida e os direitos das mulheres. Nesta perspectiva, o legado da pandemia de covid-19, para além da crise econômica e social, aponta para um recrudescimento da epidemia de HIV e Aids entre mulheres. 

Segundo o Instituto Lowy o Brasil é o pior país do mundo no enfrentamento à pandemia de covid-19. Em tempo, o Brasil é o quinto país com maior número de feminicídios e o país que mais mata mulheres trans no mundo.

8 de março é mais um dia de luta e resistência para nós, mulheres. 

Mais um momento para reafirmarmos e intensificarmos nosso compromisso com a construção de políticas que sejam feministas, antirracistas e que fomentem a emancipação e o protagonismo das mulheres.

Neste 8 de março, precisamos gritar ainda com mais força: parem de nos matar! 

*Ativista dos movimentos sociais de luta contra Aids e tuberculose, Presidenta do GAPA RS e Conselheira do Fórum ONG Aids RS

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko