Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | 64 jamais! Ele cairá e ela não voltará

Trinta e um de março e primeiro de abril são dois dias que ficaram marcados na página infeliz da nossa história

Porto Alegre | BdF RS |
No dia 31 de março de 1964, o Brasil viveu um dos seus períodos mais sombrios: o início da ditadura militar.
No dia 31 de março de 1964, o Brasil viveu um dos seus períodos mais sombrios: o início da ditadura militar. - Divulgação

Não é de hoje que o setor conservador e boa parte das Forças Armadas no Brasil tentam descarregar a culpa por suas atrocidades, golpes e atentados contra nossa tão jovem democracia à grande ameaça comunista no país. Sempre por meio do discurso de ódio que contamina um contingente da população, utilizando como aliados os veículos de comunicação de massa que repete o mesmo caminho de sempre: No primeiro momento apoiando e na sequência se arrependendo.

Trinta e um de março e primeiro de abril são dois dias que ficaram marcados na página infeliz da nossa história, como resultado de um processo covarde liderado no Brasil pelos grupos citados no parágrafo acima e com apoio e respaldo da maior potência capitalista global: Os Estados Unidos. Se na História aprendemos que os iluministas nomearam a Idade Média de Idade das Trevas, nós, povo brasileiro, vivenciamos as próprias trevas liderada por militares, conservadores, classe média e fiéis religiosos sendo, sua maioria ligada à Igreja Católica com seus padrões e definições tendenciosas de moralidade.

Aí estão exemplos que podemos nos aprofundar em outro momento, das consequências em ter as instituições religiosas no poder do Estado que deve servir à todas, todos e todes e não a uma única fé ou um único Deus. E hoje, a bancada evangélica no Congresso está a serviço dos interesses de quem mesmo? Aliás, quem na história torturou e matou em nome do Diabo?

Muitos foram os estopins que afrontaram os conservadores de plantão para justificar o golpe, como o conhecido discurso do então presidente da República João Goulart (Jango) e do governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola na Central do Brasil no Rio de Janeiro em 13 de março de 1964 para cerca de 200 mil pessoas. Na ocasião foram assinados dois decretos pelo presidente Jango, pois a Constituição de 1946 lhe garantia essa soberania. Um eles era o da desapropriação das refinarias de petróleo que ainda não estavam nas mãos da Petrobrás e o outro o decreto da SUPRA (Superintendência da Reforma Agrária) que declarava que estavam sujeitas a desapropriação as propriedades subutilizadas, especificando a localização e a dimensão das que estariam sujeitas a essa medida.

O presidente também afirmou em seu discurso que preparava a reforma urbana e as propostas que seriam encaminhadas ao Congresso, prevendo mudanças nos impostos e concessão de voto aos analfabetos e aos quadros inferiores das Forças Armadas. Isso gerou as sequentes manifestações denominadas de Marcha da Família com Deus pela Liberdade, uma série de manifestações públicas que aconteceram no período de 19 de março a 8 de junho de 1964. Algo semelhante com as recentes manifestações que demonizaram o Partido dos Trabalhadores (PT) e toda a esquerda em nome de Deus e da tão aclamada “família tradicional brasileira”.

No dia 31 de março de 1964, os militares apoiados pelos Estados Unidos deram início a um golpe de Estado. Jango foi deposto e exilado no Uruguai e Argentina, onde faleceu em dezembro de 1976 de um ataque do coração ou foi envenenamento? O que sabemos é que Jango, até o fim de sua vida sofreu, ininterruptamente perseguição política. Perseguição política que conhecemos de perto nos tempos de hoje, levando o ex-presidente Lula, um dos maiores estadistas de nosso tempo à prisão, fazendo-o perder seus direitos políticos por uma operação encabeçada por um juiz parcial, injusto e sem provas que ajudou a eleger um genocida.

O mês de abril ficou marcado em nossa história como uma página feia, manchada de sangue, dessas que preferimos arrancá-la do caderno e esquecer que um dia esteve ali, mas não dá. Minha geração pós-ditadura foi formada na escola, em casa, nas ruas e grupos de juventude, ouvindo histórias e como diz o eterno Gonzaguinha: “Memórias de um tempo em que lutar por seu direito é um defeito que mata.” Sou da geração do Fora Collor.

A minha geração, talvez a última geração de leitores, de frequentadores de cafés filosóficos, de olho no olho, de bater de porta em porta, de queimar muita sola de sapato caminhando no asfalto, na lama, no barro em busca de um ideal. Romantizamos a ditadura militar a ponto de sentir o cheiro da luta, das manifestações, quase que querendo estar ali nos protestos, nas guerrilhas. Estudamos Marx, Engels, Lenin, Gramsci, pensadores da história. Crescemos ouvindo Chico, Elis, Maria Bethânia, Caetano, Vandré, Gil, Milton, entre tantas referências e canções. Colocamos o Bloco na Rua em greves, movimento estudantil e cultural. Lutamos por educação, moradia, trabalho, comida. Conhecemos a luta de classes. Posicionamo-nos.

Romantizamos a ditadura militar a ponto de cantar Pra não dizer que não falei das flores de Geraldo Vandré como se tivesse sido composta para nossa geração, como nosso hino. Aprendemos como os que vieram antes de nós foram torturados e mortos e desenhamos seus rostos em bandeiras que nos serviram (e servem) de inspiração. Vestimos o vermelho e aprendemos a amar essa cor. Acreditamos que poderíamos mudar o sistema e fomos com toda a esperança, diversas vezes depositar nosso voto no metalúrgico para presidente e depois de muita insistência o elegemos.

Festejamos, invadimos praças, praias, fontes, ruas. Orgulhamo-nos e choramos de felicidade. Desfilamos nossas camisetas com as imagens de líderes revolucionários, broches, faixas. Participamos do MST, MTST, CUT, Sindicatos, APEOESP, UNE, UEE, UMES, UPES, Partidos Políticos de Esquerda que se tornaram referências para muitas e muitos de nós. Participamos de encontros, congressos, rachas da esquerda, brigas internas, mas quando saíamos às ruas, estávamos sempre do mesmo lado. Romantizamos a ditadura e falhamos.

Falhamos em acreditar que poderíamos fazer concessões ao sistema. Falhamos quando nos tornamos “apenas” governo e esquecemos a luta de base cotidiana que sempre fizemos com maestria, inclusive nos levando a governar o país. Esquecemo-nos dos ensinamentos básicos que aprendemos nos livros de história, filosofia e sociologia: Estratégia.

Falhamos ao abrir mão de tudo o que construímos para acreditar que apenas no governo faríamos mais. Falhamos ao pensar que a burguesia é burra e o sistema frágil. Falhamos ao parar no tempo e esquecer que cultura está além de qualquer estatística. Cultura é a base e identidade de um povo e está sempre em movimento e transformação. Falhamos em acreditar na fraqueza da mídia e que a justiça é justa. A justiça é relativa e muitas vezes uma caneta pesa mais do que toda uma nação. Falhamos em ignorar as futuras gerações e não dar o que recebemos: Formação de base.

Por essas falhas, muitas vezes ingênuas e românticas, tivemos algumas poucas vitórias, mas também presenciamos um golpe contra a primeira mulher eleita presidenta do Brasil. Um golpe do sistema contra o povo. Estávamos lá onde tudo começou, nos metalúrgicos do ABC quando nosso presidente, nossa referência maior foi preso. Choramos, choramos muito. Acreditamos por uma fração de tempo que estávamos perdidos e que havia sido tudo em vão. Por um lapso de tempo desacreditamos no povo que vestiu verde e amarelo e passou a aderir as ideias fraudulentas de um “pseudo-mito miliciano” e genocida e, de um juiz corrupto que nos culpavam por tudo o que acontecia no planeta.

Como disse o ator Lima Duarte em desabafo por meio de um vídeo logo após receber a notícia da morte do ator e amigo Flavio Migliaccio: “...Voltamos a sentir o bafo quente da ditadura...” Passamos a conviver dia a dia com o fascismo em cada esquina, em nossa porta, muitas vezes em nossa casa. Ouvimos todos os dias discurso de ódio e acompanhamos o surgimento da bancada da bala dentro do Parlamento.

Entramos na maior crise sanitária da história e batemos recorde de mortes em todo o Brasil. Estamos presenciando um genocida na Presidência que, por sua irresponsabilidade faz com que as coisas fiquem cada dia pior. Choramos a morte de familiares, amigas, amigos, artistas que foram vítimas da covid, muitas vezes por negligência de um governo que só pensa em nos demonizar.

Muitas e muitos de nós precisaram se exilar como Jean Willys e Marcia Tiburi que foram vítimas de ameaça. Outros e outras que permaneceram aqui sofreram atentado como foram os casos das vereadoras trans Érica Hilton e Carolina Iara. Outras perderam suas próprias vidas como Marielle Franco.

Continuamos românticos? Ah sim, claro, pois sem o romantismo não há ideal e sem ideal permanecemos no vazio e sem direção. Somos cada vez mais românticos por acreditar que o sistema vai mudar. Faz parte de cada um e cada uma de nós militantes, artistas, educadores(as), trabalhadores(as), lutar e acreditar em um mundo de igualdade social, sem censura, sem ditaduras e consciente.

Estamos vivos e na luta, reconhecendo nossas falhas e nos reinventando, nos resignificando assim como a cultura. Venceremos porque acreditamos no ser humano e sua capacidade de transformar. Estamos unidos(as) como nunca estivemos e enfrentaremos o bafo quente da ditadura de pé. Ninguém mais cai. Portanto nesta data, cabe a nós lembrarmos o golpe de 64 como algo que não queremos e não permitiremos que jamais aconteça.

Assim faremos por nossos filhos e filhas, netas e netos e por todas as gerações que virão depois de nós. Somos vanguarda de luta e assim sempre será. Ele não ficará e ela jamais voltará!

* Músico, ator, historiador e pesquisador de Cultura Popular Brasileira e Latino-americana.

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* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko