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A quem serve a pandemia? A face oculta da covid-19 no Brasil

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"São mais de 300 mil mortos pela covid-19, número registrado desde o início da pandemia no país, há cerca de um ano" - Créditos da foto: Reprodução
Governo federal protege o capital em detrimento da garantia da renda e do emprego dos trabalhadores

Meu nome é Iyalorixá Gildásia dos Santos, Mãe Gilda de Ogum. Meu templo foi invadido e depredado por fundamentalistas da Igreja Universal do Reino de Deus, que agrediram o meu marido violentamente. Dois meses depois, um jornal dessa mesma igreja publicou a minha foto, com uma tarja no rosto e a manchete “macumbeiros charlatões lesam a vida e o bolso de clientes”. Ao ver a publicação, eu não resisti. Em janeiro de 2000, aos 65 anos, tive um ataque cardíaco fulminante.

Meu nome é Cláudia Ferreira da Silva. Fui baleada no domingo, 16 de março de 2014, durante uma operação policial. Testemunhas contaram que fui colocada no porta-malas do carro da polícia para ser levada ao hospital. No entanto, durante o trajeto, o porta-malas se abriu, meu corpo caiu e foi brutalmente arrastado pelas ruas.

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Meu nome é Sheila Cristina da Silva, tenho 46 anos. Ao voltar do mercado no dia 10 de junho de 2016, encontrei o corpo do meu filho, Carlos Eduardo, 20 anos, na calçada, sob um lençol. Ele havia sido atingido na cabeça, por uma bala, quando estava na porta de casa, no Morro do Querosene. Desesperada, mergulhei as mãos na poça de sangue que se formou sob o meu filho e passei em meu próprio rosto. Aquele sangue era meu.

Eu sou Mirtes Renata de Sousa, no dia 2 de junho de 2020, meu filho, Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, morreu ao cair de uma altura aproximada de 35 metros, do nono andar do edifício Píer Maurício de Nassau, no Bairro de Santo Antônio, no Recife, onde eu trabalhava. Enquanto fui levar o cachorro para passear, minha patroa deixou o meu filho sozinho no elevador. Ela foi presa, mas liberada em seguida, após pagar uma fiança de 20 mil reais.

Desde a eleição de Bolsonaro, temos convivido com um projeto político que legitima a industrialização da morte

Meu nome é Marconi Eduardo Silva, sou nascido e criado no Rio de Janeiro. Minha mãe é dona Flávia e o meu pai é o seu Antônio. Eu sou o Marconi. Quem acompanha Amor de Mãe sabe que Marconi era um personagem, que foi baleado pela polícia numa das cenas da novela. No entanto, todos os outros casos aqui relatados fazem parte da dura realidade que vivemos em nosso país. São Cláudias, Amarildos, Carlos, homens, mulheres, jovens, sendo alvos constantes de um Estado que mata. E as nossas crianças? Marcos Vinícius, Ágatha, João Pedro, Miguel Ótavio…

Onde estão Lucas Manhães Silva, Alexandre da Silva e Fernando Henrique Soares, as três crianças desaparecidas desde 27 de dezembro de 2020, em Belford Roxo, no Rio de Janeiro?

Confrontos, agressões e homicídios desse tipo acontecem o tempo todo, em cidades grandes e pequenas, por agentes estatais armados e também por civis, levando a cabo a violência do Estado contra mulheres, contra a população negra, indígena, do campo, cigana, periférica e LGBTQIA+.

Apesar dos avanços nas políticas de direitos humanos no último período democrático no Brasil, temos convivido mais acentuadamente, desde a eleição de Bolsonaro e o início da pandemia, com um projeto político que busca introduzir inovações tecnológicas nas maneiras de legitimar a desumanização e a industrialização da morte, articulando racismo (extermínio das populações indígenas, quilombolas e genocídio da juventude negra), machismo (feminicídio das mulheres e população LGBTQIA+), desprezo à vida (negação da ciência, da vacina, do uso de máscaras e do isolamento social). São mais de 300 mil mortos pela covid-19, número registrado desde o início da pandemia no país, há cerca de um ano.

Em geral, trata-se da produção de narrativas que legitimam a crença na inviabilidade do ser humano e, portanto, naturalizam o retrocesso das políticas sociais e o ataque sistemático aos direitos humanos, bem como fazem parecer natural a expropriação do trabalho e a destruição máxima de pessoas.

Bolsonaro minimizou a gravidade da covid-19, a qual chamou de “gripezinha”, em 24 de março de 2020 e, posteriormente, ironizou dizendo que a pandemia “é uma realidade, o vírus tá aí. Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra. Não como um moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós iremos morrer um dia”.

Sabemos que a maioria das mortes seria evitável e isso constitui uma violação sem precedentes do direito à vida à saúde

O presidente recusou-se a adotar medidas para proteger a si e as pessoas ao seu redor, subestimando o uso de máscaras. Disseminou informações equivocadas sobre medicamentos sem eficácia comprovada; e tentou impedir os governos estaduais de imporem medidas de distanciamento social. Seu governo tentou restringir a publicação de dados sobre a covid-19, o que levou à criação do Consórcio de Veículos de Imprensa, que passou a divulgar diariamente os dados da doença.

Bolsonaro demitiu e segue demitindo ministros da Saúde, alguns por defender as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e outros, para minimizar o desgaste político, por fazerem exatamente o que ele preconiza, que é questionar a vacina, propagar remédios ineficazes (que o governo tem em grande estoque) para um tal tratamento precoce, também condenado pelos cientistas; promover aglomerações constantemente e atacar medidas de isolamento e distanciamento social.

O sistema público de saúde está em colapso em várias cidades brasileiras; faltam leitos de UTI, oxigênio, remédios para intubação de pacientes e materiais de proteção individual para os profissionais de saúde. Infelizmente, sabemos que a maioria das mortes seria evitável, por meio de uma estratégia de contenção da doença, o que constitui uma violação sem precedentes do direito à vida e do direito à saúde e, por consequência, aos direitos humanos dos/as brasileiros.

O que está por trás dessa política de morte

É preciso ver além da superfície, para se entender o que está por trás da política do governo federal de negar a gravidade da pandemia e tentar impedir a implementação de uma política de prevenção e combate eficaz ao coronavírus, para salvar vidas.

A posição negacionista está muito fundamentada em razões econômicas e políticas. E, neste sentido, a pandemia serviu e está servindo muito ao governo Bolsonaro. No início da pandemia, o governo federal lançou um pacote de medidas, por meio de decreto, que privilegiou imensamente o empresariado, com a justificativa de preservação de empregos. Foram permitidas a suspensão temporária dos contratos e a redução da jornada de trabalho dos contratos celetistas.

A posição negacionista do governo de Jair Bolsonaro está muito fundamentada em razões econômicas e políticas

Sabemos que qualquer alteração no arcabouço da legislação que protege o trabalhador, ainda que temporária, cria uma vulnerabilidade e abre precedentes perigosos. E isso aconteceu logo após a aprovação da medida provisória que criou a chamada Carteira de Trabalho Verde e Amarela, uma modalidade de contratação voltada para jovens com idades entre 18 e 29 anos e com redução de direitos trabalhistas em relação às regras existentes aplicadas pelo mercado. A medida passou a valer também para trabalhadores que têm acima de 55 anos, desempregados há pelo menos 12 meses, e para trabalhadores rurais. Para esses contratos, o pagamento mensal tem de seguir o teto de um salário mínimo e meio, o equivalente a R$ 1.558,50. Essa medida valerá até 31 de dezembro de 2022, mas como os contratos devem ser de 24 meses, podem ultrapassar a validade, dependendo do momento em que for iniciado.

Pois bem, vivemos o momento de maior fragilização dos trabalhadores pós Constituição de 1988. E não podemos deixar de fazer, aqui, o recorte de gênero e raça, porque são as mulheres negras as que mais sofrem com o desemprego. São elas que estão submetidas ao trabalho precário e informal, sem nenhuma proteção social; são elas as primeiras a ficarem desempregadas; são elas as que ganham os menores salários.

Porém, se os trabalhadores e trabalhadoras estão sendo atingidos/as de forma agressiva, o mesmo não se pode dizer dos bancos e do mercado financeiro. O Banco Central implementou um pacote de medidas para injetar dinheiro no mercado, com a justificativa de amenizar os efeitos da pandemia e aumentar o crédito. O pacote somou R$ 1,2 trilhão, ou seja, 16,7% do produto interno bruto. Em outras palavras, o governo federal fez vários movimentos para proteger o capital em detrimento da garantia da renda e do emprego do trabalhador e da trabalhadora. Mas foi isso que apareceu para a sociedade? Não!

A mídia tradicional repercutiu de forma muito incipiente a diretriz proposta pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, na reunião ministerial de 22 de abril de 2020, cujo vídeo foi divulgado em 22 de maio, por decisão do ministro do STF, Celso de Mello. “Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos para salvar grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas pequenininhas”, disse o ministro Guedes.

E sobre os servidores públicos, na mesma reunião, ele afirmou que “é nessa confusão toda, todo mundo achando que estamos distraídos, abraçaram a gente, rolaram com a gente, nós já botamos a granada no bolso do inimigo, dois anos sem aumento de salário”. Na visão do ministro Paulo Guedes, os servidores públicos são os inimigos e, portanto, merecem ser alvejados ou mesmo “explodidos”.

Entretanto, o que apareceu com destaque na mídia foi o auxílio emergencial, que o governo tinha posição contrária, depois concordou em fixar em R$ 200,00. Somente por força e iniciativa dos partidos progressistas, foi aprovado no Congresso o valor de R$ 600,00. Concedido, o governo não quis prorrogar e, mais uma vez, após pressões, concordou em pagar mais uma parcela, mas com redução para R$ 300,00 no ano de 2020. Em 2021, nenhum auxílio foi pago até o momento, quando fechamos o mês de março.

Assim, mais de 80 milhões de brasileiros se inscreveram para acessar o auxílio emergencial (51,1 milhões se cadastraram para receber o benefício). O Instituto Dataprev afirma que há outros 33 milhões de cadastros inelegíveis, que estão há mais de três meses sem nenhuma renda. Somente no dia 12 de março foi aprovada a PEC Emergencial, prevendo um benefício médio de R$ 250,00, a ser pago em até quatro parcelas, com investimento máximo de 44 bilhões de reais.

Vejam bem: estima-se que de 200 a 300 bilhões de reais o governo “gastou” com o auxílio emergencial. Para os bancos, trabalha-se na casa dos trilhões. E crédito? Alguém teve? Algum micro e pequeno empresário recebeu algum empréstimo? Não! A que se deve isso? É só incompetência, ingenuidade, leniência? A questão é que estamos vivendo no limite de expansão do capitalismo e assistimos, mundialmente, a um momento de intensificação da exploração.

Pandemia é usada para favorecimento do capital

Alicerçados numa ideia de que o ser humano é supérfluo, o que vivemos é a intensificação da exploração do trabalhador, operado por meio do racismo, que se traduz no aumento da segregação e da xenofobia. Nesse caso, a pandemia tem sido uma excelente desculpa para o favorecimento do capital. Essa é uma das razões que justificam a total morosidade do governo federal, em relação a qualquer ação de combate à pandemia, principalmente quanto à aquisição de vacinas, única forma de vencermos de vez a covid-19.

Não gratuitamente, o Ministério da Saúde adota uma posição reativa e descoordenada. E como justificar para a população esse imobilismo? Nada justifica nos tornarmos uma ameaça global e o epicentro da pandemia, com recordes diários de óbitos e contaminação.

O governo Bolsonaro adotou, ainda, a pauta dos costumes e do fundamentalismo religioso, não somente para ganhar o apoio das igrejas neopentecostais. O apelo à religião é usado como estratégia de comunicação, para manter o caráter autoritário de seu governo. Ele usa a bíblia e o jargão “versicular”, para relativizar a quarentena, colocando em risco as parcelas da população “que podem ser descartadas, mortas”.

Vivemos o momento de maior fragilização dos trabalhadores pós Constituição de 1988 e são mulheres negras as que mais sofrem com o desemprego

Fábio PY escreveu, no Intercept, em 1º de maio de 2020 que “quando ele (Bolsonaro - Messias) se desenha sob a autoridade messiânica, menosprezando a importância do isolamento (ou dizendo que o vírus já passou ou é uma “gripezinha”), aproxima-se das ideias da típica eugenia social tão operada no passado pelos governos fascistas. E o que é pior, está em curso uma tentativa de avançar na centralização das polícias para alcançar um estágio de vigilância geral. Uma distopia social opressiva que desconsidera o direito à vida das mulheres, negros, indígenas, ciganos, LGBTQI+, dos pobres”.

Se Bolsonaro conseguiu politicamente ter ganhado com a pandemia, essa fase parece ter se encerrado. Agora, não haverá mais ganhos para nenhum setor. Efetivamente, não há vacina, não há política de prevenção e combate à covid, o auxílio emergencial aprovado mal paga um botijão de gás, não há política educacional, de assistência social e de saúde. Isolado, sem capacidade de iniciativa política, parece cada vez mais encurralado e à procura de saídas extremistas. Apenas no dia 29 de março, seis ministros foram substituídos no primeiro escalão do governo (Casa Civil, Justiça e Segurança Pública, Defesa, Relações Exteriores, Governo e Advocacia-Geral da União).

Essa é a situação que está posta. E qual a nossa tarefa? Neste momento, é contraditar e resistir, restabelecer o diálogo com a sociedade e não apenas com os movimentos sociais organizados. Precisamos ser capazes de imaginar a expansão da liberdade e da justiça no mundo. Não há o que esperar, o momento é de vacinação em massa, de dar pão a quem tem fome e dar fome de justiça a quem tem pão.

Macaé Evaristo é vereadora de Belo Horizonte pelo Partido dos Trabalhadores.

Edição: Larissa Costa