Rio Grande do Sul

SEGURANÇA ALIMENTAR

Povos de matriz africana no RS lutam há um ano na Justiça por cestas básicas

Famílias estão desassistidas em meio ao agravamento econômico gerado pela pandemia de covid-19

Povos tradicionais de matriz africana no Rio Grande do Sul estão desde abril de 2020 tentando garantir, na justiça, sua segurança alimentar - Foto: Luis Adriano Madruga/FASC PMPA

Os povos tradicionais de matriz africana no Rio Grande do Sul lutam na Justiça por cestas básicas desde abril do ano passado. Representantes do segmento em Porto Alegre buscaram a Defensoria Pública da União (DPU), que ingressou com uma Ação Civil Pública contra: União, Estado do RS, Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) e Fundação Palmares – trata-se de uma ação inédita no Brasil e que poderá tirar da “invisibilidade” milhares de famílias de cultura negra, ligadas a terreiros, que estão em situação de vulnerabilidade alimentar.

Em junho de 2020, o pedido de liminar foi negado. Em dezembro, após agravo de instrumento, a solicitação foi aceita, por dois votos a um, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), e o pedido estendido para os povos de matriz africana e quilombolas em todo o Rio Grande do Sul. Houve uma indicação do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do RS (Consea-RS) da necessidade de ao menos 3 mil cestas básicas.

Porém, até o momento, muitas famílias estão aguardando o recebimento desses alimentos explica Itanajara Almeida, coordenadora do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (FONSANPOTMA), e uma das integrantes do grupo que procurou a Defensoria Pública da União.

Decisão do TRF-4

O acolhimento do TRF-4 aponta para uma vitória, mas precisa ser levado em conta outra informação da coordenadora. “Ao todo, são 60 mil Ilês ou terreiros, no Rio Grande do Sul, sendo 20 mil na Grande Porto Alegre.”

O grupo conseguiu mapear pelo menos 1,5 mil famílias especificamente de Ilês ou terreiros, em situação de vulnerabilidade alimentar apenas na região metropolitana da Capital. Foram recolhidas informações e CPFs dessa famílias.

Itanajara chama a atenção para o fato de que a ação judicial tramita desde abril do ano passado. “Neste período, pelo menos 1,5 mil famílias estão sem alimentos.”

Iyá Nara de Oxalá, que mantém o programa “Quem tem pouco ajuda quem não tem nada”, em sua comunidade, na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, esclarece que Mãe e Pai de Santo são profissões e com os terreiros fechados em decorrência da pandemia de coronavírus, muitos ficaram sem recursos. “Há casas com mais recursos, mas há também os terreiros pequenos, que já dependiam de doações dos seus integrantes, ou dos jogos de búzios ou cartas.”, exemplifica.

As duas mulheres entendem a dificuldade do cadastramento desse segmento porque 83% dessas famílias estão espalhadas pelo Rio Grande do Sul. “Diferentemente dos quilombolas e dos indígenas, que são encontrados em em seus locais de origem, os povos de matriz africana, não”, relatam.

Por isso, o grupo envolvido no movimento pelas cestas básicas, ao qual as duas integram, procurou também a secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado. “Nos foi informado que seria necessário inscrição no Cadùnico, à cargo da Secretaria do Trabalho e Assistência Social do RS (STAS)”.

O Cadastro Único reúne informações sobre as famílias brasileiras em situação de pobreza e extrema pobreza. Os dados são utilizadas pelos governos federal, estaduais e pelos municípios para implementação de políticas públicas para melhoria da vida dessas famílias.

Com a informação da SJCDH, procuraram a secretaria de assistência social do RS. Foram recebidos em duas oportunidades pela secretária Regina Becker.  “Na STAS nos informaram que o CadÚnico do governo federal encontra-se fechado no momento. Ou seja, já conversamos com as duas secretarias, que literalmente passam a bola de uma para outra”, lamenta Itanajara.

Procurada pela reportagem, a secretária Regina Becker relatou que, mesmo o assunto não sendo de reponsabilidade da STAS, mas sim da secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado (por se tratar de povos específicos), encaminhou correspondência para o Ministério da Justiça.

No documento, a secretária estadual expôs o relato e solicitou a possibilidade de inclusão dessas famílias no CadÚnico ao ministério. “Não recebi resposta”, contou Becker Falou sobre a dificuldade de inclusão de novas classificações no cadastro. “Acredito que seria necessário uma legislação nesse caso porque teria de se mudar o procedimento do registro em todo o Brasil”, avalia.

Perguntada sobre a possibilidade de a STAS ter alguma alternativa para entregar cestas básicas a estas famílias durante a pandemia, Becker ressalta que a STAS não realizou nenhuma entrega de cestas básicas e que a pasta não possui orçamento para isso. “Nós não temos orçamento”, enfatizou. “A STAS tem uma verba de 5 milhões de reais que é rateada com todos os municípios do Rio Grande do Sul para programas de assistência social, é um dinheiro ‘carimbado'”, concluiu.

Disse que há uma expectativa de recursos para distribuição de alimentos por meio de uma portaria (número 618) do governo federal, de 22 de março. “Temos essa portaria, mas não sabemos o valor nem a quantidade de cestas básicas nos serão destinadas.” Seria, conforme a secretária, uma alternativa para inclusão desses povos específicos.

Importância de registro oficial

O conselheiro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar no Estado (Consea-RS), o advogado Leonardo Ferreira Pillon, afirmou que o órgão vem alertando os governos para o aumento da fome desde que começou a pandemia de coronavírus.

Para ele, o registro dos povos tradicionais de matriz africana em cadastros governamentais teria ajudado a impactar menos essas comunidades diante da crise agravada pela pandemia. “No começo das políticas públicas se fez mapeamento de quilombolas e indígenas. Essas pessoas nem sabiam que tinham direitos”, esclarece.

Os dados servem para uma série de melhorias para as comunidades. A falta do registro tem um efeito danoso de “descompasso entre registro oficial e a realidade”, como o que está ocorrendo nesse momento em relação aos povos de terreiros. O registro oficial “resolve as coisas com mais celeridade”, diz Pillon. Exemplifica com o fato de terem sido identificadas ao menos 1,5 mil famílias de terreiros aptas a receberem alimentos, contrapondo o número oficial (defasado) do governo de 323 famílias no Rio Grande do Sul.

Invisíveis

“Os chamados povos tradicionais (como os povos tradicionais de matriz africana e ciganos, por exemplo) são invisíveis perante o Estado”, afirma o defensor público da União Daniel Cogoy.

Ele comenta que esta ação, inédita no Brasil, terá um valor muito significativo. “Apesar de não ser o objeto da ação, um dos reflexos dela será torná-los [os povos tradicionais de matriz africana] visíveis”, ressalta.

Uma das críticas do grupo que buscou a DPU também trata dessa “invisibilidade”. Por ironia, até mesmo na ação civil, foi levado em conta apenas o registro do CadÚnico, que não abarca o número que segundo os representantes seria o correto – de famílias em vulnerabilidade. “Nós nunca fomos incluídos no CadÚnico, mas nem por isso deixamos de existir. É isso que a justiça não vê! Quanta gente não é atendida”, aponta Itanajara.

O defensor explica que a estrutura legal precisa cercar-se de dados seguros, porque é necessário que o auxílio chegue “aos realmente pobres”. Fora do cadastro governamental se torna mais frágil a informação, argumenta. “Poderia comprometer esse direito” que está sendo buscado.

Ele reafirma o caráter sem precedentes da ação dos povos tradicionais de matriz africana no Rio Grande do Sul. Aponta que apesar de estar em tramitação, foi muito importante a decisão do TRF-4, de acolhimento da narrativa.

Porto Alegre

No âmbito municipal, a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) informou, por meio de sua assessoria, que com a pandemia de coronavírus aumentou a demanda por cestas básicas.

“Inclusive, temos um novo perfil na cidade, de pessoas que nunca tinham recorrido a este auxílio, que tinham renda, ficaram desempregadas e agora necessitam de alimentos”, informou a Fasc.

Segundo a fundação, qualquer morador da Capital pode requerer ingresso no CadÚnico por meio dos 22 Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) espalhados por zonas na cidade.

Edição: Agora no RS