Rio Grande do Sul

Coluna

O genocídio inédito e a tortura de sempre

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"O governo federal deu dimensões catastróficas à pandemia da covid-19 a partir da negação objetiva em adotar as práticas e medidas adequadas" - Sergio Lima/ AFP
Tortura é uma atrocidade classificada, ao lado do extermínio, como crime contra a humanidade

Dois fatos se entrecruzaram nestes últimos dias revelando um Brasil que vive uma luta entre o passado e o futuro, de marchas e contramarchas.   

Neste último dia 30 de abril, em uma assembleia virtual que reuniu aproximadamente 1000 pessoas, foi criada a Associação Nacional em Apoio e Defesa dos Direitos das Vítimas da Covid-19 – Vida e Justiça. Uma articulação da sociedade, de sindicatos e entidades, cientistas, trabalhadores da saúde, familiares de vítimas e sobreviventes. O centro da iniciativa está em perceber e denunciar que as mais de 400 mil mortes por covid-19 não se deram exclusivamente por razões de ordem biológica ou por fatalidades, mas foram, antes de mais nada, resultado de uma omissão programada por parte do governo brasileiro.

Neste mesmo final do mês de abril surgiram denúncias de que Rodrigo Grassi Cadermartori, conhecido como Rodrigo Pilha, foi vítima de tortura sob custódia do sistema penal do Distrito Federal. Rodrigo Pilha foi detido ao classificar Jair Bolsonaro como genocida em um ato público na Praça dos Três Poderes. Sua prisão em flagrante se deu com base na Lei de Segurança Nacional e foi mantido preso por uma condenação de desacato anterior. A Ordem dos Advogados do Brasil, o Conselho Nacional de Justiça e a Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Deputados estão solicitando esclarecimentos sobre as reveladas práticas de tortura promovidas por agentes penitenciários no interior do Centro de Detenção Provisória II. O STF deverá analisar um “habeas corpus” impetrado pela defesa de Rodrigo Pilha.

Estes dois fatos se entrecruzam porque revelam-se como crimes contra a vida humana perpetuadas pelo aparelho de Estado a partir de decisões de governo. O governo federal deu dimensões catastróficas à pandemia da covid-19 a partir da negação objetiva em adotar as práticas e medidas adequadas e consagradas pela Organização Mundial de Saúde e pela grande maioria dos países, os quais reconheceram que, exatamente pela dimensão e letalidade do vírus, as ações coordenadas e articuladas pelo poder público seriam decisivas para a contenção da crise e a preservação de vidas.

Não se pode debitar em hipotéticas deficiências do sistema público de saúde a dimensão da crise. Ao contrário, o Brasil sempre foi uma referência mundial no campo das campanhas de vacinação e de combate à pandemias. O governo Bolsonaro procedeu a uma verdadeira sabotagem ao SUS, reduzindo valores e diminuindo serviços e estruturas de atendimento levando a atenção básica e hospitalar ao colapso. Se negou a negociar vacinas com os laboratórios, a quebrar patentes, a cooperar com os estados e municípios e combateu permanentemente as medidas não farmacológicas de enfrentamento à pandemia como o uso de máscaras e o isolamento social. Trata-se de um genocídio porque a catastrófica política antipandêmica não se deu por falência do sistema ou inépcia, ainda que isto abunde no governo, mas sim porque se deu de forma racional, organizada e seletiva.

Tortura é uma atrocidade classificada, ao lado do extermínio e do massacre, como crime contra a humanidade. No caso de Rodrigo Pilha, a tortura está associada ao uso da Lei de Segurança Nacional, a qual vem sendo usada ostensivamente para reprimir as opiniões desfavoráveis a Jair Bolsonaro, e deve ser vista como um método racional e organizado de silenciar a sociedade e as vítimas.

A tortura, como prática recorrente nos presídios brasileiros, é um mecanismo de eliminação social. Neste caso, tal e qual nos anos de chumbo da ditadura militar, passa a tomar também contornos de mecanismo de eliminação política. Tortura é um crime hediondo e inafiançável e quando cometido por agentes do Estado, em um ambiente de necropolítica e apologia às ditaduras, toma a dimensão de crime continuado e naturalizado na forma de método de disputa política e de governo.

Ambos os casos são evidências de que não tratamos da exceção, do extraordinário, mas sim de uma política de governo realizada pelos instrumentos do Estado contra a sociedade. A denúncia sobre a tortura e a organização das vítimas da catástrofe são a sinalização que, ao menos parte da sociedade e parte do sistema político, reconhecem que tratam-se ambos de crimes em escala cometidos pelo governo e não pretendem consentir ou coabitar com tal infâmia.

A necessária reparação às vítimas e o indiciamento dos responsáveis, assim como também o reconhecimento de que os crimes cometidos por governos como da Ditadura e como Bolsonaro se inserem na intencionalidade de retirar direitos, eliminar conquistas, espoliar o trabalho, roubar a altivez e a autoestima da nação, são bases comuns que relacionam a decisão de organizar as vítimas da pandemia à histórica criação da Comissão da Memória e da Verdade.

Ambas foram iniciativas para não deixar impunes os criminosos e, no escuro do segredo, seus crimes. Revelá-los e denunciá-los são os grandes passos para impedi-los.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko