Rio Grande do Sul

Literatura

Márcia Barbosa apresenta um livro repleto de poesia urgente

Em "No faro das migalhas", escritora apresenta 63 textos que vão do lirismo à acidez; confira entrevista com a autora

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Autora retorna à poesia depois de três anos - Arquivo pessoal

A arte da palavra é, salvo raras exceções, reflexo das entrelinhas do enredo do artista-autor. Reflete o tempo, as relações, as transformações, o mundo, as humanidades e, até mesmo, a falta de humanidade. Alegrias e dores. Esperanças e desesperos. Ideais e distopias.

“No faro das migalhas”, livro de poesia recém lançado por Márcia Barbosa, diz muito a respeito disso. É até mais que reflexo, desperta a ideia de algo sensorial, aguça os sentidos e desperta as ações do sorrir e do revoltar. Encanta e chama para ação. O fez nas letras musicadas por Raul Boeira no CD “Cada qual com seu espanto”, de 2016. Retornou no ano seguinte, em livro, com o visceral “Duas fomes” (Gradiva Editorial). Depois de um hiato de três anos volta à carga com ainda mais sensibilidade e força com o recém lançado “No faro das migalhas” (Editora Class).

“A palavra sangra, morre, mata, mas adquire matéria sólida, voa e talvez nos salve. E a imobilidade que sentimos transfigura-se em força, no eco da poesia de Márcia Barbosa", afirma Paulo Ricardo Kralik, professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS, na “orelha” do livro. “Não mais silêncio, mas grito. No faro das migalhas é poesia com todo o seu sentido de urgência”.

Igualmente forte é a impressão de Gaudêncio Fidelis, artista plástico, curador, doutor em História da Arte, no texto de apresentação, ao afirmar que o livro “é uma tormenta metafórica em uma época em que a metáfora vem sendo rechaçada, justamente ela que é indispensável para uma compreensão abrangente do mundo; é um universo deslumbrante de imagens, uma luz que faz os sentidos serem ativados a cada instante da leitura e permanecerem em estado de alerta enquanto atravessamos o texto”.

Conversamos com a autora acerca do livro, do ofício da artista-autora e, claro, da forma como representa o seu compromisso social no ofício da palavra. Confira:

Brasil de Fato RS - A arte, em tempos de violações, assume o papel de resistência. É espaço físico e simbólico onde se expressa a revolta, o desespero, o medo. Ao mesmo tempo tem o desafio de esperançar, de reagir, de resgatar. “No faro das migalhas” segue por este caminho?

Márcia Barbosa - A arte pode ser um espaço de resistência, mas isso depende de cada autor, da maneira como ele se situa no mundo e capta aquilo que acontece a seu redor. Eu entendo essa resistência de um modo amplo. Resistir é denunciar, manifestar o temor e a indignação diante das violações, mas também é voltar o olhar para tudo que é o oposto disso, a arte, o amor, a memória afetiva, os pequenos prazeres do cotidiano, as surpresas que a paisagem nos oferece.

Nós precisamos dessas “migalhas” para sobreviver, para manter aceso o desejo de existir e de enfrentar a barbárie. Nesses dois sentidos, o meu livro segue, sim, por este caminho, pois protesta e se encanta, desacomoda, promovendo a visão, a sensação de tudo o que nos sufoca e também das experiências que provocam em nós uma espécie de alumbramento.

BdFRS - O livro se divide em duas partes. Por que essa opção? É um contraponto entre temas e discursos que evoca essa divisão em seções, ou trata-se de um espelhamento entre cá e acolá de versos e “inversos”?

Márcia - Há um contraponto e, ao mesmo tempo, um espelhamento entre as duas partes. A primeira seção, intitulada “Espectros e a palavra sangrada”, tem um tom mais sombrio, trata da morte, do advento do fascismo, das desigualdades sociais, do racismo, do machismo, dos problemas ambientais. Já segunda seção, denominada “Quase canto”, aborda os elementos que nos levam ao espanto e ao deleite.

Mas não existe só uma relação de oposição entre as duas partes; há também a observação de uma mesma temática – seja ela a censura à arte, a morte, a discriminação – sob diferentes perspectivas, pois aquilo que nos fere e nos mata pode ser também aquilo que nos move na direção contrária.

BdFRS - A arte da palavra – em especial a poesia – não se aquieta frente a mão que se acha forte ou o tempo que por vezes se propõe obscuro. Ela enfrenta e abre caminhos. Ela olha para trás e alumia adiante. Pudemos notar isso de forma mais singela nas letras de “Cada qual com seu espanto” e de forma mais demarcada em “Duas fomes”. E agora, o que encontraremos ao ler “No faro das migalhas” e arriscar olhar adiante?

Márcia - De um lado, "No faro das migalhas" aponta para a presença de um passado redivivo a nos assombrar. As marcas de um país escravocrata que não realizou a segunda abolição, o machismo e a misoginia, o fascismo que recorre ao ufanismo e ao moralismo para se impor, tudo isso persiste e continua a fazer vítimas diante de nossos olhos.

É esse passado que aparece, por exemplo, nos poemas “A marca”, “Espectros” e “Eu vi uma mulher morta”, em que se afirma: “O tempo elástico avança mas retorna”. De outro lado, o livro olha para a frente e mostra que, apesar do retrocesso, a reação a tudo isso continua, embora nem sempre seja perceptível ou tenha resultados imediatos.

Os últimos versos de “Espectros” falam desse novo cenário que se desenha por entre as sombras e apesar da escuridão: “Agora mesmo enquanto os fantasmas se regalam / reunidos na sala de estar / há uma aresta que desponta, uma ruga, um declive / [...] um redemoinho se encorpando / às vezes invisíveis a olho nu”. Os poemas farejam essa luz esquiva, às vezes difícil de ser identificada, mas ainda viva.

BdFRS - Em que intensidade o mundo distópico em que fomos jogados – de modo destacado o recorte de nosso país e sua realidade político-social – influencia teus escritos? A doença que nos ronda em forma de pandemia contamina a palavra? A doença que nos ronda em forma de neofascismo contamina a palavra? Como podemos seguir olhando para o belo e o singelo em meio a tanto caos?

Márcia - A extrema direita promoveu, nos últimos anos, uma espécie de culto àquilo que eu chamo no poema “Orfeu ressuscitado” de “palavra casta / assexuada / neutra/ sem história / sem partido / a salvo da ciência”. Essa palavra pretensamente neutra é utilizada com o pretexto de que não se deve politizar as discussões sobre os rumos do país, sobre a pandemia, como se isso fosse possível, e também serviu para negar os fundamentos científicos.

Em contraposição a essa palavra que se quer “casta”, o meu livro traz a “palavra encarnada” em poemas que, muitas vezes, mergulham nas sombras, para iluminar aquilo que alguns desejam negar. É uma poesia que se deixa contaminar por aquilo que vê e ouve, que não fecha os olhos para a pandemia e para as mortes que choramos, nem para o neofascismo, nem para a exploração e a marginalização vigentes no sistema capitalista.

Por isso, o poema “Inventário”, que fala da população que vive nas ruas, dos sem-teto, diz no final: “De que serve sujar as mãos e estas páginas tão alvas? / [...] se não existissem as imagens / assim, emendadas numa colcha de retalhos, / também não existiria a variedade. / E a palavra, ensaboada, / seria insípida, inodora, incolor”.

Então, as palavras enunciadas no meu livro se deixam contaminar porque é neste mundo que eu vivo, é contra ele que eu me posiciono, e é dele que a minha poesia se alimenta. Ao mesmo tempo, é justamente para sobreviver ao caos, para resistir à barbárie que necessitamos dirigir o olhar para o que é belo e singelo, para os “pedaços de aventuras”, como eu digo em “Este amor”, para a arte que nasce dos escombros, “riscando falta contra falta”, como se vê em “Supervivos”, o último poema do livro. Precisamos lançar para o nosso presente, difícil e sombrio, para o nosso país, uma visão que não seja fatalista, sabendo que esta realidade que nos oprime pode ser transformada.

 

Um livro repleto de urgências

A arte da palavra – em especial a poesia – não se aquieta frente a mão que se acha forte ou o tempo que se diz obscuro. Ela olha para trás, enfrenta e segue: alumia adiante. Márcia Barbosa tem feito isso em seus versos. “No faro das migalhas” é um livro repleto de urgências. E sua leitura, assim como seus textos é, sim, urgente.

Não recortamos um poema para que o leitor do BdFRS leia por aqui. Fica o convite para que conheça o livro todo e, assim como este que aqui escreve, se desenvolva a percepção de que as peças – ainda que avulsas – ao serem reunidas na mesma lombada, se interconectam como imagens refletidas no espelho: ainda que separadas por dois universos físicos distintos, estão inevitavelmente reunidas como verso e inverso, imagem e reflexo.

Sobre a autora

Márcia Helena Saldanha Barbosa nasceu em Quaraí (RS), em 1963. É doutora em Teoria da Literatura pela PUCRS e foi professora titular da Universidade de Passo Fundo. É autora de "Sophia Andresen, leitora de Camões, Cesário Verde e Fernando Pessoa" (2001) e de diversos estudos sobre poesia publicados em livros e revistas acadêmicas. Em 2016, estreou como letrista no CD "Cada qual com seu espanto", de Raul Boeira, e, em 2017, publicou "Duas fomes", seu primeiro livro de poesia, pela Gradiva Editorial (RJ).

Serviço

Título: No faro das migalhas | Autora: Márcia Barbosa

ISBN : 978-65-88865-28-6 | Formato: 14 x 21 cm.

Páginas: 122 | Gênero: Poesia

Publicação: Class, 2021 | Valor: R$ 38,00

Link: https://bestiario.com.br/livros/no_faro_das_migalhas.html


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Edição: Marcelo Ferreira