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Coluna

Cultura é força que une o passado e o futuro

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"A biologia mostra que no toque das raízes, no nível mais íntimo, há uma conexão coloidal, difusa, que pertence ao coletivo, às plantas entrelaçadas. Ao mesmo tempo em que é algo novo, é algo comum a todas elas. É um “ser e não ser”, como os gestos de amor e ódio" - Ilustração Deborah Salles
Precisamos nos reconhecer e misturar, reafirmar que direitos não se pede de joelhos, exige-se de pé

Esta semana assisti (e recomendo) no programa Misturados entrevista com Ricardo Almeida e Marcelo Cougo. Aquelas falas me abriram os olhos para o tema das “misturas”, nas fronteiras, e me trouxeram para a música Produção Urgente. De Nei Lisboa, genial, na voz de Simone Capeto. Ali se experimenta a importância de sentimentos entre amigos, como escudos em defesa de um mundo que corre o risco de vir a ser, de fato, propriedade dos bancos, dos mais “vivos”.

Vejam a comunicação e seu papel a serviço da dominação de todas as almas. As palavras carregam sentimentos que provocam todo tipo de ação. Elas servem para nos unir e para nos dividir. As palavras podem atiçar, distorcer, amordaçar sentimentos de amor, ao ponto de que uma cultura de ódio floresça entre nós, assim “de repente”, sem ser visto enquanto se cria. Não é simples, mas acontece. É a manipulação de sentimentos, via repetição de enunciados aplicados à divisão, à separação, ao bloqueio de mecanismos de solidariedade necessários à união e à resistência coletiva, alterando nosso modo de ver e agir.

Basta observar os exemplos mais simples para entender o fenômeno maior. Aquelas manifestações estruturadas com objetivo de “diminuir” o valor de pessoas e posições que apontam alternativas ao sistema que pretende nos manter divididos e sob controle. As imputações de “ignorância”, “grossura”, “falta de educação”, “falta de trato”, enfim, as rotulagens de “pobrezas de espírito” indicativas de “inferioridades” que justificariam discriminações de todo o tipo.

Vemos isso em todas as profissões, em todas as famílias. São os “veteranos” e “tios” fazendo troça dos “novos”, dos recém chegados, das crianças e suas ideias criativas. Vemos isso na expulsão dos médicos cubanos, na tentativa de ocultação dos livros de Paulo Freire, na prisão do Lula, no impeachment da Dilma, nas falas do Heinze e do Bolsonaro. Exemplos não faltam.

Claramente estas atitudes discriminatórias ocultam uma mistura de ignorância e medo, que atingiu limites inaceitáveis no elogio de Bolsonaro ao Ustra, e na inveja que tantas pessoas expressam em relação à Marielle, por ser negra, e à Dilma, por ser gigante. Vejam: estas e outras mulheres são discriminadas simplesmente porque incorporam a audácia, a força interior, a coragem e a confiabilidade, entre outras características dos heróis mitológicos, que tanto faltam em gestores do Brasil atual.

O respeito a quem merece, passa a ser ocultado sob uma manipulação perversa, de sentimentos distorcidos, que deveria ser execrada, mas que não o é. É a época da Pós verdade, da realidade gerada em cativeiro, a serviço de quem controla as grandes mídias.

Isso funciona porque existem sentimentos que não cabem nas palavras, mas são afetados por elas. São as ligações identitárias, que podem ser estimuladas para nos unir no amor ou no ódio. No futebol é fácil perceber isso. No GRE X NAL, no Santos X Corinthians, no FLA X FLU, quando estamos em campo, somos dominados por valores universais relacionados aos embates de vida e morte, do bem contra o mal, do nós contra os outros. Somos parte do grupo que nos arrasta.

Estes sentimentos fogem à racionalidade porque resultam de apropriação simbólica, individual, de algo maior, que vem do fundo da história e que, em certo sentido, é assemelhado ao que ocorre com os gafanhotos quando se erguem em nuvem e avançam aos milhões, como se fossem um corpo só.

Quero repetir que há nisso algo mais forte do que a cultura, do que as informações internalizadas sob mediação da racionalidade, e que se confunde com a ideia de “limites”, ou no caso, de “fronteiras” a serem valorizadas ou ultrapassadas.

E esta é a grande questão: o que são “fronteiras”? No espaço entre as nações, são vistas como linhas divisórias, como limites espinhosos a serem defendidos com armas. No espaço entre as pessoas, são vistas como elementos de ligação e troca.

O Portunhol é uma língua própria de nossas regiões de fronteira com Uruguai, Paraguai, Peru, Bolívia, Venezuela. Ele expressa a conexão dos povos de fronteira, carregando expressões que não existem no português nem no espanhol. São criações da vida em fronteiras, construções coletivas necessárias à expressão de sentimentos comuns aos povos e territórios das áreas de “limites nacionais”. Então, quando Galvão Bueno diz “vencer é bom, mas vencer aos Argentinos é sublime”, a quem ele está servindo? Como isso afeta aos povos daquela fronteira?

Este é o tipo de informação tóxica, que alimenta desunião, reforçando a ideia de individualizações e separação de hostes inimigas, em permanente disputa. Além disso, se trata de uma noção muito conveniente para a exploração das Américas, pelas transnacionais do Norte. Ajuda na expansão das queimadas, na discriminação dos nativos, na consolidação da pátria sojeira? Então, a quem serve?

Pois bem, o programa Misturados chama atenção para o fato de que somos indivíduos envoltos em fronteiras que devem ser interpretadas como elementos de ligação e não de disputa. Isto tanto no espaço, levando em conta o presente, como no tempo, olhando para o passado e o futuro.

Considerando o passado. Nosso pai e nossa mãe, tiveram seus pais, seus avós, seus bisavós, e assim por diante, até o início dos tempos. A cada geração multiplicamos por 2 o número de pessoas que passaram por este planeta, preparando as condições em que estamos vivendo. Em dez gerações, esta conta mapeia mais de 2 mil pessoas, com seus sonhos, suas angústias, seus desafios e realizações. Com certeza não há de ter predominado, nesta linha de vida, qualquer sentimento de ódio. O cimento em que nos apoiamos, só pode ter sido o do respeito, da comunhão. Ou não estaríamos aqui.

O que dizer dos gaúchos?

Os “nossos” só apareceram cerca de 100 anos depois dos gaúchos argentinos e uruguaios ocuparem o “lado de lá”. Aliás, foram os vizinhos que em boa parte, se somando aos locais, aos índios guaranis, aos negros escravizados, que deram forma ao nosso gaúcho típico. Meio bruto, desconfiado, obcecado pela noção de honra e pelas ideias de liberdade e justiça, fruto de misturas. Será mesmo, ou isso é mais uma ilusão em que queremos acreditar? Afinal, que responsabilidades herdamos daqueles antepassados, que eram em sua maioria, índios e peões?

Aparentemente, nas dificuldades daqueles tempos, a ideia de limites se associava antes à noção de trocas e parcerias, de ajudas mutuas, do que de confrontos. Afinal, não é esta a região do país onde mais se escuta “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite”? De onde vem isso, senão de uma civilidade que está sendo gradativamente abandonada?

Penso que estamos perdendo uma rica visão de limites, enquanto elementos de articulação, do tipo que existem entre as raízes de plantas. A biologia mostra que no toque das raízes, no nível mais íntimo, há uma conexão coloidal, difusa, que pertence ao coletivo, às plantas entrelaçadas. Ao mesmo tempo em que é algo novo, é algo comum a todas elas. É um “ser e não ser”, como os gestos de amor e ódio.

Vejo isto como uma fronteira de união, onde operariam mecanismos especiais de comunicação, algo como um portunhol, capaz de servir a universos distintos, mesclando elementos exclusivos, singulares, de plantas diferentes.

Pois bem, o programa Misturados trata disso: existem sistemas em operação, que objetivam nos dividir, nos iludir, nos separar, para que enfraquecidos, sejamos mais facilmente enganados, tutelados, explorados. Este sistema deve ser enfrentado porque está construindo fronteiras entre nós e os nossos, levando inclusive à ruptura dos pactos geracionais que nos definem como gente.

Vejam a triste era Bolsonaro, com suas marcas: ecocídio, genocídio, milícias, cloroquina, desemprego, medo e destruição daquele Brasil em que vivíamos. Como isso foi possível? Através da manipulação de sentimentos, da distorção de comunicações, da indução ao consumo de mitologias, do culto ao ódio, da cimentação deste tipo de fronteiras.

O passo inicial, para superação desta fase, exigirá compreensão de que as fronteiras entre as pessoas são, na real, espaços imaginários, ficções que podem e devem ser utilizadas como elementos de ligação e fortalecimento, contra os inimigos reais.

E os inimigos são, e sempre foram, aqueles que se beneficiam da generalização desta espécie de subvida, onde não há lugar para povos indígenas e quilombolas, crianças, velhos e mulheres pobres, de todas as cores e etnias. Para que o país escape desta armadilha, temos que reconhecer e apoiar “os nossos”, aqueles que não aceitam isso como algo válido e natural.

Se trata de redefinir as fronteiras, fortalecendo as redes de solidariedade idealizadas por D. Tomas Balduíno e simbolizadas pelo anel de tucum. A aliança dos oprimidos, aquela que irmana marginalizados de todas as cores, credos e preferências, iluminando a certeza coletiva de que para viver com dignidade, não basta ter sorte, agradecer e rezar, há que fazer por merecer.

Em respeito aos antepassados e em atenção aos que virão, precisamos abrir os olhos e agir como nos ensinou Dom Tomas Balduíno. Precisamos nos identificar, reconhecer e misturar, reafirmando nos sentimentos e na prática que “direitos não se pede de joelhos, exige-se de pé”.

 

Ouça a versão falada da coluna.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko