Rio Grande do Sul

Coluna

O encontro entre Lula e FHC é um texto de múltiplos recados

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Os ex-presidentes Lula e Fernando Henrique Cardoso durante encontro na última sexta, 21 - Ricardo Stuckert
Este movimento político consagra a ideia de frente ampla anti reacionária e autoritária no país

A comunicação do ex-presidente Lula, em seu Twitter no dia 21 de maio, de que encontrou o ex-presidente Fernando Henrique para “uma longa conversa sobre o Brasil, sobre nossa democracia e o descaso do governo Bolsonaro no enfrentamento da pandemia” movimenta de forma contundente o cenário político.

Em uma simples e pequena frase estão contidos três grandes e complexos conteúdos.

O primeiro e mais abrangente é aquele que expressa a construção de um movimento de amplo espectro político, com o sentido de obstruir a continuidade do projeto reacionário de Bolsonaro. Não há, em nenhum momento, a declaração de que haverá uma aliança eleitoral de primeiro turno dos partidos aos quais os ex-presidentes são vinculados e, efetivamente, dirigem. Porém há uma consolidação da ideia de pactuação em torno de temas críticos, como a continuidade e legitimação política do genocídio da pandemia e do risco autoritário expressos na possibilidade da reeleição de Jair Bolsonaro, e de um eventual acordo de obstrução da reeleição no segundo turno das eleições.

O segundo conteúdo contido diz respeito a um processo em curso de reparação da dimensão histórica e política do próprio ex-presidente Lula. Decorre das recentes decisões do Supremo Tribunal Federal firmando a constatação de que foi vítima de um processo de perseguição política e falsificação de um processo criminal de grande vulto que envolveu frações do sistema jurídico, as grandes empresas de comunicação e a totalidade da elite política conservadora, de centro direita e de direita. O encontro entre ex-presidentes que polarizaram a disputa política nas últimas décadas chancela o valor democrático de Lula.

Por fim, o terceiro conteúdo implícito é a assertiva de que o campo político representado pelo PSDB não poderá repetir a interpretação feita em 2018. Fernando Henrique Cardoso faz um movimento de tensão sobre a centro direita ao alertar que a regressão cultural e a ameaça autoritária representadas por Bolsonaro são inaceitáveis para o campo liberal democrático, colocando em risco o interesse, inclusive econômico, da elite rentista internacionalizada, fração de classe organicamente vinculada ao PSDB e aos seus governos. Posição que já vinha sendo antecipada por ex-ministros de seu governo como Gustavo Loyola e Armínio Fraga. Fernando Henrique parece querer se antecipar e impedir que o PSDB cometa o erro de continuar a flertar com a extrema direita bolsonarista, como o fez no segundo turno em 2018.

Algo desta dimensão não passaria sem produzir reações.

À direita, a oligarquia dirigente do PSDB reagiu negativamente à ideia de legitimação e aproximação da candidatura de Lula, resgatando uma retórica de combate à “velha política” e o cadáver da “Lava Jato”. Governadores, presidente e parlamentares do partido se apressaram em afirmar a proposta de candidatura própria no primeiro turno. A reação é uma demonstração de que o movimento do ex-presidente tucano foi eficaz. Ao afastar a ideia de que Lula seria um extremo oposto de Bolsonaro, colocando-o no campo da democracia e aproximando-o a uma “terceira via”, Fernando Henrique parece ter, com as declarações de compromisso com candidatura própria no primeiro turno, aproximado antecipadamente de uma opção de frente ampla pela democracia no segundo turno. Uma jogada de mestre do ex-presidente, percebendo que, para seu partido e as classes e frações que representa, a manutenção da posição de combate ao Lula a qualquer custo pode ser um péssimo posicionamento.

À esquerda, duas reações distintas com o mesmo fundamento. Uma diz que o Lula inflexiona à direita, o que inviabilizaria a execução de um programa popular mais aprofundado. Outra diz que o diálogo dos ex-presidentes seria apenas uma formalidade própria da democracia, tão afeita a gentilezas elitistas, e não expressaria que Lula tenha se movido da esquerda. Duas variações decorrentes do mesmo erro de considerar que Lula se apresentará como uma candidatura de esquerda. Lula ocupara o amplo espectro do centro para a esquerda o que tende a inviabilizar a possibilidade de viabilização de uma alternativa clássica de centro.

Este movimento político, em especial a partir da motivação de Fernando Henrique, consagra a ideia de frente ampla antirreacionária e autoritária no país. Repõe as bases da defesa do regime democrático liberal e de um bloco no poder capaz de estabelecer um ambiente de salvação nacional, literalmente inclusive. Lula, deste ponto de vista, não está se colocando como a candidatura da esquerda que inflexiona ao centro, mas sim como a própria candidatura do centro democrático, um centro sui generis, surgido da classe trabalhadora e não dos setores médios, com alto teor classista, portanto.

Presumivelmente, Lula tenderá, com este posicionamento, a estabelecer um governo cuja direção política estará em maior nível de disputa que nos seus governos anteriores. Neste aspecto, nem a opção pela “oposição de esquerda” tampouco a opção de avestruz, não reconhecendo o posicionamento real que Lula assume, teriam capacidade de disputar rumos de governo em um bloco onde a burguesia fatalmente terá lugar e força política.

Trata-se de disputar a implementação de ações e medidas de governo que, imediatamente, cessem a insanidade como dimensão de governo e com ela se interrompa o genocídio em curso, a fome e o desemprego. Mas simultaneamente apresentar políticas estruturais que possam viabilizar, inclusive orçamentariamente, essas reformas. Se não houver uma forte articulação política dos setores de esquerda, esse governo poderá não ultrapassar o primeiro conjunto de mudanças políticas, o que não resolveria a situação das classes trabalhadoras, majoritariamente precarizadas e desalentadas, ainda que interrompa a morte por planejamento de governo.

A vitória de um governo de tipo frente ampla de salvação nacional, formal ou não, tende a criar melhores condições políticas para reformas populares, ainda que não as faça sem pressão, enquanto num segundo governo Bolsonaro só poderíamos esperar um aprofundamento da crise e da desdemocratização. Como campo político que poderá aplicar medidas como a tributação dos super-ricos, plano de emprego e investimentos sociais, a esquerda terá que se movimentar neste estreito espaço estratégico. A estratégia levada adiante pelos socialistas de diferentes matizes em Portugal, conhecida por “Geringonça”, é uma efetiva experiência concreta desta possibilidade.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko