Rio Grande do Sul

Coluna

Porque não celebramos o 13 de Maio e o que o movimento feminista aprende com isso

Imagem de perfil do Colunistaesd
"Os movimentos de mulheres negras vêm interpelando historicamente as articulações feministas, por priorizarem demandas que não contemplavam as particularidades das mulheres negras" - Marcello Casal Jr. / Fotos Públicas
Em 1978 o MNU estabeleceu o 20 de Novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra

Descolonizar o futuro envolve um movimento primeiro de olhar para o passado. O contínuo processo de descolonização e de emancipação nos coloca a difícil tarefa de retomar a história contada sobre quem somos coletivamente. No Brasil, por muito tempo o 13 de Maio foi um relevante marco da história nacional como data de celebração do mito da “democracia racial”.

A Lei Áurea sancionada pela Princesa Isabel em 1888, que aboliu oficialmente a escravização, era recordada como ato heróico de libertação do povo negro. Entretanto, essa história tem sido ressignificada, no esforço de contextualizar esse elemento histórico de constituição do imaginário de quem somos enquanto povo. Afinal, “é preciso criar novos papéis fora dessa ordem colonial”, como refere Grada Kilomba (2019) sobre a necessidade de reescrevermos a história que fora contada erroneamente.

Fato é que “o 13 de Maio libertou apenas 10% da população de cor no Brasil, uma vez que 90% já viviam em estado de liberdade”. E, “na medida em que somos todos iguais perante a lei, que negro é um ‘cidadão igual aos outros’ graças à Lei Áurea, nosso país é um grande exemplo da harmonia inter-racial a ser seguido por aqueles em que a discriminação racial é declarada.” (GONZALEZ, 2020).

O mito da democracia racial se ampara na ideia de que a garantia do direito à igualdade independentemente da raça é suficiente para oportunizar as mesmas condições de vida. Daí se desdobra também o mito da meritocracia, que prega bastar o esforço para que as pessoas alcancem ascensão social. Ocorre que a garantia abstrata à igualdade e à universalidade apaga de modo forçado as diferenças e as desigualdades entre os sujeitos.

No contexto pós-abolição, o mero reconhecimento legal de igualdade sem medidas concretas que possibilitassem a inserção dos ex-escravizados foi determinante ao processo de marginalização da população negra em nosso país. Diante disso, em 1978 o Movimento Negro Unificado estabeleceu o 20 de Novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, como o Dia Nacional da Consciência Negra, pois “Palmares foi a primeira tentativa de criação dessa sociedade igualitária, onde existiu uma efetiva democracia racial” (GONZALEZ, 2020).

O que o movimento feminista pode aprender com isso?

Os movimentos de mulheres negras vêm interpelando historicamente as articulações feministas, por priorizarem demandas que não contemplavam as particularidades das mulheres negras. A interseccionalidade, nesse sentido, busca despertar uma sensibilidade ética para compreendermos que os sistemas de opressão se afetam mutuamente, criando novas dimensões de violência. Podemos pensar assim na importância de não fazermos a luta sozinhas, sem se deixar seduzir por discursos salvacionistas da branquitude narcísica, aqui metaforizado pela Princesa Isabel no ato de abolição da escravidão.

Lélia Gonzalez (2020), afirmou ser essa uma questão “de caráter ético e político'. Se estamos comprometidas com um projeto de transformação social, não podemos ser coniventes com posturas ideológicas de exclusão, que só privilegiam um aspecto da realidade por nós vividas”.

Enfrentar a dura desigualdade existente entre as mulheres pode ser um aprendizado extraído da reflexão sobre o 13 de Maio, pois é fundamental um trabalho rigoroso, permanente e comprometido de “autoexame crítico e de reflexão sobre a prática feminista, sobre como vivemos o mundo”. Esse exame é condição possibilitadora de implicação política, o que “deve ser a base do movimento feminista”, sem a qual “permanecemos indiferentes e alienados uns dos outros” (HOOKS, 2019).

Que consigamos exercitar a postura ética de que nos falou Audre Lorde (2013), transcendendo a ideia vazia, liberal e abstrata de que somos todas iguais: “a diferença não deve ser meramente tolerada, mas vista como um fundo de polaridades necessárias entre as quais nossa criatividade pode faiscar como uma dialética”.

Domenique Goulart - Feminista antirracista, advogada e mestra em Ciências Criminais (PPGCCRIM|PUCRS)

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko