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29 de maio: Retomar a indignação, ou, porque a direita não quer o povo nas ruas

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"Uma característica das manifestações de #29M foi a diversidade" - Foto: Silvia Fernandes
A manifestação de #29M foi um grito de Basta! E um gesto político que busca retomar o espaço público

As manifestações do 29 de maio nas principais cidades do Brasil reuniram milhares de pessoas contra o governo neoliberal, machista, racista, homofóbico e devastador do Estado social e do meio ambiente.

Dentre tantas frases e palavras de ordem entoadas, uma delas importa para essa análise: “Bolsonaro é mais perigoso que o vírus”. Essa frase é a expressão do limite a que chegou uma enorme parcela da população brasileira. Mesmo com os riscos de contaminação, falou mais alto a consciência de que era preciso uma urgente mobilização coletiva diante de tantos ataques e do avanço militar e miliciano patrocinado por Bolsonaro e seu governo.

Uma característica das manifestações de #29M foi a diversidade. Estavam lado a lado famílias de trabalhadoras e trabalhadores, desempregadas e desempregados, sem teto, migrantes, jovens negras e negros, não negros, indígenas, brancos, mulheres cis, lésbicas, gays, travestis, pessoas trans, ativistas feministas e antirracistas, movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos, indígenas, famílias das periferias, moradores de classe média, idosas e idosos. Havia uma pluralidade de identidades, classes sociais que andavam pelas ruas das cidades, unidas. A precariedade e a privação de direitos uniram pessoas para além da noção do individualismo da autoproteção.

Ir às ruas foi um gesto político de enfrentamento ao medo, em nome de direitos e prerrogativas coletivas como vacina já, emprego, auxílio emergencial de 600,00 e o fim imediato do governo Bolsonaro. O Brasil já está no patamar de meio milhão de brasileiras e brasileiros mortos pela covid-19 devido à condução desastrosa e criminosa do governo militar de Bolsonaro.

Diante da catástrofe sanitária, Bolsonaro usa seu poder, e o Estado brasileiro, para impedir ações de contenção à expansão da pandemia e amplia o desastre na economia com suas políticas genocida e ultraliberal.

Voltamos a patamares inaceitáveis de pobreza e fome, com mais de 125 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar e 14,5 milhões de pessoas desempregadas não por causa do vírus, mas por uma política deliberada dirigida para o desmonte do Estado. Dados do IBGE mostram que é a população feminina e negra a mais atingida por esse desmonte e pela crise econômica. A taxa de desocupação, que representa o índice de desemprego, foi de 12,8% para os homens, 16,8% para as mulheres e 19,8% para as mulheres negras.

Esse ataque neoliberal ao social tem sido fundamental para gerar uma cultura antidemocrática, como destaca a teórica feminista, Wendy Brown. Como ela explica, a naturalização de violências de baixo pra cima (como a violência doméstica, por exemplo), aceita e ao mesmo tempo legitima formas antidemocráticas e autoritárias que vêm de cima pra baixo (como a violência policial e o racismo praticado pelo Estado), excluem pessoas da vida social, vida produtiva e das oportunidades. O racismo, o machismo e a lgbtfobia definem essas violências. Essa realidade de destruição e caos propiciou uma importante aliança entre múltiplos grupos que tomaram as ruas e podem explicar a dimensão das manifestações no dia #29M.

As reações e os apoios por onde as marchas passavam foram testemunhadas e relatadas em diversos blogs, vídeos, fotos, lives e postagens publicadas no twitter, facebook e instagram de milhões de brasileiros. A mídia empresarial, como sempre, adotou um tom envergonhado na cobertura (com exceção da Folha de S.Paulo), ocupando um lugar de agente político na tentativa de “apagar” o acontecimento deste #29M. Mas não conseguiu por muito tempo. A mídia internacional, a mídia popular, as redes e os sites de notícias do campo progressista vêm ocupando com bom jornalismo um lugar relevante na cobertura jornalística on line. E mostraram ao vivo e em conexão global o que estava acontecendo no Brasil. Uma demonstração de que a internet é um espaço relevante para a luta política e vem provocando o alargamento da esfera pública e jornalística. Assim, já na segunda-feira à noite era possível ver a edição repaginada do Jornal Nacional desmentindo o próprio presidente negacionista, assim como ler o reconhecimento de que “foram muito significativas as manifestações contra Jair Bolsonaro”, expresso pelo jornal O Estado de S.Paulo, em seu editorial, de terça-feira, dia 01/06.

Outro aspecto relevante dessa aliança que resultou nas manifestações de #29M: para muitos, foi necessário enfrentar e superar o medo (subjetivo e coletivo), que tem sido usado como instrumento de dominação e controle. O medo e a ameaça constante vêm sendo incutidas para justificar a manutenção da realidade social, política e econômica que estamos vivendo sob Bolsonaro. Ao contrário das provocações da direita tentando desqualificar como “aglomeração”, essas manifestações foram um marco fundamental para romper com a ideia paralisadora do medo. Milhares de pessoas enfrentaram o receio real de contaminação (todas as pessoas usavam máscaras e carregavam o álcool em gel) e o risco cada vez mais frequente da violência policial e miliciana nas ruas. Algo que a população negra, indígena e pobre vêm sofrendo há muito tempo e com aumento da selvageria.

Judith Butler registra em sua obra “Corpos aliados e luta política” (Paidós, 2017) que colocar o próprio corpo em risco (diante da pandemia e da violência policial, por exemplo) é um ato político. Isso mostra que o que moveu a multidão foi uma escolha política individual de estabelecer uma situação compartilhada e coletiva, colocando a vida como estamos vivendo (e sofrendo) em primeiro plano na política.

A pluralidade dos corpos, em suas performances, em seus gêneros, identidades, classe social, racialidade e geração mostrou que é preciso estabelecer alianças entre os diversos grupos sociais que vêm sendo profundamente afetados pela precariedade e pela privação de direitos. Inclusive a perda paulatina do direito de circular pelas ruas sem levar um tiro da polícia racista e violenta (como aconteceu com dois homens negros no Recife) ou ter o carro apreendido porque carrega uma frase de protesto contra o presidente genocida (como aconteceu em Goiás), ou pela execução sumária de 28 pessoas negras em Jacarezinho/RJ e a inaceitável censura imposta pela própria corporação que vai investigar os seus, impedindo a sociedade de acompanhar o julgamento e tomar conhecimento da punição aos responsáveis.

A manifestação de #29M foi um grito de Basta! E um gesto político e de resistência que busca retomar e reconfigurar o espaço público e a legitimidade do protesto e da ação coletiva. Para o capitalismo, o colonialismo racista e misógino e para o poder autoritário e militar exercido pela extrema direita bolsonarista, interessa a reclusão, a ausência da compreensão de coletividade e o controle pelo medo.

Para a sociedade brasileira, enquanto coletividade diversa e democrática, no entanto, é vital uma aliança pelas ruas, com todo o cuidado sanitário diante da pandemia. As lutas feministas associam-se a essas alianças que se apresentaram nas manifestações de #29M porque se apoiam numa ética pluralista, de equidade, justiça social e cohabitação com a diversidade. O que envolve o respeito às diferenças e o enfrentamento às brutalidades e violências de toda a ordem.

É urgente e necessário recuperar o caráter público das ruas. Porque o que está em jogo é impedir tanto a destruição de vidas individuais com a omissão criminosa do combate à pandemia, quanto o próprio desmantelamento do que entendemos por sociedade e coletividade.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko