Rio Grande do Sul

JUSTIÇA

Carrefour recua e deixa de fechar acordo de R$ 120 milhões no caso Beto Freitas

Empresa havia anunciado valor na quarta mas quis economizar 5 milhões na última hora; entidades não aceitaram recuo

Supermercado Carrefour onde Beto Freitas foi morto em 2020 - Marcela Donini/ Matinal Jornalismo

Depois de anunciar ao mercado financeiro um avanço nas tratativas de um acordo com o movimento negro e o Ministério Público – e inclusive de ter provisionado R$ 120 milhões para reparar a morte de Beto Freitas, homem negro assassinado nas dependências da loja da rede na Zona Norte de Porto Alegre –, o Carrefour recuou no valor de última hora. Por um desconto de R$ 5 milhões que impôs nessa quarta-feira, 9 de junho, inviabilizou a assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta que o livraria de responder a diversas ações judiciais movidas depois do crime, que ocorreu no dia 19 de novembro de 2020, véspera do Dia da Consciência Negra.

O valor seria utilizado para financiar a totalidade dos termos do TAC, que incluem treinamentos a funcionários, criação de um código de conduta antirracista, e o fim das “salinhas de tortura”, onde pessoas consideradas suspeitas por seguranças das lojas eram submetidas a humilhações e agressões físicas, como o Matinal contou em novembro.

O Carrefour afirma que a redução de R$ 5 milhões na indenização foi “um redimensionamento natural feito durante a negociação” e que o mesmo já era de conhecimento das partes envolvidas. Entretanto o valor havia sido confirmado à imprensa, no dia anterior. E, às 9h da quarta-feira, pouco antes do início da reunião em que selaria o acordo com o movimento negro, a empresa divulgou na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) uma nota na qual confirmava o acerto de R$ 120 milhões: “O Grupo Carrefour vem comunicar aos seus acionistas e ao mercado em geral que está avançando nas tratativas junto a determinadas  autoridades públicas e associações civis para a celebração de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), ratificando os compromissos já assumidos pela Companhia e envolvendo o montante de R$ 120 milhões (já majoritariamente provisionados pela empresa), a serem desembolsados ao longo dos próximos anos, em relação ao evento ocorrido na loja Carrefour localizada no bairro de Passo D’ Areia, em Porto Alegre/RS, em 19 de novembro de 2020”, informava o documento. 

Além disso, de acordo com o diretor Executivo da Educafro Brasil, Frei David Santos, o Carrefour se recusou a pagar os honorários dos advogados do movimento negro – valor que segundo Santos, seria usado para a abertura de um escritório de apoio jurídico exclusivo para pessoas negras: “Como eles podem admitir que a dezena de seus advogados brancos, que trabalham nesse TAC tenham bons salários, que o MPF, Defensoria e MPT tenham bons salários e os advogados do movimento negro tenham que trabalhar de graça?”, questiona ele, que considerou a negativa um desrespeito.

A recusa foi determinante para o movimento não aceitar o acordo. “Parecia que o Carrefour havia entendido o que é Racismo Estrutural. Mas com a exclusão dos direitos dos advogados negros do movimento social, parece que não entenderam”, completa Santos. 

No entendimento do grupo atacadista, por se tratar de um TAC, não caberia o pagamento de honorários – esse tipo de pagamento só deve ser feito em processos judiciais, informou o Carrefour, através da sua assessoria de imprensa. Além disso, a empresa garante que as entidades não trouxeram a necessidade do pagamento durante as negociações, e que isto só foi apresentado na reunião de quarta-feira.

Entidades exigiram indenização coletiva do Carrefour

As imagens de Beto sendo espancado por dois seguranças ganharam o mundo, e geraram revolta no Brasil na esteira do caso de George Floyd, homem negro morto nos Estados Unidos sufocado por um policial. No Brasil, a Educafro e o Centro Santo Dias de Direitos Humanos protocolaram uma Ação Civil Pública exigindo uma indenização coletiva por parte do Carrefour. O dinheiro seria utilizado em ações de combate ao racismo. 

O Matinal teve acesso aos termos do acordo que seria assinado, no qual é descrito as medidas que o Carrefour deve adotar para combater o racismo. Um dos pontos presentes no acordo é que a multinacional garanta não ter salas reservadas para condução de pessoas consideradas suspeitas de delitos dentro das lojas. À época do assassinato de Beto, diversas denúncias vieram a público dando conta de que os mercados da rede possuíam verdadeiras salas de interrogatório, para onde seriam levados suspeitos de furto.

O TAC também prevê que o Carrefour não contrate empresas de segurança que tenham em seus quadros policiais da ativa. Um dos seguranças acusados de espancar Beto até a morte era policial militar que estava no seu primeiro dia de trabalho pela Vector, empresa de segurança contratada pelo Carrefour. Porém, na época, a empresa garantiu que ele não fazia parte do quadro de funcionários.

Por meio de nota, o Carrefour afirmou que “segue à disposição das autoridades e entidades para dialogar, mantendo-se engajado na luta antirracista, com o objetivo de continuar implementando ações de combate ao racismo e promoção da equidade no Brasil.” Porém, o comunicado não revelou qual o entrave nas negociações. Da mesma forma, Santos afirmou que a Educafro ainda espera uma nova rodada de negociações.

Na nota o Carrefour afirma ainda que há seis meses negocia com o MP-RS e outras entidades a assinatura do TAC. A empresa destaca já ter chegado a um acordo com os familiares de Beto. No dia 27 de maio a rede fechou um acordo de indenização com Milena Borges Alves, esposa de Beto que o acompanhava no dia em que ele foi espancado até a morte por seguranças da loja no estacionamento do hipermercado. Dessa forma, a empresa completou o pagamento de nove indenizações para familiares de Beto.

Milena foi a última a aceitar o acordo proposto pelo Carrefour. De acordo com seu advogado, Carlos Alberto Barata Silva Neto, o principal impasse era quanto ao valor a ser pago, já que, segundo a defesa de Milena, a empresa pretendia pagar “o teto estipulado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) para indenizações por morte e danos morais”. Embora não exista uma tabela determinando valores a serem pagos nesses casos, os julgamentos do STJ determinam indenizações que giram entre de 250 a 300 salários mínimos, o que significa um valor entre R$ 275 mil e R$ 330 mil. A indenização acertada entre as partes não foi divulgado, mas a defesa de Milena disse que ela não recebeu R$ 1 milhão, como chegou a ser oferecido. O valor final não foi revelado. 

Quando fechou o acordo com Milena, a direção do Carrefour se manifestou por nota, na qual afirma que assumiu “ compromissos que visavam o apoio e indenização aos familiares de João Alberto Freitas, mudanças internas nas políticas da empresa e entregas para a sociedade, com a inclusão de negros e negras no mercado de trabalho e o combate ao racismo nas organizações”. Além de Milena, o Carrefour também fechou acordos extrajudiciais com os quatro filhos, a enteada, a neta, a irmã e o pai de João Alberto.

Relembre o Caso

João Alberto Silveira Freitas, o Beto, foi morto na noite de 19 de novembro de 2020, véspera do Dia da Consciência Negra no Brasil, após ser espancado por dois seguranças do hipermercado Carrefour localizado na Zona Norte de Porto Alegre. A cena foi filmada e divulgada nas redes sociais, gerando revolta e acusações de racismo contra os seguranças Magno Braz Borges e Giovane Gaspar. Além deles, também estava envolvida no crime a  fiscal do Carrefour Adriana Alves Dutra. 

Beto, um homem negro de 40 anos, foi agredito na saída do hipermercado. Imagens das câmeras de segurança e filmagens de clientes do estabelecimento mostram Beto sendo espancado até a morte dentro do Carrefour. Em sua defesa, os seguranças afirmaram que ele estava causando confusão dentro do estabelecimento, o que não aparece em nenhuma das imagens tornadas públicas.

Nos vídeos é possível ver que Adriana tenta impedir que motoboys registrassem a cena de agressão. Ela era a única dos três envolvidos contratada diretamente pelo Carrefour. Giovane Gaspar estava em seu primeiro dia. Na época a empresa responsável pela segurança, a Vector, negou que ele fosse contratado. Já Magno era funcionário da empresa desde 8 de setembro de 2019.

Além deles, também foram indiciados Paulo Francisco da Silva, funcionário da empresa de segurança; e os funcionários do mercado Kleiton Silva Santos e Rafael Rezende. O primeiro aparece no vídeo impedindo que Beto seja socorrido, enquanto os outros dois auxiliam na imobilização de Beto. De acordo com o Ministério Público do Rio Grande do Sul, atualmente apenas os dois seguranças seguem presos em regime fechado, enquanto Adriana está em prisão domiciliar e os outros três estão soltos. O MP quer que todos sejam presos.

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Edição: Matinal News