Rio Grande do Sul

Coluna

A espiritualidade pode ser libertadora

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"As feministas defendem a legalização do aborto por proteção à vida, não por banalizar a interrupção da gravidez" - Fotos Públicas
A base do feminismo é reconhecer a mulher como sujeita dos seus atos, sem controle e julgamentos

Maria, adolescente e mãe solteira de periferia. Se hoje, a cada mil brasileiras entre 15 e 19 anos, 53 tornam-se mães e encontram diversas dificuldades, viver essa experiência em contexto de perseguição social não foi diferente. Segundo escritos antigos, a mãe de Jesus foi voz dos rejeitados: o povo podre que sofria com a fome e repressão do governo. Também viveu o luto e a luta ao perder seu filho para a violência do Estado. Teve fé e força para negar o destino e ultrapassar os limites de controle do patriarcado.

Como muitas de nós, foi invisibilizada. O fundamentalismo religioso a retratou como uma mulher submissa que aceitou e cumpriu seu papel de mãe. Uma violência simbólica que insiste em manipular e interferir na liberdade de escolha individual das mulheres. Historicamente, as igrejas monoteístas têm fomentado a cultura machista e colaborado na reprodução de violências contra a mulher.

Apesar de muitas fiéis estarem no comando de funções administrativas e sociais das igrejas, é comum os postos de liderança serem ocupados por homens. Isso é herança de um cristianismo que foi fundado para se institucionalizar e se relacionar com a disputa pelo poder. A história mostra que o foco principal não era levar a fé aos povos, mas instrumentalizá-la para ocupação de território e domínio de corpos, priorizando a concentração de poder e riquezas aos membros da elite religiosa.

Para quebrar esse ciclo opressor, muitas religiosas encontram no feminismo resistência para confrontar doutrinas que as colocam em posição de subalternas. O público feminino representa 58% das igrejas evangélicas e 51% das católicas, segundo dados do Datafolha, divulgados pelo jornal Folha de S. Paulo em janeiro 2020. Outra pesquisa do Datafolha de abril de 2019 mostrou que cerca de 40% das católicas e 38% das evangélicas brasileiras se declararam feministas. São mulheres organizadas que acreditam em um evangelho baseado na justiça social.

O feminismo nunca será pecado. Esta é a bandeira de Gabriela Marques do coletivo Abrigo e Cristãs e cristãos contra o fascismo. A ativista viveu na pele o preconceito da igreja por ser feminista: o medo é comum no ambiente religioso, mas, de qualquer formar ser mulher é viver com medo. “Não é fácil ser religiosa e feminista, até porque não é fácil ser feminista em nenhum espaço de predominância masculina”, reforça Gabriela.

Pelo direito de ter livre arbítrio

O feminismo é contra o modelo violento de família. É contra a cultura do estupro. É contra a maternidade compulsória, pois cada mulher (ou pessoa trans nascida com útero) deve ter autonomia sobre o próprio corpo e decidir quando e se quer ter filhos. As feministas defendem a legalização do aborto por proteção à vida, não por banalizar a interrupção da gravidez. Por isso, a importância da educação sexual nas escolas e o uso de contraceptivos. Se a escolha for ser mãe, que seja com apoio integral, assistência médica pública, alimentação, creches e licença maternidade digna.

A base do feminismo é reconhecer a mulher como sujeita dos seus atos, sem controle e julgamentos. Sendo assim, não precisa abrir mão da fé para lutar contra a desigualdade. Como feministas, devemos acolher a todas: religiosas, ateias ou agnósticas. A militância não pode ser impositiva, mesmo que haja discordâncias, estas devem ser dialogadas. Não dá mais para enxergar apenas as mulheres biológicas, a liberdade religiosa deve ser para todas nós, mulheres.

Enquanto o atual presidente usa a palavra de Deus para promover o ódio, o feminismo prega equidade. Não há nenhum trecho na Bíblia em que legitime ou apoie um governo genocida. Pelo contrário, uma das principais mensagens de Jesus Cristo foi “amarás o teu próximo como a ti mesmo”. O amor não é um dogma e nem está preso em uma religião, muito menos em uma igreja. Amor é espiritualidade, solidariedade e união. Que sejamos como Maria, que não aceitou seu destino imposto de submissa e foi às ruas lutar por uma sociedade igualitária.

Morgana Virgili - jornalista e militante feminista

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko