Rio Grande do Sul

LUTA INDÍGENA

Indígenas do RS e de SC se unem à mobilização nacional contra o marco temporal

Manifestações também são contra o Projeto de Lei 490, que abre os territórios à mineração e ao agronegócio

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Kaingangs e Guaranis em ato no oeste de Santa Catarina, na SC 283, trevo do município de Paial - Zigue Timm

Indígenas de todo o país reforçam o "Levante pela Terra", mobilizações que vêm ocorrendo em defesa de seus territórios, nesta quarta-feira (30), dia em que o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma o julgamento do chamado "marco temporal". A tese, que determina que os territórios só podem ser demarcados se os povos indígenas comprovarem que estavam ocupando a área anteriormente ou na data da promulgação da Constituição Federal, ou seja, 5 de outubro de 1988, é apontada como um retrocesso por comunidades indígenas e militantes da causa no Brasil. 

No Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, foram realizadas manifestações e trancamento de estradas em diversas cidades. Porto Alegre foi uma delas, onde as etnias Mbyá Guarani, Kaingang e Charrua se uniram à mobilização nacional, na tarde desta quarta-feira, na Esquina Democrática, no centro da cidade. Também ocorreu um ato em frente ao Centro de Referência Indígena-Afro do RS, localizado na Cidade Baixa. As mobilizações contaram com a presença de apoiadores, atendendo ao pedido dos povos originários, que asseguram que esta é uma luta de todos os brasileiros.


Ato no Centro de Porto Alegre / Foto: Flavia Frediani

“Nós, das aldeias Mbya Guarani Jata'ity (Cantagalo), Pindo Mirin (Itapuã) Pindo Poty (Lami), juntamente com outros territórios e comunidades, convocamos essa manifestação e as mobilizações dos povos indígenas de todo o Brasil contra a tese do marco temporal que voltará a ser julgada pelo STF”, afirma o cacique Mbya Guarani Cláudio Gimenez da Silva, da aldeia do Cantagalo, de Porto Alegre.

Segundo ele, os Mbya Guarani entendem que o “marco temporal” representa a destruição dos direitos constitucionais dos povos indígenas assegurados pela Constituição de 1988. “Com essa tese querem entregar os territórios indígenas para os ruralistas do agronegócio, para as madeireiras, para o hidronegócio e as transnacionais da megamineração, atacando assim não só a esses povos indígenas, mas as florestas, os ecossistemas, os rios, a biodiversidade e a possibilidade de vida das próximas gerações humanas”, critica.


Também em Porto Alegre, foi realizado um ato em frente ao Centro de Referência Indígena-Afro do Rio Grande do Sul / Foto: Isabelle Rieger/Amigos da Terra do Brasil RS

“Nós indígenas queremos que nossos direitos sejam respeitados, queremos viver em paz nos nossos territórios”, complementa o cacique kaingang da aldeia Vãn Ka, de Porto Alegre, Odirlei Fidélis. “Este marco temporal representa um retrocesso muito grande contra o povo indígena, pois isso afeta o que é de mais sagrado para nós, que se chama a mãe Terra”, ressalta.

Ele citou ainda o PL 490, outra luta travada pelos indígenas, que são contrários ao projeto em tramitação no Congresso Nacional que abre as áreas protegidas ao agronegócio, à mineração e à construção de hidrelétricas. “Este projeto foi feito pelo agronegócio, pois os mesmos têm interesses em explorar nossos territórios. É preciso que a sociedade brasileira saiba que as políticas deste governo não afetarão apenas nós indígenas. Este PL 490 não respeita a vida humana, este PL não respeita o meio ambiente, não respeita a soberania dos povos originários desse país.”


Frente Quilombola do RS se uniu ao ato em Porto Alegre contra o PL 490 e o "marco temporal" / Foto: Flavia Frediani

No interior do RS, em Iraí, junto à BR-386, o povo Kaingang permaneceu às margens da rodovia. Uma vigília em defesa de seus direitos foi realizada e desde às 9h30 da manhã a rodovia foi trancada.


Ato na BR-386, em Iraí / Foto: Ivan Cesar Cima

Em Santa Catarina, indígenas Kaingang fecharam o Túnel Antonieta de Barros, em Florianópolis, em protesto contra o "marco temporal" e pela construção da casa de passagem indígena definitiva no município.


Protesto fechou túnel em Florianópolis / Foto: Luis Ferreira Rodrigues/Coletiva Bem Viver

Na Terra Indígena Morro dos Cavalos, situada no município de Palhoça, litoral de SC, ato reuniu representantes de várias terras indígenas da região. Os indígenas fecharam a BR-101.


Guaranis protestam no litoral catarinense / Foto: Ingrid Sateré-Mawé

Liderança de retomada destaca os riscos do “marco temporal”

No interior gaúcho, outra cidade que registrou manifestação foi o município de Maquiné. Indígenas das aldeias Mbya Guarani Guyra Nhendú (Som dos Pássaros), Yvyty Porã (Montanha Sagrada) e Ka'aguy Porã (Mata Sagrada), que é a primeira retomada guarani no RS, a Yvyrupã, também se somaram à luta nacional por seus direitos.

“Vamos gritar e dizer que estamos aqui mantendo nossa cultura, nossa língua, nosso modo de vida no dia a dia, não vamos desistir, estamos aqui, não vamos perder calados, essa é a força dos povos hoje no Brasil”, protesta o cacique da retomada, André Benites. Ele destaca, enquanto integrante de uma retomada de território, os riscos do “marco temporal”.

“Retomada significa muitas coisas, mais do que ficar em uma área que era nossa, retomada é retomada da vida, da realidade, da liberdade, principalmente das crianças. Então elas ficam mantendo a sua língua, sua cultura, liberdade, e a gente dorme com tranquilidade, levanta com tranquilidade pelo menos nessa aldeia. Tem muitas aldeias que levantam, dormem com preocupação, ainda mais hoje. Com o marco temporal, o povo indígena no Brasil não consegue nem dormir. Então essa retomada é muito importante, não queremos perder, mas se for aprovado o marco temporal a gente perde, o povo indígena do Brasil perde seu território”, afirma.


Manifestação em Maquiné / Foto: Mirella Rabaioli

Ele conta que a retomada foi o retorno a um território ancestral onde há muito tempo seu povo estava instalado. “Quando a gente entrou aqui em 27 de janeiro de 2017, muitos não indígenas falam que um grupo de guarani tem invadido área estadual, mas na verdade não invadimos. Quem são os invasores são os portugueses, espanhóis, que tiraram nosso território há 500 anos. Nós só estamos voltando para casa, nosso território, estamos retomando o que foi tomado de nós”, afirma o cacique André.

Destaca que seus ancestrais estavam no território há muito tempo. “Nossos parentes, nossos mais velhos já moravam por aqui, principalmente no Litoral, que historicamente é dos povos, Xokleng mais para cima, Guarani mais para cá”, aponta, lembrando que era uma região de acampamento, coleta de semente, de frutas para comer, de remédio, e de material para artesanato e para casa.

“Nossos parentes sempre viveram aqui antes do Estado se adonar porque onde a gente está era uma instituição da Fepagro. Só que Fepagro também foi extinta há quatro anos atrás. Eu descobri, porque sou natural de Maquiné, que essa área estava para venda e a empresa interessada era um condomínio fechado”, conta o cacique André.

Sobre a situação da retomada, tem esperança de que mesmo com a aprovação do “marco temporal”, por ser uma área pertencente ao governo do estado, eles tenham chance de permanecer. “Mas depende do Estado também, se for bom o governo... a gente sabe também que nosso governador Eduardo Leite não está nem aí para o povo”, avalia

Batendo de frente com a Constituição 


Com faixas estendidas no canteiro central da Esplanada dos Ministérios, indígenas pedem justiça, contra o marco temporal / Foto: Scarlett Rocha / Apib

O artigo 231 da Constituição estipula que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens". Diz que "as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes" e que "as terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis".

O STF julga, com status de repercussão geral, uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à TI Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem os povos Guarani e Kaingang. Nela está a tese jurídica do "marco temporal", que bate de frente com o texto constitucional. E fragiliza as incipientes conquistas desses povos originários, que de acordo com o IBGE, somam atualmente cerca de 817.963 indígenas no país, espalhados em 305 povos, de 270 línguas diferentes. 

No Rio Grande do Sul, no século XVII, viviam pelo menos 40 povos indígenas diferentes. Atualmente existem quatro: Kaingang, Mbya Guarani, Charrua e Xokleng Konglui. Juntos, somam mais de 33 mil pessoas, sendo a maioria Kaingang (30 mil), depois Guarani (2,5 mil), uma comunidade Charrua, no bairro Cantagalo, em Porto Alegre, e uma retomada Xokleng, em São Francisco de Paula.

De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), existem no país cerca de 1.296 terras indígenas, sendo 401 terras já demarcadas, 306 em alguma das etapas do procedimento demarcatório, 65 terras que se enquadram em outras categorias que não a de terra tradicional e 530 terras sem nenhuma providência do Estado para dar início à sua demarcação, ou seja, mais de 40%.

Desde a redemocratização do país, apenas dois presidentes da República não fizeram nenhuma demarcação, Michel Temer, que assumiu a presidência após o golpe de 2016, e Jair Bolsonaro (sem partido), que vem cumprindo a sua promessa, a de não demarcar um centímetro de terra.


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Edição: Katia Marko