Rio Grande do Sul

Coluna

A síndrome de Dick Vigarista

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"Bolsonaro serviu fortemente aos interesses da burguesia brasileira, em especial ao empresariado periférico que constitui a massa de empresários, que dá sustentação política e operacional ao bolsonarismo e às causas do reacionarismo" - Foto: @luizrochabh / Mídia Ninja
Muitos setores do campo da direita perceberam o beco sem saída onde o bolsonarismo os jogou

Dick Vigarista é o lendário personagem protagonista do desenho animado “Corrida maluca”. Dick Vigarista invariavelmente abdica de qualquer chance de vencer a corrida limpamente para armar fraudes e armadilhas contra seus concorrentes e impedi-los de vencer. Sempre Dick interrompe a liderança que conquista na pista para sabotar os demais e o resultado é que sua sabotagem falha e ele perde a corrida que, de outro modo, poderia ter vencido.

Durante toda a década de 1950, com persistência e apoio militar e internacional, a direita e grandes setores empresariais conspiraram e sabotaram sucessivamente os governos Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart, o que culminou com a convergência de todas as condições políticas necessárias para o golpe de Estado em 1964.

Processo que, com diferenças, se repetiu em relação aos governos de centro-esquerda das décadas de 2000 e 2010. O governo Lula da Silva foi acossado desde a posse, em 2003, quando foi iniciada uma forte tentativa para derrubá-lo através do processo chamado pela mídia publicitária de “mensalão”. Já o governo Dilma Rousseff foi permanentemente tensionado por tentativas de desestabilização organizadas pela direita conservadora tradicional, com misoginia e acusações de fraude eleitoral. Esta tensão progrediu para a construção de uma frente golpista que forjou uma denúncia de irregularidades na gestão fiscal, juridicamente irrelevante, mas suficiente para conferir justificação normativa para um impeachment que vinha sendo perseguido faziam anos.

Ainda assim, o impeachment de Dilma Rousseff e a posse de um governo do bloco golpista com Michel Temer não foram capazes de produzir a inviabilização definitiva do campo de centro-esquerda. Para as eleições presidenciais de 2018, a totalidade das pesquisas de opinião apontavam o favoritismo do ex-presidente Lula da Silva, do PT. O campo conservador tradicional percebeu que, dentro das regras do jogo, a disputa eleitoral penderia à restauração de um governo de centro-esquerda e partiu para uma estratégia tipo Dick Vigarista: movimentar o aparato jurídico, político e de comunicação para excluir da disputa o candidato à esquerda favorito às eleições.

O lawfare da “Operação Lava Jato” tornou-se consenso - entre o aparato da burocracia estatal, a massa do empresariado, o oligopólio de mídia e a direita conservadora tradicional - como a manobra jurídico-política potencialmente mais eficiente para manipular a disputa eleitoral e definir contra quem disputar as eleições.

Essa manobra foi parcialmente vitoriosa. Afastou o favorito à esquerda da disputa, mas não previu o crescimento da candidatura de extrema direita reacionária que acabou por jogar as alternativas tradicionais de direita “para o acostamento”.

A vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018 se deu em função da exclusão da candidatura de Lula da Silva. Dito de maneira hierarquizada pela relevância, a exclusão de Lula da Silva das eleições de 2018 pela operação de lawfare “Lava Jato” foi determinante para viabilizar a manutenção do bloco de direita, no poder político.

Bolsonaro serviu fortemente aos interesses da burguesia brasileira, em especial ao empresariado periférico que constitui a massa de empresários, que dá sustentação política e operacional ao bolsonarismo e às causas do reacionarismo. Contudo, ainda não foi suficiente para cumprir todo o programa da aliança reacionária-empresarial. A política de eliminação radical das conquistas trabalhistas e de favorecimento ao agronegócio não foram suficientes para estabilizar a economia e enfrentar o descontentamento crescente da população com o empobrecimento acelerado e com o desastre do enfrentamento à pandemia.

Muitos setores do campo da direita perceberam o beco sem saída onde o bolsonarismo os jogou. A política de guerra e de negação à modernidade da extrema direita implantou uma atmosfera negativa para a grande burguesia internacionalizada. Grandes investidores capitalistas, lideranças rentistas e liberais parecem ter chegado à conclusão de que essa política não é a mais adequada para seus negócios e sua política. Não são irrelevantes os depoimentos de representantes desse setor demonstrando disposição de aproximação com a candidatura de Lula da Silva.

Essa movimentação pode consolidar o quadro de uma disputa ente dois campos: da extrema direita com o apoio do empresariado periférico e um bloco amplo em torno da candidatura de centro-esquerda.

Mais uma vez, a simples política parece se mostrar insuficiente para a direita conservadora tradicional vencer a disputa eleitoral e consolidar um bloco no poder, o que recentemente só conseguiu realizar durante o período de Fernando Henrique Cardoso. Esse setor já iniciou o embarque no processo de impeachment de Jair Bolsonaro, como forma de reconhecer que será novamente preciso excluir um dos campos da política, para poder viabilizar sua alternativa no momento simpaticamente apelidada de terceira via.

A frustração com a política de Bolsonaro e a aversão à candidatura de Lula fazem reacender na direita tradicional brasileira esta espécie de síndrome de Dick Vigarista. Pouco aderente à democracia, frequentemente lança mão de manipular seus procedimentos, quando não a golpeia abertamente, para viabilizar sua ascensão ao governo e se manter no poder.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko