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Otelo Saraiva, o Capitão irresignado

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Otelo Saraiva de Carvalho foi um dos capitães do Movimento das Forças Armadas de Abril de 1974 em Portugal - Foto: José Carlos Carvalho
Otelo foi protagonista da principal experiência revolucionária nos países da língua portuguesa

Morreu neste 25 de julho, em Lisboa, aos 84 anos de idade, Otelo Saraiva de Carvalho, um dos capitães do Movimento das Forças Armadas de Abril de 1974 que pôs abaixo o regime reacionário e autoritário de Antonio Salazar em Portugal.

Otelo Saraiva de Carvalho teve uma participação determinante na queda do regime ditatorial português. Comandou todo o planejamento e o desenrolar da ação militar do dia 25 de abril, tornando-se posteriormente governador militar de Lisboa. Como os demais capitães, jovem, mas já marcado pela terrível e infame experiência da guerra colonial que a ditadura salazarista impôs aos jovens trabalhadores portugueses que eram mandados aos milhares à África para combater e oprimir os povos sufocados pelo colonialismo das elites, Otelo foi decisivo e desde então nunca deixou de sê-lo. Em 25 de abril entrou para a luta, desde esse outro 25, entrou para a história.

Otelo Saraiva foi protagonista da principal experiência revolucionária nos países da língua portuguesa. Foi um insurgente organizador e planejador e com sua disposição e liderança mergulhou de cabeça naquilo que se convencionou chamar de Processo Revolucionário em Curso, sendo coordenador do Comando Operacional do Continente, o COPCON, que centralizou toda a política de esquerda entre os militares durante os primeiros meses da revolução de Abril.


Otelo Saraiva foi o coordenador do Comando Operacional do Continente, o COPCON, que centralizou toda a política de esquerda entre os militares durante os primeiros meses da revolução de Abril / Arquivo pessoal

Abril marca o fim de um longo período autoritário em Portugal, cuja a marca era a conservação de uma aristocracia e uma burguesia atrasada e reacionária. O esforço de manter o império colonial e sua economia agrícola atrasada tornou-se o nó górdio, por ironia da história, do próprio regime nacionalista e fascista de Salazar. Frações industriais e mais modernas da burguesia portuguesa começaram a se distanciar do regime e a constante chegada de corpos de jovens mortos na estúpida guerra colonial, 10 mil por fim, tornavam incontornável a dissolução do regime.

Nos termos do próprio Saraiva: “Para os industriais, principalmente aqueles que queriam se afirmar como grandes, mesmo no campo financeiro, era necessário buscar novas fronteiras de negócios. E a Europa era o campo natural. Preferiam muito mais a integração em uma comunidade europeia e voltada para o Ocidente – como os Estados Unidos – do que manter o país sufocado naquele “cinzentismo” de uma dualidade ultrapassada.

O desemprego, a falta de liberdade, a perda dos filhos afetaram o povo e isso se refletiu no interior das Forças Armadas, composta por trabalhadores nos escalões inferiores e classes médias em seu oficialato jovem. O regime fascista e colonial que sobrevivera cinco décadas no poder e à vaga anticolonial e independentista dos anos 1950 e 1960, chegara ao seu estertor pelas mãos de jovens capitães, entre eles Otelo.

Otelo de Saraiva, assim como inúmeros setores dos trabalhadores e militares do novo Portugal, se radicalizaram no sentido de sonhar ou ousar realizar uma revolução socialista em plena Europa Ocidental, durante a guerra fira. Os conselhos de fábrica, a expropriação dos latifúndios, a nacionalização do sistema financeiro, puseram em marcha acelerada um processo de alteração da correlação de forças impressionante. Ao invés dos antigos gerentes, eram os operários que ditavam as ordens de produção nas atrasadas indústrias portuguesas. Obviamente não seria uma missão fácil.

O destino da Revolução de Abril se fundiu com o destino dele próprio. Um homem voluntarioso, lutou fortemente contra um conjunto de forças sociais e políticas que encontravam no contexto de Portugal e, principalmente, no contexto europeu, muito mais condições para hegemonizar a Revolução de Abril do que jovens oficiais e divididas organizações de esquerda. A vontade da burguesia portuguesa de se inserir na nascente Europa integrada tornou-se uma necessidade econômica de Portugal, já desprovido das grandes e ricas possessões na África. Paulatinamente, o processo revolucionário em curso perdeu fôlego e formou-se um novo bloco hegemônico democrático burguês que tomou a direção política para não mais perdê-la.

Otelo foi candidato às eleições presidenciais de 1976 com um programa socialista radical e obteve incríveis 16% dos votos, mas acabou derrotado pelo coronel Ramalho Eanes, expressão nítida do novo bloco moderado. Voluntarista e contraditório, o capitão Otelo Saraiva emergiu como nasceu Abril, uma insurgência militar que se transformou em revolução democrática, mas que tentou ser socialista. A luta política, a correlação de forças, as virtudes e limites dos capitães, da esquerda, das organizações populares não permitiram que se complementasse essa transformação e toda sua possibilidade. Henry Kissinger e a social democracia europeia estavam lá para cuidar que isso não ocorresse.

Derrotada a revolução em curso, logo essa derrota se estendeu para o próprio Otelo Saraiva. Porém ele não compreendeu. Embarcou em uma aventura vanguardista, como havia sido seu triunfo até agora, e se isolou da esquerda real e da nova classe trabalhadora que emergiu em Portugal, entre tantos fados trágicos, por sua própria obra. O Portugal liberto do fascismo em que ele morreu, ainda arrancando debates e controvérsias, com certeza é menos do que ele pretendia, mas é mais do que qualquer trabalhador já havia vivido. A história não é linear e por isso é uma estultice acharmos que ela tem fim e que o fim seja a vitória ou a derrota. Ela é um processo e no momento que comemora-se uma vitória ou se desaba por uma derrota, seu contrário já nasceu e logo alterará essa realidade.

Otelo talvez soubesse disso e por isso sempre foi um irresignado. Nunca aceitou o desfecho de seu Abril. Se vitorioso ou derrotado tanto faz, o que importa é que ele nunca concordou que sua missão havia se esgotado.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko