Rio Grande do Sul

ENTREVISTA

"A rua não é um romance", afirma ex-morador de rua e idealizador de Escola de Redução de Danos

Doutor em "Ruaologia - ciência de quem vive na rua", Anderson Rosa Ferreira é do MNPR e trabalha no jornal Boca de Rua

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Anderson, à direita na foto, ao lado do neurocientista dos Estados Unidos Carl Hart, famoso defensor da Redução de Danos - Foto: Reprodução

Anderson Rosa Ferreira tem 44 anos. Ex-morador de rua, viveu por mais de 15 anos sem um teto para dormir em Porto Alegre. “Minha história é como toda a pessoa negra da periferia. Pobre sem oportunidades, o que sobra acaba sendo a rua”, afirma. Longe de romantizar a sua antiga situação, ressalta que “na rua tem muita violência” e que os impactos desta condição “são pra vida toda”.

Integrante do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), trabalha desde 2015 no Jornal Boca de Rua – impresso que há 20 anos é produzido e vendido por pessoas em situação de rua da capital gaúcha. “O Boca é a maior ferramenta de transformação social que eu conheci na minha vida. Eu percebi no jornal que os saberes são diferentes e devem ser valorizados, que a crítica e a autocrítica tu vai adquirindo naturalmente participando do projeto”, revela.


Anderson, de moletom branco, em 2007, em foto da época da criação do MNPR RS, quando ele conheceu o Boca de Rua e a Redução de Danos / Arquivo pessoal

Foi com o Boca de Rua que ele conheceu e entrevistou Carl Hart, famoso neurocientista e professor da Universidade de Columbia (EUA), defensor da política de redução de danos para dependentes químicos. O encontro foi ideia do Anderson e ocorreu em 2019, no Congresso Internacional da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos Sobre Drogas (ABRAMD), em Curitiba.

Atualmente Anderson cursa Políticas Públicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Antes de encontrar mérito em chegar na universidade, ele questiona: “por que os demais não conseguiram, eles têm menos conhecimento? São menos inteligentes? Não produzem nada? Só usam drogas!! Não, a maioria tá desde criança na rua e eu cheguei adulto. Isso me proporcionou ter um pouco mais de oportunidades. Não podemos ser meritocratas quando a correria é desleal.”

Anderson é doutor em “Ruaologia”, assim como seus colegas do Boca de Rua. Ele explica que “Ruaologia” é “a ciência de quem vive na rua”. A palavra foi inventada por seu colega, Carlos Henrique, quando se apresentou em reunião com a gestão da Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC). “Tinha doutores de tudo que é tipo... aí na apresentação dele, ele disse ‘sou dr. em Ruaologia.”

Mesclando suas vivências e com o objetivo de disseminar a cultura da Redução de Danos, Anderson idealizou a Escola Virtual de Cuidado em Redução de Danos. A iniciativa começa com um curso reunindo palestrantes de diversas áreas, que terá sua primeira aula no dia 19 de agosto (saiba como se inscrever e confira a programação no final desta reportagem).

Em entrevista ao Brasil de Fato RS, Anderson Rosa Ferreira compartilha suas experiências, impressões e projetos. Confira, a seguir:

Brasil de Fato RS - Qual é a história do Anderson? De onde vem, como foi morar na rua e como chegou à universidade? Como fez para estudar sendo uma pessoa em situação de rua?

Anderson Rosa Ferreira - Eu tenho 44 anos. Minha história é como toda a pessoa negra da periferia. Pobre sem oportunidades, o que sobra acaba sendo a rua. Morei por mais de 15 anos na rua!

Eu venho de Porto Alegre mesmo. Como é morar na rua!!!!? É como se você não tivesse chão mais, o mundo está ao contrário, no caso você não tem teto! Lembrando que "descendo a rua da ladeira só quem viu que pode contar".

Como eu cheguei na universidade? Da mesma forma que todo mundo. Me inscrevi pro vestibular, fui no dia e hora marcada das provas, preenchi a grade de resposta, entreguei pro fiscal, esperei o resultado. Como eu fiz pra estudar? Não estudei, já tinha o ensino médio, só fui nas provas e fiz a redação. Eu fiz o que eu sabia e marquei as demais na mesma letra.

BdFRS - Como se define “Ruaologia”? O que se aprende com esta disciplina da vida?

Anderson - Ruaologia é uma ciência. Não uma disciplina, mas a ciência de quem vive na rua. Eu estava presente quando meu colega Carlos Henrique disse pela primeira vez, foi em uma reunião com a gestão da FASC, tinha Doutores de tudo que é tipo... Aí na apresentação dele, ele disse “sou dr. em Ruaologia”. O que se aprende!? Se tu não pirar, tu fica mais forte mentalmente.


Anderson é doutor em "Ruaologia" / Reprodução

BdFRS - A cidade não costuma ser generosa com as pessoas em situação de rua. Há um forte preconceito, estigmas. No seu tempo de rua, o que ouviu que mais o impressionou? Que impactos que isso acarreta?

Anderson - Eu não diria preconceito, eu afirmaria que já é um conceito! A rua não é um romance. Na rua tem muita violência. A coisa mais assustadora que eu escuto até hoje é "as pessoas da rua têm que se conscientizar a sair da rua". Fala sério!!

Os impactos são pra vida toda. Eu observo em mim que sou violento na maneira que eu me comunico com as pessoas. Pense que eu sou violentado o tempo todo pela minha cor da pele, por ser pobre, aí como não reproduzir isso! Em 200 anos nada mudou.

BdFRS - Acaba-se construindo a racionalidade na sociedade no sentido de que a pessoa em situação de rua não pode estar ocupando determinados espaços, o que legitima a violência policial e remoções sem ordem judicial. Como tu, como ex-morador de rua vê isso?

Anderson - Eu sou morador de rua, só não durmo na rua! Eu alugo um quarto que não é meu, eu caminho sempre na beira do precipício. Vivo em um tempo que eu tenho que escolher entre comprar comida ou dormir na rua.

Esse discurso de ódio vem muito da própria mídia de massa que divulga umas coisas nada a ver, como por exemplo abrir o Gigantinho pra 100 pessoas nos dias de frio. Foi importante sim, mas são mais de 6 mil pessoas em situação de rua! Aí a pessoa que ouve isso, que tem um lugar no Gigantinho, acaba acreditando.

BdFRS - Um dos efeitos que a pandemia trouxe foi o aumento de pessoas em situação de rua, casos que a pessoa ficou sem sustento, sem casa e também com fome, o que acabou fazendo com que a pessoa acabasse em situação de rua. Como interpretar essa realidade?

Anderson - Isso é tragédia anunciada, o pobre virando miserável, e o classe média ficando pobre, e o rico ficou mais rico. Minha avó dizia uma frase certa “não podemos ter mais do que precisamos se não faltará para os outros”.

BdFRS - Como tu vês o processo de higienização que algumas cidades adotam em relação às pessoas em situação de rua, como por exemplo, tirá-las dos centros da cidade, como fez Porto Alegre, e colocá-las em outro lugar? E também sobre a atuação policial em relação a abordagem que fazem as pessoas nessa situação, muitas vezes de forma bruta e despreparada.

Anderson - Ninguém quer uma pessoa morando na sua calçada, mas ao mesmo tempo não tem vaga pra todo mundo dormir. A violência das forças de segurança e só a ponta do iceberg.

BdFRS – Qual a tua avaliação das políticas públicas para as pessoas em situação de rua em Porto Alegre e no estado? E a importância dos moradores de rua estarem organizados em movimentos sociais.

Anderson - As políticas públicas pras pessoas em situação de rua no Brasil são como uma porta giratória de banco, tu entra é mal tratado e sai no mesmo lugar. Manter as pessoas miseráveis também é uma estratégia do poder público porque tu mantém a pessoa como cliente da pobreza, aí é muito mais difícil a mobilização, é quase uma utopia conseguir manter as pessoas militantes orgânicos.

BdFRS – Como tu chegou no jornal Boca de Rua? O que significa esse projeto na tua vida?

Anderson - Eu conheci o Boca de Rua em 2007 por três ex-integrantes que já partiram. O Estado os matou por tudo isso que a gente conversou. Aí namorei o Boca por oito anos e entrei no jornal em 2015. O Boca é a maior ferramenta de transformação social que eu conheci na minha vida. Eu percebi no jornal que os saberes são diferentes e devem ser valorizados, que a crítica e a autocrítica tu vai adquirindo naturalmente participando do projeto.

Eu ter chegado na universidade não é nenhum mérito, a pergunta é por que os demais não conseguiram, eles têm menos conhecimento? São menos inteligentes? Não produzem nada? Só usam drogas!! Não, a maioria tá desde criança na rua e eu cheguei adulto. Isso me proporcionou ter um pouco mais de oportunidades. Não podemos ser meritocratas quando a correria é desleal.


Capa do Boca de Rua com a entrevista que Anderson fez com Carl Hart / Reprodução

BdFRS – Nos conta como nasceu a ideia de promover essa formação sobre cuidado na liberdade, autocuidado e Redução de Danos.

Anderson – Então, na verdade estou fundando uma Escola Virtual de Cuidado em Redução de Danos. Essa ideia vem muito da falta de emprego, pandemia, valorização do saber popular. Ao contrário do que as pessoas pensam, a RD não é só para pessoas que consomem álcool e outras drogas, vem de um cuidado pra vida. O maior exemplo é o voto, tu vai votar naquele que vai te trazer menores danos.

E o que vamos passar pras pessoas nessa primeira formação são as narrativas de práticas de Cuidado que muitos atores fazem no seu cotidiano e alternativas daquilo que tá dado como única salvação pras pessoas que estão com dificuldade com seus usos. A formação teve uma boa procura e isso não se aprende nas universidades porque eu não li, não ouvi, não vi, isso eu VIVI!!!! É sobre isso que vamos conversar na formação, o que chamamos de telas de conversa!

A Escola e o curso

A Escola Virtual de Cuidado em Redução de Danos propõe contribuir com a disseminação da cultura de Redução de Danos no cotidiano da sociedade e nas políticas públicas, por meio da abordagem dos temas e da produção de materiais educativos. Reune palestrantes de diversas áreas e se destina aos interessados em conhecer ou aprofundar os estudos sobre o tema.

O curso começa no dia 19 de agosto, é composto de 11 encontros quinzenais, ao longo de 5 meses (via Google Meet) no horário das 19h30 às 20h30. A iniciativa conta com o apoio do Fórum Gaúcho de Saúde Mental (FGSM) e da Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação (ALICE).

Interessados podem se inscrever pelo (51) 99393-2098, sendo R$ 70,00 o valor do curso completo. Maiores informações pelo mesmo número, com o próprio Anderson.

Programação

1º Encontro - Aula aberta com Anderson Ferreira - 19/08/2021

TEMA: CUIDADO, AUTO-CUIDADO e INDIVÍDUO

Apresentação e discussão do tema, seguido por conversa e narrativas da vivência de uso de álcool e outras drogas, e vida na rua.

2º Encontro - Conversa com a convidada Carol Sarmento - 31/08/2021

TEMA: MULHERES, MATERNIDADES e VIOLÊNCIA: reflexões de uma pesquisa militante com mulheres em situação de rua.

3º Encontro - Roda de conversa com Anderson Ferreira - 14/09/2021

TEMA: CONTEXTO E CUIDADO NO TERRITÓRIO e POLÍTICAS PÚBLICAS

Apresentação e discussão do tema, seguido por conversa e apresentação de narrativas, vivências nos territórios e experiências de busca ativa.

4º Encontro - Conversa aberta com a convidada Ciça Richter - 30/09/2021

TEMA: AROMATERAPIA COMO ESTRATÉGIA DE CUIDADO

Relatos de vivências de promoção de Autocuidado com ajuda da Aromaterapia de forma acessível e prática para Pessoas em Vulnerabilidade Social.

5º Encontro - Conversa com Carolina Pommer - 07/10/2021

TEMA: TEATRO como PRÁTICA de CUIDADO em RD

Corpo, arte e expressão política: teatro como prática de redução de danos.

6º Encontro - Conversa aberta com Eduarda - 19/10/2021

TEMA: CUIDADO JURÍDICO NO SISTEMA CARCERÁRIO

Entre a realidade e a possibilidade: Drogas, sistema carcerário e o dever de cuidado. Um olhar prático-jurídico acerca do atravessamento entre as Drogas e o sistema carcerário: da repressão legal ao dever de cuidado em liberdade.

7º Encontro - Conversa com Paulina Gonçalves - 02/11/2021

TEMA: JUVENTUDE na RUA: DESAFIO da PROTEÇÃO ESPECIAL

Breve histórico da situação de rua e da juventude; proteção social e os desafios.

8º Encontro – Conversa com Paula Cadore - 18/11/2021

TEMA: CuidARTE: possibilidades de acolher em saúde mental

Relacionar o acolhimento como uma prática diária do cuidado em saúde mental, pautado através da arte que provoca deslocamento para o cotidiano.

9º Encontro - Conversa com Veridiana Machado - 30/11/2021

TEMA: A LUTA como fator ORGANIZADOR de AUTONOMIA

Pessoas em Situação de Rua e sua organização política coletiva: quais potências e possibilidades de avanços individuais e coletivos?

10º Encontro – Roda de conversa com Anderson Ferreira - 09/12/2021

TEMA: VIDA , DESEJO, ESCUTA e PRÁTICAS de RD

Histórias, escutas, narrativas e vivências de RUAOLOGIA.

11º Encontro - Conversa com Mateus Cunda - 14/12/2021

TEMA: POLÍTICA de DROGAS, da "epidemia" da "dependência química" e do cotidiano no CAPS AD.

*Com a colaboração de Ayrton Centeno, Fabiana Reinholz e Walmaro Paz


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Edição: Marcelo Ferreira e Katia Marko