Rio Grande do Sul

Coluna

O golpe não começou hoje

Imagem de perfil do Colunistaesd
"O bolsonarismo é o partido orgânico do golpismo no Brasil" - Evaristo Sa/AFP
A intenção não é “dar um golpe”, mas, através das ameaças e movimentos, conservar o golpe já dado

Um golpe sempre é um ato visto individualmente dentro de um processo que contém vários outros fatos. Em sua obra, incontornável para as investigações científicas acerca do golpe militar de 1964, René Armand Dreifuss[1] demostra que o golpe de Estado de março/abril de 1964 foi um fato não isolado, ainda que categórico. Tratou-se de um processo que não se iniciou tampouco se encerrou naqueles dias.

Neste sentido, a ideia de que Bolsonaro tente um golpe nas próximas semanas não parece expressar a dimensão profunda dos fatos. Eles vão se desenvolvendo e desnudando na medida em que o governo Bolsonaro vai perdendo apoio e sustentação política entre parcelas dos trabalhadores e entre setores empresariais, tanto quanto aumenta seu isolamento político internacional.

Se de um lado, a vitória eleitoral de Bolsonaro foi viável em função de um conjunto de operações políticas que derrubaram o governo democrático de Dilma Rousseff e impediram Lula de concorrer às eleições presidenciais de 2018, resultados estes mais impactantes e decisivos de um processo golpista aberto ainda em 2013. De outro, percebemos nitidamente, hoje, que é o governo Bolsonaro que organiza a continuidade do golpe. O bolsonarismo é o partido orgânico do golpismo no Brasil.

Desde o governo, ou seja, a partir dele, se materializam um conjunto de medidas e atos de desconstituição e combate ao pensamento democrático, como as intervenções nas universidades federais e a central de fake news produzidas pelo “gabinete do ódio” (sic). Justamente, a partir da ação do governo se articula uma maioria no Congresso Nacional que sustenta os ataques à democracia e à liberdade de opinião, como a reforma do marco civil da internet e as alterações na legislação eleitoral; se avalizam as indicações de ministros reacionários e antidemocráticos aos tribunais superiores e à liderança da Procuradoria Geral da República. Em contrapartida, para manter o apoio da lúmpen burguesia, o governo organiza as reformas trabalhistas que vão favorecendo a massa de empresários em desfavor dos trabalhadores.

A crise econômica e a catástrofe sanitária nas quais foi jogado o país fazem Bolsonaro perder legitimidade e apoio político. Fato perceptível nos primeiros resultados negativos do governo no Congresso, na crescente rejeição do presidente e no crescimento da candidatura de oposição, captados nas medições de opinião pública. A resposta de Bolsonaro tem sido o aumento das tentativas de novas conquistas golpistas, como o questionamento à lisura das eleições, namoros com intentonas militares e ataques aos ministros do STF não alinhados consigo.

Não se trata de uma ameaça de golpe, no sentido clássico que normalmente é dado aos golpes. Mas de um conjunto continuado e sequencial de manobras cuja intenção é manter organizados os setores políticos que ascenderam ao governo em função do processo golpista tornado material com o impeachment de 2016. A intenção, portanto, não é “dar um golpe”, mas, através das ameaças e movimentos, conservar o golpe já dado que, no entanto, parece inconcluso.

A não compreensão desse processo é um dos grandes riscos a uma virada democrática no país. Vários setores ainda que democráticos, notadamente os setores democráticos liberais, flertam perigosamente com a desídia em relação ao perigo fascista que Bolsonaro representa. Neste caso, a retórica de que Bolsonaro pretenderia um golpe, sem reconhecer que ele é resultado do golpe em curso, passa a ser uma manobra política para sustentar o mesmo distanciamento em relação a Bolsonaro que experimentam desde as primeiras mortes pela pandemia. O problema é que esta crítica focada nos “excessos” de Bolsonaro não reconhecem que o golpismo é a natureza do governo e não sua exceção.

Ocorre que esta política implica em uma dualidade favorável a Bolsonaro, pois não permite à oposição apresentar uma reação suficientemente forte aos “testes” de movimentos políticos que ele vem fazendo. Uma espécie de política claudicante que oferece tempo e espaço político para Bolsonaro continuar aglutinando a extrema direita a partir de ataques agressivos, ora sobre o STF, ora sobre o TSE, ora sobre a oposição. Enquanto o bolsonarismo produz ameaças de intervenção militar, de bloqueio de estradas e de violência e perseguição, organizando e alinhando a base da extrema direita no país, a oposição tem sido lenta na consolidação das condições para o impeachment e de repressão legal a tais ameaças anticonstitucionais.

Essa dubiedade permite que um procurador geral da República e oficiais generais, todos em funções públicas delimitadas pela Constituição Federal, flertem com o golpismo através de suas omissões ou, até mesmo, através de manifestações colaborativas no que diz respeito às ameaças à democracia. O campo democrático precisa reagir mais fortemente a essas testagens sobre a disposição de resistir àquele golpe que não começou hoje.


[1] Dreifuss, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 1981.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko