Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | O Arranha-céu à beira do Guaíba e a transformação da cidade que exclui os pobres

"Os vereadores não sabem o que o Inter tem que dar em troca para os porto-alegrenses. A população, então, não faz ideia"

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Imagem ilustrativa do projeto que o Sport Club Internacional pretende executar no terreno ao lado do estádio - Foto: Reprodução

Tramita, Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Projeto de Lei (PLCE 004/19) que possibilita que sejam construídos, ao lado do estádio do Beira-Rio, os dois maiores prédios do estado do Rio Grande do Sul.

Esse projeto foi proposto em 2019 pelo então prefeito Marchezan e, agora, foi desarquivado pela gestão de Sebastião Melo. De início, é fácil perceber que Melo continua e aprofunda o projeto e a visão de cidade do prefeito anterior do PSDB.

Mas falando em prefeito, foi Leonel Brizola que, em 1956, fez a doação da área a um dos clubes mais populares da cidade para que este pudesse aterrar parte do Guaíba e construir ali uma “praça de esportes”.

O Sport Club Internacional ganhou o terreno da prefeitura, mas a Lei 1.651/1956 proíbe que o clube construa qualquer coisa que não sua praça esportiva, seu estádio. Isso é chamado de encargo. O Internacional aceitou um grandíssimo e muito bem localizado terreno, que era um bem público de todos os porto-alegrenses, e concordou que somente construiria ali uma praça esportiva.

Brizola fez o necessário, o importante e o legal ao doar um bem público: exigiu contrapartidas que beneficiassem toda a população. Ora, o gestor público, ao fazer uma doação – lembrando aqui o óbvio: um bem público, um terreno da prefeitura, é de toda a população –, tem a obrigação legal de garantir que essa doação terá um benefício geral, o chamado interesse público.

Lá em 1956, Brizola determinou que, como contrapartida para o Internacional construir seu estádio em local de propriedade pública e em lugar absolutamente privilegiado, o Clube construísse uma escola para pelo menos duzentas crianças, a qual seria doada para a prefeitura. Ainda, a doação estabelece que as dependências do Clube podem ser utilizadas para atividades esportivas e culturais de iniciativa da prefeitura que beneficiem a população.

Agora, 65 anos depois, Melo quer dar para o Inter a possibilidade de construir dois arranha-céu na beira do Guaíba. Quem será que terá condições de comprar os apartamentos de moradia? Alguém é ingênuo o bastante para pensar que será a classe média assalariada? Quais os empresários que conseguirão alugar os empreendimentos comerciais? Os trabalhadores que há anos vendem cerveja e churrasquinho no Estádio? Os ambulantes? Será mesmo?

O que significa para os cofres de qualquer empresa poder construir dois arranha-céu às margens do rio, com uma das vistas mais bonitas da cidade? E não podemos esquecer: tudo isso em um terreno que ganharam DE GRAÇA. Certamente o Inter ganha, e provavelmente vai ganhar muito.

Mas e o interesse público? O que a população ganha?

Não sabemos!

Os vereadores, que irão votar o PL, não sabem o que o Inter tem que dar em troca para os porto-alegrenses. A população, então, não faz ideia.

E o meio ambiente? Ganhamos em questões ambientais? Quais os impactos no ambiente urbano? Também não se sabe, pois ainda não há, ou ao menos não é discutido de forma pública, os estudos de impacto ambiental (EIA), que também são essenciais para a discussão de qualquer projeto desta importância.

E as comunidades próximas? E a cultura popular que tem seus espaços nas redondezas do Internacional? Obviamente serão atingidos! Mas o que o povo e os moradores pensam? Não se sabe! A prefeitura não fez o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV). Se foi feito, nem as escolas de samba do entorno e nem as comunidades foram ouvidas. Também não escutaram o Quilombo da Família Lemos. Foram todos ignorados. Se há EIV, ele é excludente e não é de conhecimento público.

Precisamos falar sobre o Quilombo

A família Lemos, vizinha do Internacional, há muito sofre com a especulação imobiliária e com as investidas sobre seu território, que deveria ser garantido enquanto reparação histórica. Neste projeto para a construção das torres ao lado do Beira-Rio, eles sequer foram ouvidos para a elaboração do processo.

Porém, sem a escuta aos quilombolas, o projeto não é somente ilegal (por falta de EIA e EIV), mas também desrespeita o direito internacional (Convenção 169 OIT), a qual estabelece a necessidade de escuta dos povos originários sempre que seus direitos forem atingidos. E a especulação imobiliária, o aumento do preço da terra na região, a mudança da vizinhança e os impactos financeiros sobre o comércio da localidade, com toda a certeza atingem o quilombo ancestral dos Lemos.

Ilegal, sem democracia, sem participação popular, sem ao menos conhecimento dos atingidos. O PL das Torres do Inter é a expressão desta gestão da prefeitura, que tem uma clara política urbana de privilégio dos empreendimentos para quem pode pagar, afastando e empurrando os pobres para os cantos da cidade.

E não, certamente não se quer prejudicar o Internacional. A questão é que esse clube, antes de ser um time de futebol, é uma entidade privada, e toda lei tem que preservar o interesse público de toda a população.

Se você leu o texto até aqui, te fazemos uma pergunta: lembra da escola que o Inter deveria construir em contrapartida ao terreno dado pela prefeitura? Nunca foi feita! E que o Melo faz agora, no PL que está na Câmara? Desobriga o clube a fazer a escola – que há 65 anos espera sair do papel. Estamos vendo o prefeito e sua base aliada na Câmara tentarem entregar o que é público em troca de nada. Não podemos aceitar!

* Karen Santos é vereadora de Porto Alegre pelo PSOL

** Publicado originalmente no site da vereadora

*** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira