Entrevista

Nasser: Bolsonaro tem islamofobia com muçulmano pobre, mas não com os sheiks do Golfo Pérsico

Professor da PUC lança livro sobre a ocupação norte-americana no Afeganistão e critica sensacionalismo da imprensa

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Jair Bolsonaro e Mohammad bin Salman, príncipe herdeiro da Arábia Saudita, na reunião de cúpula do G20 em Osaka, no Japão, em 2019 - Divulgação/Presidência da República

Em seu discurso na Assembleia Geral da ONU, na última terça-feira (21), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) anunciou que o Brasil poderia conceder visto humanitário para afegãos que estejam fugindo do Talibã. Mas impôs uma condição: somente os cristãos. O professor de Relações Internacionais da PUC-SP Reginaldo Nasser criticou a declaração, com palavras duras e sem papas na língua.

“É islamofobia com pobre, o Bolsonaro tem islamofobia com os sheiks do Golfo Pérsico? Não, não tem. Islamofobia com islâmico fodido tem, mas com islâmico que tem poder? Ninguém mexe. A elite islâmica do Brasil apoiou o Bolsonaro. Tudo traíra. Islamofobia de pobre, refugiado e que está fodido. Quem tem dinheiro não sofre islamofobia”, disse Nasser.

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Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor lamentou que a tentativa de fuga de afegãos no aeroporto de Cabul tenha sido pouco e mal abordada e analisada pela mídia ocidental, que teria comprado uma narrativa vendida pela imprensa estadunidense.

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Reginaldo Nasser: "No Afeganistão, não se viabiliza qualquer poder que queira ser centralizado e unificado" / Reprodução | TV Unesp / Operamundi

“Veja bem, houve um grande exagero nessa história toda. Óbvio que foi uma tragédia em Cabul. Mas aquele é um evento, dentro de um contexto maior...O que aconteceu no aeroporto de Cabul foi a retirada dos afegãos que tentavam fugir do Talibã, é isso que ocorreu. Os americanos já tinham saído e sem relato de morte, nem de civil e nem militar. A base de Bagram, base aérea que fica no Afeganistão, estava vazia havia tempos, estava abandonada”, argumenta.

Reginaldo Nasser lançou o livro “A luta contra o terrorismo: Os EUA e os amigos talibãs”, pela Contra Editora. Sobre a publicação, o professor explica faz um “resgate e uma análise do processo histórico do Afeganistão. Para não ficar apenas descritivo, eu hierarquizei alguns temas e tem ali a minha interpretação. O livro começa no pré 11 de setembro de 2001 e vai até o final do governo de Donald Trump.”

Confira na íntegra a entrevista.

Brasil de Fato: O Talibã, em algum momento, chegou a substituir o Estado no Afeganistão?

Reginaldo Nasser: Antes de tudo, temos que entender a organização econômica e social do Afeganistão, esse é o ponto de partida. No Afeganistão, 75% da população é rural, e se organiza em tribos. Isso significa que a autoridade e o poder são muito fragmentados. A imagem mais próxima que nós temos, desse tipo de organização, é do período feudal na Europa. Então, esse líder tribal tem o controle de tudo, da economia às armas, esses líderes têm exército particular.

Investigando melhor, cheguei à conclusão de que, no Afeganistão, não se viabiliza qualquer poder que queira ser centralizado e unificado. Não existe isso, se o Talibã decidir fazer isso, vai cair. Como o Talibã conhece bem a região, sabe que terá que fazer acordo com esses líderes tribais. O Talibã, aliás, nunca dominou todo esses territórios, eles sempre fizeram bons acordos com os líderes tribais. Quando os EUA invadiu, em 2001, uma parte desses líderes tribais ficaram contra os Talibãs.

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Então, isso aqui que você perguntou é meia verdade, se tornou um jargão repetido no mundo. Eu dou o exemplo das drogas. Quando o Talibã era governo, reprimiu, as plantações de papoulas. Durante a guerra, para fazer uma imagem internacional, para mostrar como os EUA estava reprimindo a população, o Talibã liberou o plantio. Nos livros que li e nos relatos, não encontrei nada muito próximo a dizer que o Talibã substitui o Estado. Não avaliaria por aí, mas de toda forma, é importante dizer que o Talibã faz parte da sociedade afegã.

Como o senhor viu a saída americana do Afeganistão?

Eu ainda estou para entender direito o que aconteceu. Mas veja bem, houve um grande exagero nessa história toda. Óbvio que foi uma tragédia em Cabul. Mas aquele é um evento, dentro de um contexto maior. O pessoal do Trump, que iniciou as negociações, sentou em Doha e fez um acordo, de forma oportunista começou a atacar o Biden. Uma parte do Partido Democrata, também.

Então, a imprensa americana criticou a retirada das tropas e aqui, no Brasil, a imprensa foi só repetindo as críticas, e a direita e a esquerda também foram por aí. Quando começa o ano de 2021, os EUA tinha, no Afeganistão, no máximo 3.500 homens. Olha, 3.500 homens segura o Talibã? Óbvio que não. O Biden (desde o começo do ano) começa a cortar recursos e sair, e o Talibã avançando.

No livro, eu falo da retirada dos EUA, e eu entreguei o livro no começo de agosto. O que aconteceu no aeroporto de Cabul é diferente, foi a retirada dos afegãos que tentavam fugir do Talibã, é isso que ocorreu. Os americanos já tinham saído e sem relato de morte, nem de civil e nem militar. A base de Bagram, base aérea que fica no Afeganistão, estava vazia tinha tempo, estava abandonada.

Todas essas guerras, no Afeganistão e no Iraque, foram bastante terceirizadas, chegaram a ter 100 mil contratados, que não são fuzileiros navais, são civis ou militares

No início do ano, tinham 17 mil contratados no Afeganistão, e em abril caiu para 4.000 ou 5.000. Essa redução foi qualitativa, porque era o pessoal que cuidava da Força Aérea, isso permitiu o avanço do Talibã nas cidades, porque o meio rural já estava completamente tomado.

A dúvida era se teria batalha quando o Talibã chegasse nas cidades, não aconteceu nada. Estava tudo previsto, a velocidade que acelerou, mas estava previsto. Foi muito exagero. Olharam Cabul como se fosse o Afeganistão. A imprensa ocidental tomou isso como modelo, entendendo o que acontece em Cabul como se fosse todo o Afeganistão.

Agora, sob a tutela do Talibã, qual deve ser a relação do Afeganistão com os vizinhos?

O Afeganistão não está conectado ao Oriente Médio. O Talibã nunca se pronunciou sobre a Palestina, então com Israel não há nada. O Talibã nunca atacou alguém além da fronteira. Ao contrário da Al Qaeda, o Talibã nunca incomodou fora do Afeganistão. Quem colocou o Afeganistão no cenário foi a Al Qaeda e lá atrás a Jihad, porque a União Soviética estava lá. Mas não há conexão com o Iraque, por exemplo, ou nenhum outro país do Oriente Médio.

Quem quer fazer a conexão é o Estado Islâmico, um braço no Irã e na Síria, na verdade, que quer fazer essa conexão e, inclusive, acusa o Talibã de traição aos muçulmanos. Doutrinariamente, eu diria que o Estado Islâmico tem mais coerência, porque a ideia deles é que a comunidade islâmica está acima das nações. Então, não interessa ter poder no Afeganistão, porque o Estado Islâmico não reconhece a existência das nações. Quem quer levar e conectar o Oriente Médio é o Estado Islâmico.

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Diante da péssima repercussão da invasão americana em solo afegão, o senhor acha que eles conseguirão justificar novas investidas bélicas em outros países?

O pós-II Guerra Mundial trouxe o fato de que a possibilidade de qualquer grande potência entrar em guerra com outra grande potência é quase impossível. Vão ficar disputando, mas a possibilidade de uma guerra é miníma. Agora, a capacidade dos EUA de fazer isso é imensa.

Os EUA não foram derrotados nesse episódio do Afeganistão. Morreram apenas 2.500 mil americanos em 20 anos, isso é pouco

Quantas pessoas morrem no Brasil por ano? O que a sociedade americana fez? Passeata? Nada. Quando se fala do Vietnã, também não houve derrota militar. Os EUA poderiam ganhar. Mas, lá dentro dos EUA, pediram a volta para casa, morreram 54 mil americanos, atingiu a classe média. Enquanto estava morrendo negro e índio, eles não se preocupavam.

A questão agora é que o presidente Joe Biden e os democratas estão agindo dentro dos EUA, é uma batalha fodida para taxar grandes corporações. Olha só, o Iraque está arrebentado, a Síria, o Líbano e a Palestina, também. Isso é ruim para os EUA? Alguém disse que os EUA querem aliados. Sim, é o ideal. Mas se eles tiverem aliados, não têm inimigos. Quem é o Iraque hoje? Ninguém. Era o Estado mais poderoso na região. Quem tem poder na região? O Irã.

Os EUA não vão entrar em guerra com o Irã. Mas os EUA vão fazer pequenas ações em outros lugares do mundo. Há uma especulação, não já, de que vão para a África, com a justificativa de busca por petróleo. Mas eu acho que o Oriente Médio nunca sairá do radar, até por conta de Israel. Eles vão para algum lugar, é uma máquina, você acha que eles vão desligar a máquina?

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Bolsonaro disse que pode oferecer visto humanitário aos afegãos que fugirem do Talibã. Mas somente aos cristãos. É islamofobia?

Sem dúvida nenhuma, isso aí é para agradar o setor evangélico e continuar com o mote de extrema direita dele. Islamofobia entre aspas, minha veia marxista não deixa. É islamofobia com pobre, o Bolsonaro tem islamofobia com os sheiks do Golfo Pérsico? Não, não tem. Islamofobia com islâmico pobre tem, mas com islâmico que tem poder, ninguém mexe com eles. A elite islâmica do Brasil apoiou o Bolsonaro. Islamofobia de pobre, refugiado e que está fodido, quem tem dinheiro não sofre islamofobia.

Edição: Vinícius Segalla