Rio Grande do Sul

Exclusão dos pobres

Disputa pela utilização da Orla do Guaíba revela a luta pelo direito à cidade

Segundo especialistas e ativistas, a região tem sofrido intervenções que atendem os interesses de uma minoria

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Região do entorno da Orla do Guaíba está cada vez mais valorizada e atrai atenção de megaprojetos. Perigo de exclusão dos mais pobres é real - Foto: Luiza Castro/Sul21

Da ponta do Gasômetro até a praia do Lami, se estende a Orla do Guaíba por cerca de 70km no entorno da capital gaúcha. Local muito querido, é um ponto de encontro, seja para o lazer, exercícios físicos ou contemplação.

Fechado para circulação entre os anos de 2015 e 2018, foi reaberto após a primeira etapa de vitalização. Hoje, a situação da Orla segue permeada por um intenso debate sobre o impacto que grandes empreendimentos do entorno podem causar.

No dia 20 de agosto publicamos aqui no Brasil de Fato RS a reportagem “Cais Mauá: patrimônio histórico de Porto Alegre completa 100 anos fechado e em mãos privadas”. A matéria lançou olhar sobre a atual situação do porto histórico, situado na Capital.

O trabalho da Orla em si e sua revitalização segue em andamento, por meio de concessão feita entre a prefeitura e empresas. O Trecho 1 está concluído e o 3 praticamente pronto.

De acordo com a Secretaria Municipal de Parcerias (SMP), o Trecho 1 da Orla do Guaíba foi concedido para a Concessionária Gam 3 Parks, juntamente com o Parque Harmonia, pelo período de 35 anos.

Em relação ao Trecho 2 da Orla do Guaíba, a prefeitura deve lançar um Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) para o recebimento de projetos que envolvam a implantação de uma Marina Pública no espaço.

A partir dos projetos recebidos, a equipe da Secretaria de Parcerias irá produzir um edital prevendo a concessão da área para a iniciativa privada. A previsão de lançamento deste edital é para o primeiro semestre de 2022.

Para o Trecho 3 da Orla do Guaíba, em um primeiro momento, a prefeitura trabalha com a adoção da pista de Skate e das 29 quadras por alguma empresa privada. Para ambos os casos, já foram recebidas propostas de adoção e a divulgação dos adotantes deverá ocorrer até o final de setembro.

Paralelo a isso, a prefeitura está contratando a FGV para a realização de um estudo para uma concessão que envolve o Trecho 3 da Orla e o Parque Marinha do Brasil.

Ao observar esses e alguns outros fatos, podemos perceber como está a relação da população com a região junto ao Guaíba, área cada vez mais valorizada. Conversamos com especialistas sobre o direito à cidade para entender um pouco mais sobre os rumos da Orla.

A Orla está mudando e vai mudar mais

A afirmação sobre o processo de mudança da região do entorno do Guaíba é do professor do Departamento de Geografia da UFRGS e pesquisador do Observatório das Metrópoles (Núcleo Porto Alegre), Paulo Roberto Rodrigues Soares.

O Observatório estuda o tema do direito à cidade e, dentro desse contexto, a Orla e seu entorno. Conforme aponta Paulo, no entorno da Orla há atualmente um momento de valorização, que está inserida em mudanças mais amplas da metrópole.

Podem ser citadas a crescente importância que ganham as paisagens e a proximidade com a água como fatores de valorização de empreendimentos ou regiões. Duas características que se encontram na região em questão.

Soma-se a isso, complementa Paulo, a formatação de uma coalizão de negócios urbanos, que inclui o atual poder público, o setor privado e os meios de comunicação hegemônicos.

Toda essa junção de interesses, segundo o professor, vai na direção de tentar tornar Porto Alegre atrativa para grandes empreendimentos comerciais e imobiliários, servindo como uma grande vitrine do que ele chama de “city marketing”.

O professor Paulo acredita que uma das características do atual momento na cidade de Porto Alegre é o avanço dos grandes empreendimentos sobre os espaços públicos comuns, como a Orla, mas também os parques, reservas ambientais e terras de populações tradicionais.

“A Orla está mudando e com certeza vai mudar ainda mais. Trata-se de um espaço em disputa: entre aqueles que pretendem privatizá-la e gerar grandes negócios e aqueles que querem o uso público e sustentável”, afirma o professor.

Segundo Paulo, fazer “um uso público” daquele espaço significa que ele seja aberto a toda a cidadania, permanecendo como um bem comum de toda a cidade. Infelizmente, segundo afirma, a correlação de forças no momento, nos governos municipal, estadual e federal, aliado à força dos meios de comunicação, aponta para o caminho da privatização.

População tem uma ânsia por espaço

Para a vereadora Karen Santos (PSOL), vice-presidente da Comissão de Urbanização, Transportes e Habitação (CUTHAB) da Câmara de Vereadores, há uma ânsia justa dos porto-alegrenses e dos moradores da Região Metropolitana por espaços agradáveis e adequados de convivência.

“O Guaíba e o nosso pôr do sol devem ser de acesso cada vez mais democrático, sendo necessários esforços para tornar real a possibilidade de lazer dessas áreas por todas e todos”, afirma Karen.

Na avaliação da vereadora, empreendimentos em planejamento e já implementados muitas vezes atuam contra o povo e o meio ambiente, se utilizando de um espaço que é naturalmente privilegiado. Pior ainda é a avaliação de que, muitas vezes, essa atuação conta com a “cumplicidade camarada” entre empresários, prefeitura e vereadores para dar um “jeitinho”.

Segundo afirma a parlamentar, os projetos urbanísticos em questão privilegiam grandes e desproporcionais empreendimentos, luxuosos arranha-céus, que excluem moradores que há décadas e gerações vivem na região.

“Nos planos da dobradinha Sebastião Melo/Ricardo Gomes com o grande empresariado não se preveem moradias populares, ao contrário. Eles articulam para dificultar a circulação de ônibus na região, por exemplo”, afirma a vereadora.

Segundo afirma, esse tipo de empreendimento favorece a especulação imobiliária e a segregação da cidade e consequentemente o afastamento dos mais pobres dos locais bonitos e seguros de lazer na cidade.

Karen pontua que é preciso compreender os empreendimentos que estão surgindo na extensão da Orla como parte de um projeto maior que está sendo pensado para a cidade, que abrange desde o Centro até o Extremo Sul da cidade.

“Não é apenas um hotel ou um centro comercial. É a introdução gradual de uma nova perspectiva que modifica o espaço urbano e a sua utilização, que privilegia grandes empreendimentos privados com potencial de lucro para algumas empresas e deixa em segundo plano a população como um todo."

O espaço do entorno do Guaíba está em disputa

A frase muitas vezes repetida “Porto Alegre está de costas para o Guaíba” sempre incomodou a advogada e ativista pela causa do patrimônio cultural Jacqueline Custódio.

“Mas por que está, ou esteve [de costas]? Porque, há muito tempo, a Orla tem sido propriedade particular”, destaca a advogada.

Ela comentou o caminho da cidade com grandes intervenções imobiliárias, citando dois exemplos, como as grandes construções (torres de apartamentos, shopping, hotel, etc.) no terreno do antigo Estaleiro Só e a criação de um novo bairro, junto ao Jóquei, chamado de “Golden Lake” (“Lago Dourado”, na tradução para o português).

Especificamente sobre o caso do “Golden Lake”, que será o conjunto de prédios de apartamentos de alto valor, Jacqueline faz um alerta.

“[Será] um conjunto de torres fechado em si mesmo, diante de uma bela vista [do Guaíba], mas que não tem uma mínima relação com o seu entorno, isso é lamentável”, afirma.

Além de um pequeno número de proprietários poder ser dono de uma área que tem o interesse de toda a população, a advogada ainda alerta para outro fato preocupante que envolve o Golden Lake, que foi a retirada da obrigação de contrapartidas.

O arquiteto e urbanista Rafael Passos, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil do Rio Grande do Sul (IAB-RS), recorda que houve um longo debate sobre as contrapartidas que aquelas empresas construtoras deveriam fazer para as comunidades da região, como por exemplo as associações de moradores do Cristal e da Grande Cruzeiro.

A ideia de empresas e empreendimentos arcarem com os curtos de contrapartidas para a sociedade parte da ideia de que a cidade deve ser um bem comum. Assim, ao se apropriar de parte de uma região valorizada para uma obra de grande impacto, as empresas devem ressarcir a sociedade por aquela perda.

Os acordos entre os entes privados e públicos que envolvem essas contrapartidas podem determinar que a empresa arque com obras viárias, de saneamento e até investimento em aparelhos de lazer e cultural nas regiões do entorno.

Segundo Rafael, pode-se dizer que as contrapartidas tentam distribuir melhor os ônus e bônus de determinado desenvolvimento de alguma região. Além disso, ele lembra que essas contrapartidas na região tendem a valorizar o próprio empreendimento.

Além da perda das contrapartidas, que poderiam ajudar a não permitir a total exclusão da maior parte da população daquele espaço, Jacqueline ainda afirma que a continuidade de processos como esse favorecem e ampliam a desigualdade social e espacial da cidade.

“[Na] qualidade do espaço público, [temos] essa diferença gritante entre o espaço do pobre, da classe média e dos ricos de Porto Alegre”, afirma.

Ele lembra ainda que o Plano Diretor da Cidade de 1999 já trazia algumas diretrizes que poderiam ajudar em um caminho inverso. E o mesmo traz a alguns caminhos ainda hoje considerados atuais, principalmente sobre o chamado desenvolvimento sustentável. “O que a gente vê [sobre o que está sendo feito] hoje, naquela área do entorno do Jockei, é uma cidade que é justamente o contrário disso”, afirma.

Megaprojetos causam impactos negativos sobre a população local

Conforme aponta o professor Paulo, estes empreendimentos têm fortes impactos sobre as populações do entorno. Em um primeiro momento, os impactos são sentidos com os despejos e remoções destes grupos.

Em um segundo momento, a própria valorização da área tende a expulsar os remanescentes, com o encarecimento do custo e a chegada de comércios e serviços mais sofisticados e caros, processo chamado de “gentrificação”.

“Numa situação de vulnerabilidade, desemprego e crise econômica com alta inflação, estes projetos são extremamente prejudiciais para a reprodução social de muitas pessoas que vivem no entorno dos empreendimentos”, complementa Paulo.

Além de causar impacto no trânsito, no meio ambiente, trazendo novas demandas de infraestrutura, como as relacionadas ao descarte de lixo e ao saneamento básico, a presença desses megaprojetos interferem no sentimento de pertencimento dos moradores nessas regiões. Pessoas que, muitas vezes, vivem com suas famílias à gerações nos locais.

“Megaempreendimentos, voltados a um público de maior poder aquisitivo, acabam por distanciar as pessoas comuns do convívio nestes espaços. Qual é o retorno social que uma grande obra como estas citadas oferece às comunidades? No nosso entendimento, não há retorno social. Sequer há contrapartidas estabelecidas ou estas são insuficientes”, ressalta o professor.

No caso das torres do Internacional (clube de futebol), a vereadora Karen Santos lembra que os responsáveis pelo empreendimento admitiram em reunião que sequer sabiam da existência do território quilombola da Família Lemos, no entorno.

“Pessoas que, juntamente com as escolas de samba, historicamente, pertencem a aquele território e que sequer foram ouvidas sobre o que pensam da construção de duas torres imensas praticamente na porta de suas casas”, lembra Karen.

Afinal, que Orla temos hoje e qual queremos?

A vereadora afirma que, atualmente, temos uma Orla linda que é ótimo “cartão postal”, mas que é hostil à população. "É uma Orla que privilegia o concreto e deixa de lado a natureza”, aponta Karen.

Recorda também que, desde a inauguração do primeiro trecho, são recorrentes os relatos de abordagens truculentas da Guarda Municipal e da Polícia Militar, além de ter havido casos de perseguição à trabalhadores informais.

Karen vai além, afirmando que está em disputa, de forma acelerada, o modelo de cidade que teremos daqui a alguns anos: o aprofundamento da cidade segregada social e racialmente, que foi o projeto do Marchezan, continuado pelo prefeito Melo, ou se teremos uma cidade que contemple os interesses da população mais pobre e trabalhadora.

Para o pesquisador e professor Paulo, cabe à população, à sociedade civil, aos movimentos sociais, populares e culturais, colocarem na mesa seu projeto de Orla, prevendo outro tipo de intervenção e seu uso público. Isto só ocorrerá com muita mobilização e conscientização da população, afirma.

“Não quero uma Orla padronizada ao gosto do turismo e do ‘city marketing’ global, temos em Porto Alegre uma grande massa crítica capaz de realizar um projeto de qualidade e que esteja vinculado ao uso comum da Orla e não à sua apropriação privada”, completa.


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Edição: Katia Marko