Rio Grande do Sul

Arte e Cultura

Exposição Museu Baldio levou a arte de Alvorada para a Casa de Cultura Mario Quintana

A mostra teve a participação de mais de 50 artistas da cidade com diversas linguagens artísticas

Brasil de Fato | Porto Alegre |
O Museu Baldio, na Casa de Cultura Mario Quintana, reuniu um conjunto de experiências no espaço expositivo sobre as práticas coletivas realizadas nos terrenos baldios de Alvorada - Foto: Suzana Pires

Uma exposição na Casa de Cultura Mario Quintana transformou as chagas e as esperanças das “badlands” de Alvorada/RS em arte. É uma exposição que existe, “graças” a um crime que começou há mais de 30 anos e segue em andamento. Este crime se transformou num parque, um Parque da Solidariedade, que existe pela ação da cidadania desta cidade. 

Desde 2015, o Parque da Solidariedade é visitado para pesquisas, experiências artísticas, mutirões de criação, limpeza, plantio e trilhas ecológicas. É uma ação coletiva e colaborativa onde artistas, moradores e pesquisadores transformam um terreno degradado, erosivo e poluído em um parque, geossítio e museu baldio iniciado dentro da terra.

O futuro ecogeoparque (ecológico + geossítio + parque comunitário) possui cerca de 200 hectares, e fica localizado em Alvorada/RS, ao centro de oito loteamentos da popular cidade-dormitório (Aparecida, Algarve, Jardim Porto Alegre, Porto Verde, Santa Bárbara, Stella Maris, Terra Nova e Torotama). Após 40 anos de solo rasgado e poluição, o espaço é ocupado pela comunidade com arte, educação, lazer, esporte e reflorestamento, para limpar e recuperar o solo e a mata entre as nascentes do arroio Stella Maris, Feijó, da bacia hidrográfica do rio Gravataí.


Projeto visa recuperar a área que possui nascentes do arroio Feijó e da bacia hidrográfica do rio Gravataí / Reprodução

A exposição Museu Baldio, teve a participação de mais de 50 artistas. Confira depoimentos de alguns artistas.

Téti Waldraff, artista visual e professora de arte

O Museu Baldio para mim como professora de arte traz uma grande motivação para colaborar neste projeto coletivo de modificação/salvação da paisagem urbana, somando cultura ao espaço. 

Penso que o trabalho tão poético e dinâmico desencadeado por Marcelo Chardosim tem uma potência pedagógica intensa. Vai agregando pessoas de diversas áreas, além de artistas e moradores da cidade de Alvorada. Desta maneira, o sabor de saberes se expande e se reparte tornando cada pessoa singular no fazer coletivo que vai tomando formas diversas. 

Natureza, público e as pessoas que constroem o museu vão redesenhando a paisagem.

Participar da exposição Museu Baldio me desafiou a pensar uma intervenção artística construindo um diálogo entre o público e o espaço do jardim e da sala com o trabalho "Animando” (2006-2021), pequenas cumbucas de alumínio com a frase "DÊ ALEGRIA" carimbada dentro, que do meu ponto de vista traz uma potência que envolve desejo de fazer, animar, repartir e falar com arte, com vida.  

O projeto Museu Baldio ganhou visibilidade e potência nesta exposição na Casa de Cultura Mario Quintana, pois reúne artistas e público numa celebração de arte e natureza. 

Os moradores de Alvorada, com este projeto, vão ganhando um novo jeito de estarem presentes usufruindo e atuando na reinvenção da paisagem urbana. 


Artistas e comunidade realizam mutirões de limpeza da área do parque / Divulgação

Elias Maroso, artista e pesquisador

Conheci o Parque Solidariedade e o Museu Baldio a partir do artista Marcelo Chardosim, atento a seu interesse de relacionar arte visual, ambiente, ação direta e coletividade. Estamos habituados a entender a criação artística a partir de imagens para serem contempladas, muitas delas expostas em ambientes específicos a esse fim, como galerias, instituições e, até mesmo, eventos a céu aberto. 

No entanto, vale lembrar que, desde a segunda metade do século passado, muitos artistas vêm buscando saídas a esse isolamento com realizações que hoje nos servem de ferramenta tática em nosso cotidiano. Iniciativas como o Parque Solidariedade e o Museu Baldio mostram que é possível associar conhecimentos comumente isolados em disciplinas ou em espaços exclusivos com ações diretas na realidade social. Além disso, ambos os projetos contam com o uso criativo de saberes da política, biologia, geologia e urbanismo.

Vejo nesse movimento um cultivo de imaginário que não pode mais ser adiado. A própria ideia de um Museu Baldio nos indica o desejo de preservação de valores que não cabem sequer no senso de propriedade, não diz respeito à conservação de obras criativas com valor material em si mesmas. Trata-se de um museu que quer preservar esforços coletivos, de uma inter-relação entre cultura e ambiente, antes de conservar produtos para uma contemplação alienada do mundo. Nesse sentido, o adjetivo baldio mais se refere à noção tradicional de museu, pois não se quer funcionando de tal maneira. Como poderíamos reduzir um engajamento artístico e ecológico nos termos da propriedade, ainda que imaterial?

Outro detalhe importante está na mobilização em torno da palavra solidariedade. Vivemos um tempo em que se coloca sob suspeita iniciativas que não tomam o interesse individual como principal motivação. Parece que não haveria mais espaço para valores coletivos e solidários nos dias de hoje. O Parque Solidariedade e o Museu Baldio se colocam no desafio de construir outro imaginário, apontam para o desafio criativo de repensar nossa vida e condição ambiental. Assim, o próprio pensamento da ecologia se amplia, pois passa por uma atenção à interferência humana em seu entorno, somada a uma (re)imaginação do ser em sociedade. É preciso repensar nossa integração ambiental, o que demanda a criação cuidadosa de arranjos comunitários, sociais – fazer da existência solidária e coletiva uma forma de arte.

Laura Becker e Carol Possa, estudantes do ensino Técnico em Meio Ambiente do IFRS/Alvorada

Colcha de Histórias Alvorada, cidade grandiosa, marcada e rasurada pelos seus muitos estigmas dos quais ouvimos por todos os espaços. Já nos fizeram pensar que essa cidade não é de se orgulhar. A cidade da solidariedade? Não sabemos, por muito tempo, só o slogan nos refletia isso. Quem vive aqui escuta desde pequeno sobre a criminalidade, pobreza, miséria, a cidade dormitório. Mas quem pulsa nela?
Alvorada jamais foi dormitório. O solo que se rasga mostra o poder da história dos povos e seres que ocuparam essa cidade, que se levanta e se reinventa através do coletivo. Através da “colcha de histórias” voltamos às nossas raízes, tocamos a argila que aparece nas veias do parque e através desta registramos com orgulho as histórias das vidas que fizeram e fazem esse espaço territorial ser tão poderoso, que movimentam cotidianamente a Alvorada. 

Diovani Coutt, artista 

Esse movimento artístico surge em um resgate de pertencimento. Após voltar de outro estado, no início da pandemia, algo na qual não estávamos preparados. Durante esse período o Parque da Solidariedade me apresentou uma Alvorada de possibilidades, desconstruindo tudo que uma formação porto-alegrense me trouxe, principalmente pelo seu estigma de uma cidade violenta, sem lei.

Atuo com a manipulação do fogo, pirofagia, em espaços públicos, abandonados, depósitos irregulares de lixo, situações que estão abandonadas ou em processo de apagamento.

A performance “O Sujeito da Incúria” surge dessa necessidade de trazer da escuridão à luz, da densidade a forma, colocando Alvorada no mapa novamente, reconstruindo e contando sua história. É uma performance de muitas sensações, dor, raiva, corrupção, descaso, crime, morte, flexibilização ambiental, mas também vida, coletividade, nascimento, forma, possibilidades, reconstituição de posse e da nossa história, é muito sintomático, não termos um museu, e um espaço digno para os artistas da cidade e região atuarem com dignidade, por isso ocupamos esses espaços em apagamento.

Nada sabemos do Sujeito, nem os crimes ali cometidos na cidade, assim como não sabemos nossa história e quem foi desenhando-a até então. Precisamos reconstruir nosso mapa. O Museu Baldio é uma experimentação atemporal, na qual já não temos mais domínio, a semente foi plantada. Viva a Arte Baldia! 


Projeto Museu Baldio ganhou visibilidade e potência nesta exposição na Casa de Cultura Mario Quintana / Foto: Suzana Pires

Guilherme Lemos, artista visual e ativista ambiental

Minha obra “Relacionamento Tóxico: Natureza, Mídia e Lixo” é uma síntese do que estudo (política, história, estudos de cultura, filosofia, sociologia, arte, ciências sociais e linguagem) com o empirismo do meu ativismo, representado de forma artística com o objetivo de causar impacto e despertar questionamentos ao expectador. Uma crítica e um manifesto visual, que denuncia a produção e o descarte de lixo no microcosmo (Parque da Solidariedade) e macrocosmo (mundo), se apropriando de uma linguagem comumente usada para definir as relações de afetos humanos. 

Todos conhecem ou já viveram uma relação tóxica e ao propor que a relação entre natureza e lixo é tóxica, se entende por que é preciso combatê-la. A mídia é representada através da TV, que tem tríplice função. Estimular, colaborar e criar espectadores, assim a mídia é uma das maiores incentivadoras do consumo desenfreado, que por consequência a torna cúmplice de todo o lixo gerado. Nossa função na frente da TV é a de espectador, sem qualquer interação ou reação com o que vemos, o que acaba determinando nossas ações, ao ver um terreno cheio de lixo, observamos isso como qualquer outra notícia. 

Meu trabalho enquanto ativista ambiental, se dá através das ações junto ao projeto do Parque da Solidariedade e Umbúntu - Alvorada, um projeto de horta orgânica e bioconstrução. Além de participação de diversos grupos online. 

Gabriel Talian (Nene), estudante de Artes e arte-educador

O ano de 2020 foi, apesar de todo o caos, uma época de reinvenções para minhas práticas. Nesse contexto, lá pelos meses de julho e agosto, me aproximei de Marcelo Chardosim, alguém que eu conhecia do curso de Artes e do ônibus apenas de vista. Eu tive a noção do projeto do Parque da Solidariedade ampliada a partir daí, algo que eu apenas havia visto em uma exposição no MARGS que o próprio Marcelo apresentou durante uma visita de uma disciplina à instituição tempos antes. 

Aos poucos fui me aproximando das pessoas com quem ele se relacionava, até que fui convidado a conhecer a ONG que estava surgindo no bairro Umbu. Ao chegar em um dos bairros mais vulneráveis de Alvorada por meio de ações de assistência em um período tão precário, ficou clara para mim a rede voluntária que estava sendo tecida. São pessoas preocupadas em preservar não apenas o meio-ambiente municipal, mas também pessoas que, antes de qualquer causa ou bandeira, são as principais agentes para se manter traços culturais e sociais vivos de uma cidade. Ao longo das semanas, conforme eu podia, estava lá no Umbu, rodeado por crianças, trabalho e muita esperança de ver um lugar tão hostilizado sendo remodelado pouco a pouco. Me orgulho de ter feito parte do início do Umbúntu como oficineiro e arte-educador.

Concomitante aos mutirões na sede da ONG, percebi que mais ações estavam sendo desenvolvidas. Algumas delas muito próximas de mim, como a revitalização do Beco das Artes no início de 2021. Além do Parque, o beco do bairro Jardim Porto Alegre carecia de uma maior atenção. Desde então, me juntei aos “guris do Beco” (Dio, Gui e Marcelo) para intervir ali, iniciando os trabalhos de pintura e grafitti nas paredes. Com uma combinação de elementos visuais da minha arte particular e símbolos do projeto Alvoraz, aplicamos o primeiro desenho no Beco dessa fase de preservação. Buscando entrar em contato com outras/os artistas locais, esse pontapé interventivo foi dado como um chamado a ocupar os demais muros que delimitam a área. Com isso, o Beco das Artes virá a ser um ambiente público de apreciação artística, visitação e convívio social.

Situando-me no último ano de graduação, ficaram evidentes para mim os caminhos de realização pessoal e coletiva que eu estava trilhando. Toda e qualquer atitude desempenhada durante essa fase geraram maior visibilidade para o que estava acontecendo na cidade. Poder participar da exposição Museu Baldio na metade de 2021 veio a ser um marco para mim e tantas outras pessoas de Alvorada que buscam expressar-se artisticamente. Viabilizar que artistas independentes, muitas vezes anônimas/os ou sem qualquer incentivo, pudessem exibir o melhor que faziam no e para o município, através de tal iniciativa, foi a grande oportunidade de destacar que toda cidade merece atenção externa para seus pontos mais positivos de manifestação cultural. 

Abrir as portas para uma cidade tão pobre de infraestrutura para linguagens multi-artísticas como a Casa de Cultura abriu em Porto Alegre foi o mesmo que uma pessoa faz ao abrir os braços para acolher alguém de fora que tem muita coisa boa para mostrar, mas não tem quem a/o apoie. O contato que o acervo digital e posteriormente físico que o Museu Baldio tem proporcionado faz com que o sentimento de solidariedade realmente se efetue no cenário artístico periférico, onde muitas pessoas necessitam de uma rede fortalecida para perpetuar a cena cultural local. Participar desse evento, portanto, foi o primeiro passo da minha trajetória como artista plástico prestes a se formar - formado como artista-estudante, mas não como artista-cidadão, já que esse processo é contínuo.


Cristyelen Ambrozio é fotógrafa, artista audiovisual e estudante de graduação em Produção Multimídia no IFRS / Divulgação

Cristyelen Ambrozio, fotógrafa e artista audiovisual. Mora em Alvorada, onde também é estudante de graduação em Produção Multimídia no IFRS

Desde a infância conheço o território que hoje é o Parque. Cresci em Alvorada, no bairro Jardim Algarve, e costumava atravessar com minha família essa região, em direção ao bairro Jardim Aparecida, onde mora minha vó. Eram 30 minutos de caminhada, enquanto o trajeto de ônibus levava uma hora! Nesse tempo o Parque era só uma passagem, uma conexão entre os bairros, entre minha casa e a casa da minha vó. 

Hoje o Parque da Solidariedade é mais que um entremeio, é um espaço de transformação, que existe e só é possível por causa das relações (de solidariedade) entre as pessoas, os animais, as plantas e a terra. Forma-se uma comunidade em torno da terra. Encontro no Parque uma nova maneira de entender e me relacionar com a cidade de Alvorada. 

No meu curta, uso como alegoria um varal de roupas estendido numa voçoroca para pensar sobre a vida presente no parque. As roupas estendidas nos varais, paisagem tão comum nas casas dos bairros ao redor do parque, lembram formas humanas. São como varais de corpos pendurados ao vento. Fazem parte de uma atividade cotidiana em que a água é um elemento essencial, mas onde está a água que lava as roupas? Onde está a água do parque? Assim como os corpos fantasmas estendidos no varal, o rio ausente se faz presente de forma espiritual.


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Edição: Katia Marko