Terras indígenas

Policiais sitiam mapuches em recuperação de terras ancestrais na patagônia argentina

Governadora de Rio Negro pede intervenção federal e tenta ligar indígenas a ato "terrorista"

Brasil de Fato | Buenos Aires, Argentina |
Policiais cercam zona de recuperação de terras mapuche após violenta repressão há duas semanas, em Cuesta del Ternero. - Aníbal Aguaisol

Um grupo de pelo menos 20 integrantes da comunidade índigena mapuche Lof Quemquemtrew encontra-se cercado por policiais provinciais na zona da Cuesta del Ternero, na província de Rio Negro, patagônia argentina. O conflito se desenrola há duas semanas, em um processo de recuperação de terras ancestrais da comunidade indígena do sul argentino.

O grupo ocupou o local no dia 18 de setembro para reivindicar o território que, denunciam, está desabitado há pelo menos 30 anos e serve para a exploração extrativista de madeira. Após uma denúncia de Rolando Rocco, que possui a concessão de uso das terras para o plantio de pinos, a polícia rionegrense e um grupo de procuradores encabeçado por Betiana Cendón adentrou o local da recuperação no dia 24 de setembro.

"O Lof Quemquemtrew reivindica não só a recuperação deste território por uma necessidade de resguardo do setor, mas também para continuar com a prática espiritual, que foi impedida pelos empresários e os que foram chegando, dividindo e ocupando as terras que pertencem à comunidade mapuche", diz a porta-voz mapuche Soraya Maicoño em entrevista por telefone ao Brasil de Fato.

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A plantação de pinos, levada a cabo pelo empresário desde a década de 1980, representa não apenas uma invasão biológica amplamente estudada que perpetua uma espécie exótica ao ecossistema patagônico como também acentua os riscos de incêndio.

A porta-voz mapuche é parte do grupo que conseguiu fugir do despejo. Houve disparos de bala de borracha e, segundo as testemunhas e vítimas, também balas de chumbo. "Há cartuchos que podem comprovar essas afirmações", assegurou Pablo Pimentel, integrante da Assembleia Permanente pelos Direitos Humanos (APDH), que esteve no local neste último fim de semana para facilitar o diálogo com o governo de Rio Negro.

Os que conseguiram fugir, hoje se encontram acampados fora do cordão policial, a 2 km do grupo isolado que, há quase duas semanas, não recebe alimentação ou abrigo.

"Nossos irmãos sitiados eventualmente fazem uma fogueira para fazer calor e, assim, podemos ver que continuam ali, que não foram tirados à força, que estão vivos", conta Soraya.

Sitiados

A porta-voz mapuche destaca que o Judiciário negou um pedido de audiência para negociar uma autorização para levar comida aos membros da ocupação e também negou a instalação de uma mesa de negociação.

O diálogo com as autoridades tem sido um grande desafio. A repressão policial do dia 24 de setembro resultou em quatro detenções e maltrato por parte dos policiais, que chegaram a apontar uma arma a uma criança de 8 anos da comunidade mapuche, afirmam as vítimas. A mãe da criança, Romina Jones, denunciou o caso como tortura.

Em sua passagem pelo local do conflito, Pablo Pimentel reuniu-se com um juiz de garantia e conseguiu incluir um representante mapuche nas conversas para negociações: o avô da criança que sofreu violência por parte da polícia de Rio Negro. "Na segunda-feira passada, dia 4, me reuni com o juiz de garantia e pedi que, primeiro, fosse habilitado um corredor humanitário e, depois, uma mesa de diálogo", conta Pimentel. "Neste conflito, precisamos encontrar uma solução dialogada, não com repressão estatal."

Orlando Carriqueo, secretário da mesa coordenadora do Parlamento Mapuche de Rio Negro, anunciou que irão denunciar o ocorrido à Corte Interamericana de Direitos Humanos. A denúncia apontará contra o estado nacional e provincial pelo "ato criminoso" de cercar e sitiar integrantes da comunidade Quemquemtrew na Cuesta del Ternero.

"É próprio da Campanha do Deserto. A polícia fronteiriça atuou dessa maneira no fim do século 19, com uma violência extrema contra as comunidades", afirmou Carriqueo, referindo-se às expedições militares do estado argentino para a conquista de territórios e o genocídio indígena, em 1878.

Ganhador do Prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel dirigiu uma carta à governadora da província de Rio Negro, Arabela Carreras. "Sentimos uma profunda preocupação pela situação que sofre a Lof QuemQuemtrew, pertencente ao povo mapuche da província que a senhora gestiona", escreveu. "Esta comunidade se encontra em uma situação de emergência humanitária pelo acionar de violência do Estado que não reconhece seu direito ao território."

O suposto RAM e vestígios da política Bullrich

A governadora afirma que as forças de segurança foram acionados por decisão juiz Ricardo Calcagno, que determinou que o local da ocupação seja cercado.

Após as repressões policiais na Cuesta del Ternero, dois episódios na província ganharam as manchetes: um incêndio de máquinas rodoviárias em um depósito em Bariloche e a destruição de um centro de informação turística ainda não inaugurado em El Bolsón.

Segundo informado por assessores do governo rionegrense ao Brasil de Fato, o único ocorrido "seguramente atribuído" à comunidade índigena foi a destruição do ponto de informação turística, ainda que não descartam a possibilidade de vínculo do ataque ao centro turístico, uma vez que "há uma usurpação de terras acontecendo no mesmo momento por parte da comunidade".

De acordo com o assessor do governo, uma carta com símbolo e mensagem mapuche "da ala radical" foi deixada no local após o ataque. A governadora Arabela Carreras realizou uma conferência de imprensa na última segunda-feira (4) comunicando a abertura de uma denúncia à Procuradoria do Estado de Rio Negro para investigar o delito de "terrorismo".

Carreras afirmou ter solicitado ao Ministro de Segurança da Nação, Anibal Fernández, a presença das forças de seguranças federais para "tranquilizar e garantir a segurança das pessoas".

Desde 2017, com o governo do então presidente Mauricio Macri e com Patricia Bullrich como Ministra de Segurança, jornais alinhados ao governo passaram a nomear uma suposta agrupação radical que se chamaria Resistência Ancestral Mapuche (RAM), e classificá-la como "terrorista".  Não há qualquer registro da existência desse grupo que, no entanto, ainda é noticiado.

Neste mesmo ano, a força de segurança chamada Gendarmeria assassinou os ativistas Santiago Maldonado e Rafael Nahuel em manifestações pelos direitos indígenas. 

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Em um encontro oficial com o Ministro de Segurança, o porta-voz mapuche Orlando Carriqueo e representantes da APDH, a informação sobre a militarização da zona de conflito foi desmentida pelo ministro.

"Foi uma reunião que durou quase duas horas", contou Carriqueo a Resumen Latinoamericano. "O ministro disse que de nenhuma maneira enviaria forças federais a esse conflito, que não é parte da política do governo nacional atuar como Patricia Bullrich. Que entende que as forças de segurança não podem resolver um problema que é histórico, político e social."

Edição: Thales Schmidt