ENTREVISTA ESPECIAL

“A fome voltou não pela pandemia, mas pelo desmonte do Estado”, afirma presidente do Consea/RS

Retrocesso começou com o golpe de 2016 e, já em 2018, dez milhões de brasileiros não tinham o que comer

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Juliano Ferreira de Sá é presidente do Consea/RS - Foto: Carol Lima

Dia 16 de outubro é o Dia Mundial da Alimentação. A data, criada com o intuito de desenvolver uma reflexão a respeito do quadro atual da alimentação mundial, foi escolhida para lembrar a criação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), em 1945. A primeira comemoração ocorreu no ano de 1981, quando o tema abordado foi “A comida vem primeiro”.

O Brasil havia deixado o Mapa da Fome em 2014 mas vive novamente um cenário alarmante. Cerca de 19 milhões de pessoas passando fome e outras 43 milhões não têm acesso pleno à alimentação, segundo um estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PenSSAN).

Tão logo pisou no Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Era janeiro de 2019 e, já naquele momento, 10 milhões de brasileiros e brasileiras não tinham o que comer. A tarefa sobrou para os Conseas estaduais.

É o que conta Juliano Ferreira de Sá que preside o Consea/RS. No estado, o conselho se uniu à Caritas e a Ação da Cidadania do RS para criar o Comitê Gaúcho de Emergência no Combate à Fome, que já arrecadou e repartiu 700 toneladas de alimentos com mais de 65 mil famílias.


Ações do Comitê Gaúcho de Emergência no Combate à Fome amenizam a situação de insegurança alimentar no RS / Arquivo Pessoal

Além disso, o Consea integra ao lado de outras entidades a Semana da Alimentação RS, que neste ano tem como tema "A (In)Segurança Alimentar e Nutricional no Contexto da Fome e do Direito à Alimentação".

Nesta conversa com Brasil de Fato RS, Juliano levanta os números do drama da fome no país, mas conta também da comovente resposta dos pobres que se uniram para ajudar seus iguais.

BdF RS - Movimentos sociais, associações, sindicatos e centrais sindicais, igrejas, pastorais são quem garante a distribuição de cestas básicas e quentinhas na periferia. São os pobres que ajudam os pobres. Esta foi uma das revelações da pandemia?

Juliano de Sá – A pandemia revelou os limites do estado brasileiro. Mas revelou a solidariedade. Boa parte dos alimentos doados vem dos agricultores e agricultoras familiares e dos assentados da reforma agrária. O pobre doando o pouco que tem.

Depois do golpe, o primeiro ato do Congresso foi aprovar a PEC da Morte

BdF RS - Qual o volume de alimentos entregues à população carente durante a pandemia e de onde veio?

Juliano de Sá – São milhares de iniciativas, também de anônimos. Desde o começo da pandemia, o MST doou mais de seis mil toneladas de alimentos Brasil afora. E também o Movimento dos Pequenos Agricultores. Aqui, o Consea/RS e a Caritas criaram o Comitê de Combate à Fome que já arrecadou e distribuiu mais de 700 toneladas para mais de 65 mil famílias. No começo, distribuímos cestas básicas mas hoje, pelo preço do gás de cozinha, são as cozinhas comunitárias que garantem um prato para quem ganha o alimento mas não tem cozinhá-lo.

BdF RS – Como o Brasil retornou ao Mapa da Fome?

Juliano de Sá – O Brasil foi o país que mais diminuiu a desigualdade. Em 2014, saiu do Mapa da Fome. Chegou-se a 98,3% da população vivendo em segurança alimentar. A pesquisa da Rede PENSSAN (Rede Brasileira de Pesquisadores em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) revela que o país voltou ao Mapa da Fome não por causa da pandemia mas pelo fim das políticas públicas e o desmonte do estado.

Tem uma questão central aí que é o golpe contra Dilma em 2016. O primeiro ato do Congresso foi a PEC da Morte, a emenda constitucional 95, que congelou por 20 anos o teto dos gastos públicos. Entre 2017 e 2018, o Brasil voltou dez anos. No começo de 2018, já tinha 10 milhões passando fome. No final de 2020, já havia 19,8 milhões. Hoje está pior.

A gente ainda não viu um caminhão do agronegócio chegando na periferia

BdF RS - O Brasil tem fome mas, ao mesmo tempo, bate recorde em produção agrícola. Como explica essa contradição?

Juliano de Sá - É o modelo hegemônico do agronegócio que não está interessado em produzir comida e sim commodities. Se, por um lado, 70% do alimento que chega na mesa da população brasileira vem da agricultura familiar, por outro o agronegócio não tem esse compromisso.

A gente ainda não viu um caminhão do agronegócio chegando na periferia. Viu só os caminhões dos assentados, dos pequenos agricultores...

BdF RS - O presidente Bolsonaro diz que rico sofre no Brasil. Rico sofre aqui?

Juliano de Sá – As falas do Bolsonaro só servem para tirar o foco dos temas importantes. Enquanto aumenta a fome e a pobreza, os ricos estão cada vez mais ricos. Bolsonaro atende aos interesses da bancada da Bíblia, da bancada da bala, das milícias. No caso do agronegócio, 1.350 novos agrotóxicos já foram liberados desde 2019.

Um milhão de gaúchos vivem com até R$ 89 por mês

BdF RS - A ex-ministra Tereza Campello calcula que, hoje, mais de 55 milhões de brasileiros não comem o suficiente e avalia que a situação “tende a piorar”. Vamos piorar mais?

Juliano de Sá – Mais da metade da população brasileira vive algum tipo de insegurança alimentar. A situação é mais grave no caso das mulheres, das famílias negras e daqueles segmentos de baixa escolaridade. Há um recorte de gênero, raça e econômico/social.

Lá no início da pandemia, o ministro Guedes disse que havia alta no preço dos alimentos porque as pessoas estavam consumindo mais, o que é uma mentira. O preço aumentou dada a ausência do estado que deixou que realizar as compras institucionais que formam o estoque e regulam o mercado por meio da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento). E a indústria agroalimentar fez especulação.

Pelos dados do CAD Único (Cadastro Único do governo federal), mais de um milhão de gaúchos estão em situação de extrema pobreza. Vivem com até R$ 89 por mês. E esses números estão defasados. Hoje devem ser bem piores.


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Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Marcelo Ferreira