Rio Grande do Sul

Desrespeito

Artigo | A SMED mente

Em nenhum momento foi assegurada a participação das comunidades escolares

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Manifestações do dia 15 nas ruas de Porto Alegre, em frente à Secretaria de Educação, em frente à Prefeitura, deram um grande e sonoro “não” à proposta antidemocrática - Foto: André Pares

A última versão da "Proposta Pedagógica" apresentada pela atual gestão da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre - SMED consolidou a mentira como principal característica da sua tentativa de tirar disciplinas da escola pública. A reunião de 14.10 com as Supervisões Pedagógicas, foi (mais) uma série delas: não era uma reunião, era um comunicado (de novo); não era uma tentativa de consenso, era uma imposição (outra vez) e, para confirmar a impossibilidade de diálogo que foi a tônica de todo o processo, a única solicitação possível feita pelas supervisões não foi atendida – ainda que o coordenador pedagógico da SMED dissesse que o faria.

Importante relembrar que essa reunião foi chamada já fora do calendário elaborado pela própria SMED. Depois de suspender, em 30.09, seu próprio cronograma que previa uma ‘votação’ entre propostas pedagógicas (desde que fossem aceitas para concorrer com a sua!) de 04 a 15.10, a Secretaria cessou contato com as supervisões. Uma vez que já havia recebido a proposta do GT de supervisões – não sem antes desmontá-la, e torná-la muito semelhante a sua própria, como condição para ser aceita – a SMED reapareceu somente nessa reunião de 14.10.

Reunião sem diálogo

Nessa reunião com o GT de supervisões, então, anunciou-se que seria feita a apresentação de uma proposta elaborada pela SMED a partir da análise do material encaminhado (à força) pelo GT de supervisores em 30.09. Considerando que havia sido enviado um documento no dia anterior dessa reunião (em 13.10) com pontos ditos ‘incoerentes’ sobre o material encaminhado, nosso GT solicitou espaço para argumentar acerca de tais aspectos, o que não foi viabilizado. Nesse mesmo ensejo, foi estabelecido pela Secretaria que a reunião duraria 1h – o que evidentemente impossibilitou um debate verdadeiro, especialmente quando metade da reunião foi tomada para apresentação da proposta da própria SMED. 

Dentre demais problemas transcorridos na reunião, um é importantíssimo salientar: diante da impossibilidade do diálogo, foi solicitado ao final que se retirasse da apresentação em power point (que é a maneira pela qual a SMED redige suas propostas) a expressão “NOVO CENÁRIO CONSTRUÍDO a partir das discussões no GT”, uma vez que não houve debate por parte do GT para esta nova proposição. Contudo, no dia seguinte, embora se tenha afirmado que a solicitação seria acolhida, novamente o pedido não foi considerado, pois o material foi enviado para todas e todos os professores da Rede Municipal constando o selo de que tal proposta havia sido construída a partir das discussões no GT!!!

Breve histórico do processo

O processo que instaurou a Reforma Curricular (que na verdade é o que faz a “Proposta Pedagógica”) da SMED já começou equivocado. As Equipes Diretivas (que, sempre vale lembrar, são eleitas pelas comunidades escolares em processo democrático) receberam mensagem eletrônica da Secretaria de Educação dizendo que até o dia 02.08.21 deveriam preencher um formulário online, com a indicação de um/a supervisor/a por escola “para participar do grupo de trabalho referente à proposta pedagógica para o Ensino Fundamental da Rede Municipal de Ensino”. Por aí é que se soube, então, que uma mudança pedagógica estaria em curso e que em dois meses estaria concluída, pois uma “votação” de propostas estava marcada para 04.10. Ou seja: tratava-se de uma convocação seletiva com o objetivo de construir uma alteração que impactaria a vida escolar de mais de 56 comunidades, milhares de estudantes e seus familiares e mais de 4 mil docentes; isso em, aproximadamente, oito semanas.

Desde então, questionamentos das mais diversas ordens emergiram: como assim, “um/a supervisor/a por escola”? “Proposta pedagógica para o Ensino Fundamental da Rede Municipal de Ensino” agora, em meio à pandemia, justamente quando estamos em processo de busca ativa dos/as estudantes e do paulatino retorno presencial das crianças e adolescentes, emaranhados/as com mudanças de protocolos, envolvidos/as com a eleição e posse dos Conselhos Escolares, assoberbados/as com uma escola que precisa ser cuidadosamente acolhida, ouvida, observada, reavaliada e repensada? Realmente este é o momento adequado para pensar uma proposta de novo currículo para a RME? Que processo é esse? Que aceleração e urgência são essas? Sem resposta nenhuma.

Mas podia piorar. A SMED não se contentou em fazer uma convocação seletiva e propor um prazo ínfimo para uma proposta de tamanha envergadura. Durante as reuniões dos grupos de trabalho, a SMED apresentou um primeiro “cenário”, composto por uma matriz curricular e uma expressão de resultados. No jogo de cena em que atuava a mantenedora, podíamos assistir a retirada e diminuição de carga horária de disciplinas e a descaracterização de tudo o que foi historicamente construído por essa Rede de Ensino durante anos de acúmulos, debates, lutas e conquistas. Ao afirmar o desejo de “unificar a RME”, a mantenedora aniquilava com a identidade democrática, plural e diversa da mesma. Todas/os estavam atônitas/os (ainda que soubéssemos o ensejo de destruição do serviço público no qual estamos atualmente naufragados via governos federal e estadual, e no qual o municipal se refestela).

Alijamento total de Comunidade Escolar e Conselho Municipal de Educação

Como se não bastasse não escutar professoras e professores da Rede (sendo que isso só se tornou possível através das supervisões, que foram o único ponto de contato do corpo docente de mais de 4 mil professoras/es com a Secretaria durante esse processo), a SMED também fechou ouvidos e portas às Comunidades Escolares. E, para completar seu show solo, ignorou também o Conselho Municipal de Educação, órgão consultivo, deliberativo, normativo e fiscalizador do Sistema Municipal de Ensino, instituído pela Lei Complementar 248, de 1991.

Assim, como se precisasse, se tornou mais do que evidente o desrespeito ao princípio de gestão democrática e aos objetivos da educação presentes em cada etapa da LDB, das diretrizes nacionais curriculares e do conjunto de normativas do Sistema Municipal de Ensino de Porto Alegre, criado pela lei Municipal n° 8198/98. Ou seja, antes de efetuar açodadamente transformações em currículos, é obrigação democrática da Secretaria Municipal de Educação construir e assegurar condições para garantir o previsto na legislação. Ignorar as normativas do Conselho Municipal de Educação, como fez e segue fazendo, vai no sentido completamente oposto. Não por acaso, a Secretária e seu Coordenador Pedagógico não responderam até o momento o substancial parecer 21/2021 do CME, que expõe toda a ilegalidade de sua “Proposta Pedagógica”.

Paralelamente a isso, é essencial reafirmar que em nenhum momento foi assegurada a participação das comunidades escolares. Para além da reforma curricular, o governo municipal também não dialogou para saber das reais urgências e necessidades das escolas como: falta de professoras/es, funcionárias/os, monitoras/es, falta do acesso à inclusão digital, atendimento da demanda de segurança alimentar nos territórios e na elaboração de um plano emergencial de recuperação das aprendizagens. Sem falar no total desleixo aos protocolos de segurança sanitária, à falta de gás nas escolas, a ignorância completa da escassez total das comunidades à internet para possibilidade de realização de atividades remotas.

Consenso? Só o de rejeição e preocupação

Em tempo, a Rede se organizou e rejeitou. Rejeitou a proposta; rejeitou o cenário; rejeitou o processo, em forma e conteúdo. Viu-se nas manifestações do último dia 15.10, nas ruas de Porto Alegre, em frente à Secretaria de Educação, em frente à Prefeitura, um grande e sonoro “não” à proposta antidemocrática. Se houve um consenso, foi o consenso de que é mais do que necessário pensar e debater uma proposta pedagógica para a RME, mas não desse jeito e não nesse tempo. Para ‘resgatar a identidade da rede’, como quer tal proposta da SMED, é imprescindível conhecer, ouvir, debater, articular e construir com a Rede e, para isso, outro processo precisaria ser instaurado, qual seja: a convocação do Congresso Municipal de Educação, conforme a lei. Antes disso, especialmente, até para entender que um Congresso não significa ‘congregar com seus pares’, como a Secretária tem afirmado, ela e seu Coordenador Pedagógico precisam colocar o pé no chão da escolas, o que não se viu até o momento.

Enfim, enquanto servidoras e servidores públicos, comprometidos com a prestação de serviço à sociedade e às comunidades com as quais convivemos em nossa ação profissional, garantindo o direito que elas têm de uma educação pública de qualidade, gratuita, laica, preocupa-nos profundamente encaminhamentos e ações que tem sido adotados por essa atual gestão da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre. Não é, sobretudo, a falta da verdade que a sociedade merece em processos tão importantes como esse. Nossa segurança, agora, é a de que contamos com a compreensão e a ação da população para seguirmos executando nosso trabalho com respeito e qualidade, mantendo, sobretudo, a dignidade das comunidades atendidas.

*Professores e Supervisoras Pedagógicas de Escolas da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre

** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko