Rio Grande do Sul

Opinião

Crônica | Manifesto Barbarista

"A civilização havia acabado de vencer a eleição e a barbárie enfim iria deixar o trono. Houve contestações, é claro"

Brasil de Fato | Santa Maria |
"O mundo e o país foram voltando aos trilhos após flertar com o nazifascismo mais uma vez, e como da primeira, por um tempo todos os seus artífices e seguidores negaram essa alcunha"
"O mundo e o país foram voltando aos trilhos após flertar com o nazifascismo mais uma vez, e como da primeira, por um tempo todos os seus artífices e seguidores negaram essa alcunha" - Alan Santos/PR

O ano era 2023, o dia, primeiro de janeiro. E eu vi, eu estava lá. Era o dia da posse. A civilização havia acabado de vencer a eleição e a barbárie enfim iria deixar o trono. Houve contestações, é claro, ameaças de morte, exibições de armamentos nas redes sociais, gritos histriônicos, alguns motins localizados, mas enfim eles refluíram, inócuos, e a transmissão do cargo pôde se dar no dia marcado. Ou melhor, a ocupação do cargo, porque o ex-presidente não estava lá para passar a faixa, havia fugido pra Miami uns dias antes e não deixara ninguém no seu lugar. Nenhuma alma minimamente democrática para representar o governo que findava.

Então o novo presidente chamou a imprensa, deu uma entrevista coletiva como há anos não se via, e convidou os e as jornalistas presentes para o acompanharem até a sala da Presidência em sua primeira entrada no local após a posse.

E este texto estava lá, emoldurado num quadro às costas da cadeira presidencial, sob o título de “Manifesto Barbarista”, por certo o regalo de algum malfadado seguidor na posse do ex mito e ex inquilino do Palácio.

O presidente se deteve por instantes em frente a ele, leu com certa atenção, marejou os olhos, balançou a cabeça e permitiu que fotografássemos, antes de ele mesmo remover o quadro e entregar ao seu staff para que dessem fim a ele.

E assim dizia o texto, abre aspas...

“A civilização é falsa.

Pra ser civilizado tem que reprimir o desejo, recalcar o instinto, sublimar as pulsões. Tem que esperar a hora certa, sujeitar-se às normas, respeitar limites. Tem que ser inautêntico, antinatural, irreal.

A civilização é lenta.

Pra ser civilizado tem que perguntar antes de atirar, julgar antes de prender, pensar antes de dizer, aprender antes de fazer. Tem que respeitar o devido processo legal, dar direito à defesa, pensar nas consequências, fazer ponderações, ser consciencioso. 

A civilização é fraca.

Pra ser civilizado tem que conter a força, evitar o poder, reprimir a vontade, manter os arroubos quietos. Tem que dar voz aos fracos, direito às minorias, acesso aos incapazes. Tem que discutir com as partes, fazer concessões, conciliar, integrar. 

Tem que buscar a paz quando poderia conquistar, dar-se ao outro quando poderia tê-lo, ser justo quando poderia simplesmente ser forte. 

E a civilização é chata.

Tem que pensar no outro, ter empatia, generosidade, solidariedade, compaixão. Tem que respeitar o diferente, tolerar o que incomoda, entender o que não se sabe. 

Tem que falar baixo quando poderia gritar, ouvir quando poderia falar, calar quando poderia ofender, perguntar “como vai?” quando não se quer saber. 
Felizmente, não precisaremos mais de nada disso.

Ao menos neste canto de mundo onde vivemos e onde os homens de bem governam, os civilizados não mais nos acossarão com suas chatices, leseiras, falsidades e fraquezas.

Enfim poderemos ser fortes.

Como conquistamos o poder, não precisaremos mais dar satisfações a ninguém. Não poderão questionar nossos feitos nem cobrar por nossos atos. Nosso poder é legítimo, simplesmente porque o conquistamos.

Já não precisaremos dar ouvido a quem não queremos. Poderemos negar evidências que não nos interessam, mentir, enganar e falsear a “Verdade”, esta inefável deusa dos fracos e oprimidos, tantas vezes usada como álibi para controlar os fortes.

Nenhum ambientalista vai mais conter nossas conquistas sobre a natureza, nenhuma ciência vai mais se arrogar do conhecimento para deter nossos projetos, nenhum princípio vai mais ser usado contra a nossa vontade.

E todos os nossos atos serão atos de vontade!

E nenhum direito vai mais ser-nos imposto, pois todo o direto de um gera dever a outro, que o paga, o sustenta, o fia. Se direitos são conquistas, de agora em diante só os manterão quem puder, quem for forte o bastante, quem for capaz.

Enfim poderemos ser autênticos.

Libertar os desejos reprimidos, as pulsões sublimadas, os instintos recalcados pelo mal estar da civilização.

A autêntica liberdade de expressão já é uma realidade. Estamos liberados para ofender mulheres, negros e gays sem que ninguém nos censure, a fazer piada com a doença alheia, a troçar adversários, a ameaçar sem sermos reprimidos. 

Conquistamos a internet, e como tudo o que conquistamos, agora ela é a nossa casa. Como também é o Estado.

Afinal, para que servem as conquistas?

E não precisaremos mais ser falsos gentis. Tratar negros como se brancos fossem, mulheres como iguais, gays como normais. Nossa diplomacia não mais obliterará nossas próprias verdades, nossas profundas crenças, nossas máximas vontades, nossos instintos naturais.

Enfim poderemos ser ágeis. 

E abater favelados pretos porque estão no lugar errado, ou por sua aparência. Poderemos prender para que falem, e forçá-los a falar o que não querem, não podem ou não sabem. 

Se onde há fumaça, há fogo, onde há indícios, há crime. Simples assim. Não há mais porque seguir os devidos processos, nem dar voz e vez a quem defende criminosos.

Para limpar o mundo do que não presta, poderemos atalhar caminhos, mesmo que custe a vida de inocentes, estes efeitos colaterais que os defensores dos direitos humanos sempre usam como desculpa para não agir. 

E enfim poderemos ser livres.

Livres para pensar, dizer e fazer o que quisermos.

Conquistamos a verdadeira liberdade. A liberdade dos fortes, dos que não devem satisfação a ninguém. Não a liberdade dos coitados, dos fracos, das minorias, daqueles que precisam de autorização para falar, fazer ou ser qualquer coisa. Isso não é liberdade, é caridade. A nossa liberdade agora será individual e irrestrita, aquela que não precisa dar satisfações ao interesse público nem reprimir qualquer possibilidade de gozo em prol do benefício coletivo. 
E não, não faremos mais concessões à liberdade. Os fracos, os coitados, as minorias, se também quiserem ser livres terão que conquistá-la a ferro e fogo, e mostrar que são dignos dela. Assim como nós fizemos.

Enfim, quando tudo isso terminar, quando a seara estiver limpa e todo o joio e todo o trigo estiverem apartados, então finalmente nós - por certo bem menos civilizados, mas mais autênticos, fortes, estimulantes e ágeis - teremos o mundo aos nossos pés... 

...O mundo como ele é e sempre deveria ser, plano, circundado por oceanos de abismos profundos onde habitam monstros e dragões, e guardado pelas paredes de gelo de um domo brilhante e azul, por onde, pacificados pelos nossos feitos, veremos o sol dar voltas redondas em torno de nós, religiosamente, a dizer-nos para todo o sempre que um novo e glorioso dia nasceu neste país.” 

Fecha aspas...

Bem, esta é a primeira vez que vejo este manifesto em anos, exumando aqui meus registros fotográficos daquela posse, a mais importante de todos os tempos no país. Após serem enxotados do poder, o Manifesto circulou pelos esgotos da internet, grupos de WhatsApp e assemelhados por um tempo, até que desaparecesse por completo. 

O mundo e o país foram voltando aos trilhos após flertar com o nazifascismo mais uma vez, e como da primeira, por um tempo todos os seus artífices e seguidores negaram essa alcunha, fazendo com que este tipo de pensamento se recolhesse temporariamente, reprimido, envergonhado. 

Mas ele permanece na alma arcaica e dura de uma parcela nada desprezível da população, que pensa e sente exatamente assim, apenas se esconde ante o peso das instituições democráticas, que finalmente aprenderam, perigosamente, que não se pode naturalizar a barbárie nem tolerar os intolerantes. 
Mas há ainda muito o que fazer, a civilização é uma construção diária e incansável.

Em algum lugar do meu país, 15 de novembro de 2030.

* Renato Souza, professor Titular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), formado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Pelotas (1992), mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996) e doutorado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004).

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko