Rio Grande do Sul

Direito à Cidade

Programa de Reabilitação do Centro de Porto Alegre pode excluir os mais pobres da região

Projeto da gestão Melo gera preocupação entre especialistas pelo risco de criar uma região privilegiada

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Região do Centro Histórico pode sofrer uma mudança radical, perdendo característica plural e democrática - Foto: Giulian Serafim (PMPA)

Na última segunda-feira do mês de setembro, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), foi à Câmara de Vereadores para entregar um projeto de lei que pretende instituir o Programa de Reabilitação do Centro Histórico de Porto Alegre.

O projeto propõe alterar uma série de regras sobre a construção de edifícios e a utilização dos espaços públicos e privados na região do chamado Centro Histórico. Atualmente, é o Plano Diretor da cidade que regula parte dessas normas. Porém, se o Programa de Reabilitação for levado adiante, serão criadas regras específicas para a área central da Capital.

Entre as diversas propostas de alteração, a que chama mais atenção (e gera preocupação de especialistas) é a permissão para construções mais altas do que as que existem atualmente.

Hoje, o limite de altura para novas construções em toda a cidade é de cerca de 50 metros. Entretanto, no Centro Histórico, por exemplo, existem prédios com cerca de 100 metros. O texto do Programa de Reabilitação propõe que não haja limite para a altura de novas construções, desde que sejam atendidos determinados critérios.

Em depoimento ao Jornal do Comércio, o secretário de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) Germano Bremm, relacionou entre esses critérios os impactos na paisagem e na habitabilidade. Dentro deste último critério, estão inclusos os quesitos da insolação, iluminação e da ventilação.

Ainda no mesmo depoimento, Bremm afirmou que foram feitas simulações pela prefeitura, demonstrando que existe a possibilidade de construção de edifícios de até 200 metros de altura, sem que sejam comprometidos esses critérios.

Questionamos a Smamus, através da sua Assessoria de Comunicação, se seria possível a nossa reportagem ter acesso a essas simulações ou estudos. Perguntamos também em qual local do Centro, e de que forma, seria possível a construção de um prédio de 200 metros sem comprometer a paisagem e a incidência de sol na região. Até o momento da publicação desta matéria, não recebemos resposta.

Intenção da prefeitura é aumentar o número de moradores do Centro

Está disponível na internet uma apresentação elaborada pela prefeitura em março de 2021, desenhando os principais aspectos do Programa. Tanto nesta apresentação, quanto nas declarações do prefeito, fica evidente o objetivo de aumentar a quantidade de moradores do Centro Histórico.


Programa de Reabilitação do Centro de Porto Alegre gera preocupação ao permitir construções muito elevadas / Reprodução

A atual gestão da prefeitura tem trabalhado com uma estimativa de cerca de 45 mil habitantes residindo na região. O objetivo é aumentar essa densidade populacional para 90 mil.

Segundo o prefeito, o Programa é “uma peça muito importante no processo de entregarmos um novo Centro [...], com mais desenvolvimento, ocupação urbana e mais embelezamento".

Nesse sentido, diversos aspectos do projeto para esse “novo Centro” merecem atenção especial. Primeiro, a questão da altura dos prédios, que poderia trazer consequências imediatas ao entorno, como o encobrimento da luz solar e da ventilação, além dos impactos na paisagem.

Além disso, o aumento populacional induz o aumento na demanda por serviços e infraestrutura, como o fornecimento de água e tratamento de esgoto, por exemplo, mas também nas necessidades relativas ao transporte, entre outras.

Entretanto, um terceiro aspecto parece ser mais preocupante ainda. Com o aumento do interesse e da valorização das regiões, o resultado é o aumento do custo de vida (aluguéis, valores de imóveis, serviços e mercadorias).

Esse processo é conhecido em diversas partes do mundo como “gentrificação” (do inglês “gentry”, que poder ser traduzido como “nobre”).

Existe a tendência de expulsão das famílias mais pobres e vulneráveis desses respectivos locais. Como consequência, essas populações são obrigadas a se afastarem dessas regiões, indo viver em bairros mais distantes daqueles que estão acostumados a viver.

Moradia popular não aparece nos planos da prefeitura para o Centro

Na apresentação da prefeitura elaborada em maio, na página 55, estão descritas as “Condicionantes do Projeto”. Ali está escrito que os empreendimentos interessados em participar devem atender pelo menos cinco ações, entre nove descritas. Uma dessas condicionantes é o "Atendimento da Demanda Habitacional Prioritária (DHP)".

Nossa reportagem também questionou a Smamus sobre o critério que seria utilizado para definir como será feito o "Atendimento da DHP". Também não obtivemos resposta.


Atendimento da Demanda Habitacional Prioritária (DHP) é uma condicionante não obrigatória no projeto da prefeitura / Reprodução

Buscando entender melhor como a DHP poderia estar inserida no projeto desse “novo Centro”, encontramos na internet a informação que, desde 2017, a cidade de Porto Alegre conta com a Comissão de Análise e Aprovação da Demanda Habitacional Prioritária (CAADHAP).

Porém, segundo a prefeitura, a atribuição desta Comissão é analisar somente o licenciamento dos empreendimentos vinculados ao Programa “Minha Casa, Minha Vida”, do governo federal, que recentemente teve um corte de 98% dos seus recursos.

Ou seja, é possível entender que esta Comissão não irá atuar nos novos empreendimentos a serem erguidos no Centro Histórico. Dessa forma, os novos edifícios que vierem a ser construídos a partir do respaldo dado pelo Programa de Reabilitação não terão que atender qualquer requisito que obrigue a destinação de parte de seus apartamentos à moradia popular, por exemplo.

Na prática, é possível que todos os prédios que vierem a ser construídos sejam destinados somente à população de maior poder aquisitivo. Dessa forma, é válido questionar se esse aumento populacional pretendido pela prefeitura virá com uma consequente expulsão dos mais pobres dessa região.

Apesar da prefeitura trabalhar com a informação de que o “rendimento médio dos responsáveis por domicílio é de 6,46 salários mínimos”, ainda existem regiões no Centro que concentram ocupações e prédios de menor valorização.


Estudo realizado pela prefeitura identifica regiões menos valorizadas e populares em uma região muito cobiçada / Reprodução

Especialista critica o projeto e dados que foram usadas para embasar o Programa

Ao ser questionado sobre o projeto, o professor Milton Cruz criticou os dados utilizados no estudo para embasar o projeto que cria o Programa de Reabilitação.

Doutor em sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador do Observatório das Metrópoles, Milton avalia que a proposta poderia ter utilizado dados atualizados da região, ao invés de uma projeção de crescimento embasado nos dados de 2010.

“Os dados de 2000 a 2010 revelam um Centro Histórico que cresceu em população acima do crescimento de Porto Alegre. Neste aspecto, o Centro ainda é um polo de atração, o que faz questionar a tese do Centro degradado que perdeu vitalidade”, expõe.


Centro Histórico da capital gaúcha ainda é uma região de comércio e serviços, onde circulam e convivem diversas classes sociais / Foto: Giulian Serafim (PMPA)

Em sua avaliação, dobrar a população do Centro vai exigir mais investimentos em infraestrutura em diversos segmentos, que deveriam ser apresentadas em um cronograma de curto, médio e longo prazos, indicando fontes de financiamento do poder público ou do setor privado.

Além disso, afirma que esse crescimento deveria equilibrar a oferta de infraestrutura com espaços abertos e verdes necessários para o bem-estar. A falta desses indicativos preocupa o pesquisador.

“O modo de apresentar um Projeto de Lei genérico, sem as vinculações das fontes de financiamento, sem a participação da sociedade e o monitoramento ao longo dos próximos 20 ou 30 anos, aumenta muito o risco do projeto ser capturado por um setor da sociedade e ser utilizado em benefício de seus interesses privados”, ressalva.

Conforme destaca o pesquisador, as obras da Copa do Mundo de 2014 mostraram que a apresentação de um projeto que não “amarra” compromissos e responsabilidades tende a beneficiar aqueles que tem mais recursos econômicos e poder político, deixando de lado obras prometidas para a parcela de menor renda, justamente a que mais precisa de melhorias urbanas.

Da forma como está proposto, programa vai favorecer a especulação imobiliária

Ainda segundo o professor Milton Cruz, a construção de prédios com até 200 metros de altura irá favorecer os interesses de empresas que buscam retorno financeiro, mas cria enormes desafios para prefeitura.

Conforme reforça o professor, investimentos públicos em melhorias urbanas podem aumentar taxas, impostos e aluguéis que os setores de menor renda não podem arcar.

“É necessário a definição de uma política de incentivo à permanência de moradores de todas as rendas, se quisermos humanizar o Centro Histórico”, defende o professor.

Ele acredita também que a política de incentivos apenas para o setor imobiliário vai direcionar os investimentos para projetos de média e alta renda. Lembra também que oferta de moradia popular sempre veio majoritariamente pelo poder público, como já foi o Banco Nacional de Habitação.

Acredita, inclusive, que o “Minha Casa, Minha Vida” poderia ser redesenhado para regiões como o Centro Histórico e o Quarto Distrito, que têm boa infraestrutura urbana, serviços de saúde, educação, cultura e emprego.

Como exemplo de casos onde o interesse privado sem regulação e fiscalização pode impactar negativamente uma região, Milton lembra do “Esqueletão”, prédio inacabado na Praça Quinze de Novembro.

Outro caso citado pelo professor é o da cidade de Balneário Camboriú (SC), onde o setor imobiliário ergueu um paredão de edifícios, o que mudou o ambiente da praia, fazendo com que os banhistas ficassem sem sol e sem a faixa de areia natural.


Prédio conhecido como "Esqueletão" é considerado um exemplo da falta de controle e regulação da iniciativa privada / Foto: Alex Rocha (PMPA)

Por fim, afirmou que o atual sistema de participação e controle existente não permite que se regule, controle e monitore as ações com a transparência que se exige de processos complexos como este.

“A Operação Urbana Consorciada prevista no Estatuto da Cidade recomenda uma participação forte de todos os interessados na revitalização do território. O que a prefeitura apresentou até agora passa a ideia de que o setor imobiliário, tendo incentivos para construir grandes prédios, vai revitalizar o Centro, o que não é verdade”, conclui.

Atuais moradores do Centro não foram ouvidos

Morador do Centro há 50 anos, o advogado e conselheiro no Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (Cmdua), Felisberto Seabra Luisi, vê com muita preocupação o projeto apresentado pelo Executivo municipal.

Para ele, o projeto não levou em conta as alterações trazidas pela pandemia e a infraestrutura antiga do Centro. Também chama atenção para o patrimônio histórico e o impacto na mobilidade urbana.

“As áreas onde eles pretendem adensar são áreas estritamente residenciais, e isso faz com que precise ter um cuidado com as praças, o que não existe atualmente, visto que as praças do Centro são completamente abandonadas”, exemplifica.

Felisberto afirma que o projeto passou pelo Conselho e depois foi apresentado em uma audiência pública, mas que contou somente com a participação de pessoas envolvidas na área da arquitetura, com muito pouca participação da sociedade e dos moradores da região.

“Isso passa por alguns ‘iluminados’, sem consultar os moradores, aqueles que sofrerão os impactos. É importante a gente ampliar essa discussão, a pressa do prefeito enviar esse projeto para Câmara demonstra a falta de debate com a sociedade”, afirma.

Em sua avaliação, na proposta do Executivo municipal não há uma visão para periferia da cidade, ou da periferia para o centro. Ele afirma também que existem alternativas para melhorar o centro a partir do que já existe na região.

“Não é concedendo isenções, aumentando a altura, que tu vai melhorar e vai qualificar o Centro, tu vai criar mais problemas. Quando tu trouxeres prédios de 100 metros de altura, vai valorizar a especulação imobiliária”, enfatiza.

Afirma que um programa de melhoria para a região deveria ouvir os moradores do Centro, mas não somente. Deveriam ser incluídos no debate a economia informal, os moradores em situação de rua e as habitações de interesse social, como a ocupação Utopia e Luta, no Viaduto da Borges de Medeiros.


Assentamento Urbano Utopia e Luta fica no Centro da capital gaúcha, localizado em uma das mais tradicionais avenidas da cidade, a Borges de Medeiros. / Foto: CAU/RS

Programa pode trazer consequências negativas para a região e a cidade

Segundo Rafael Passos, presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil do Rio Grande do Sul (IAB-RS), as melhorias que o Centro precisa não justificam a abrangência do projeto proposto pela gestão Melo.

“Não nos parece que os efeitos benéficos que estão sendo propostos vão cobris os grandes problemas que podem trazer”, destaca.

De acordo com Rafael, o projeto que vai permitir grandes construções apresenta contrapartidas “cosméticas”, de melhorias de praças e ruas.

“Esse programa não prevê grandes investimentos em mobilidade, o que é grave. Se ocorrer de fato o acréscimo de população prevista, vai causar impacto sobre a estrutura atual de mobilidade”, comenta.

Segundo avalia o arquiteto, os estudos que foram feitos sobre a infraestrutura são inconsistentes. Afirma que eles carecem de profundidade para entender se o serviço de abastecimento, drenagem e resíduos sólidos, por exemplo, serão atendidos se esse aumento de população ocorrer.

Rafael comenta também que outras ações tomadas em conjunto podem contribuir para excluir determinadas populações da região, como os ambulantes e trabalhadores informais.

“No seu conjunto todas essas ações podem promover um projeto de gentrificação, que podem afastar moradores que hoje conseguem se manter no local com o valor atual dos imóveis. Com a valorização que um plano desses gera, pode tornar inviável a manutenção de suas residências no Centro”, pontua.


Assentamento 20 de Novembro é um exemplo de moradia popular que permite aos seus habitantes residirem em região próxima ao Centro / Foto: Guilherme Santos/Sul21

Como alternativa, o arquiteto elenca que poderia ser possível a instituição de incentivos para edifícios que hoje são comerciais ou garagens se tornassem edifícios residenciais. Sobretudo para habitação de interesse social ou moradia popular.

“Fundamental na área central é ter instrumentos de habitação de interesse social. Tinham algumas propostas interessantes de uso de imóveis públicos, que estariam previstos na lei, mas que foram retirados. Nos parece que não é do interesse desse governo uma cidade miscigenada, de diferentes classes sociais, que possam conviver no mesmo espaço”, finaliza.


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Edição: Marcelo Ferreira