Rio Grande do Sul

Coluna

A dimensão política da morte

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Em Porto Alegre um grupo de teatro teve sua apresentação cancelada em uma escola, pelo uso da linguagem neutra - Foto: Gustavo Muller
O avanço institucional da censura teve uma série de desencadeamentos repressivos em todo o país

Na última semana perdemos a voz de uma das mais importantes figuras da música do nosso país na atualidade. Marília Mendonça deixa filho pequeno, mãe e milhares de fãs. Além de cantar letras que deslocam a mulher de seu espaço imposto pelo patriarcado, estava fora dos padrões estéticos igualmente cruéis, cantava em um ambiente tradicionalmente machista e comunicava amplamente atravessando as classes sociais.

Uma cantora popular, no sentido de tocar grande parte da população desse país. Provavelmente por todos estes fatores fora tratada com desrespeito pelas grandes mídias. Foi citada e homenageada, pois era banca e abastada, ainda que em parte também criticada.

O mesmo aparato midiático, que é ferramenta para manutenção dos privilegiados na sociedade capitalista e das técnicas do patriarcado, não expôs com a devida importância o ato violento em que uma mulher negra com o filho no colo, que fora foi derrubada no chão e teve uma bota policial sufocando seu pescoço. Certamente morreu um pouco no seu silêncio e impossibilidade de ação e pela justiça que não será feita.

A morte tem uma dimensão política complexa e diversa. Ela se dá no campo físico, mas também enquanto vivemos. A empatia tem cor, gênero e propriedade. Desde o golpe de 2016 vemos um avanço para morte e o apagamento da cultura e proporções monumentais. Não o da indústria cultural alinhada ao bolsonarismo, mas da cultura negra, indígena, periférica, LGBTQIA+ e de todes que entendem a dimensão política e transformadora das manifestações culturais.

No final do mês de outubro, a cultura do país recebe mais uma notícia que vai na contra mão da inclusão social. Os senhores brancos e ricos, Pronúncia e Frias, alinharam-se para publicar uma portaria que proíbe a linguagem neutra nos projetos culturais. A cultura é movimento de massa e para as massas, e que deveria apresentar a diversidade que a compõe. A cultura não é privilégio dos intelectuais, pois também nasce dentro das comunidades e as mantém em movimento. Não me refiro aqui a grandes obras de difícil acesso, pagas e caras. Não me refiro à indústria cultural, mas ao que está nas raízes, nos becos e nos pequenos grupos de artistas marginalizados. Pois esta que será a prejudicada pelos retrocessos brasileiros.

O avanço institucional da censura teve uma série de desencadeamentos repressivos em todo o país. Em Porto Alegre um grupo de teatro teve sua apresentação cancelada em uma escola, pelo uso da linguagem neutra. Em Gravataí, uma jovem estudante de teatro passa a ser covardemente atacada por um vereador, tendo seu vídeo exposto e violentamente criticado, assunto: Paulo Freire para crianças utilizando a linguagem neutra. Uma atriz em São Paulo tem seu projeto desclassificado no edital do ProAC com a alegação de que não possuía conteúdo artístico e sim, político. Em Pernambuco, um grupo de teatro que atua em Petrolina teve sua apresentação censurada pela Câmara Municipal por ter conteúdo LGBTQIA+.

Estamos mais uma vez em um momento em que é imprescindível criar, tomar o espaço para fala como lugar e reescrita das narrativas desviantes e limiares. Não é uma questão de romantizar as dores que vivemos, e não ignoremos que estamos totalmente exaustes. Mas depois de mover o corpo com intensidade, como num aquecimento teatral, descobrimos uma força que não nos era conhecida e devemos nos agarrar a ela como nos últimos frutos da primavera. Lembremos que ainda é primavera. Antes que sucumbamos todes, teremos de usar as forças que restam para combater o que destrói a floresta e seus habitantes, a agricultura familiar, a saúde pública, as mulheres, as pessoas trans, queer, a linguagem que nos representa, enfim, a cultura. Precisamos olhar para dentro sim, mas, mais do que tudo, olhar nos olhos de quem está ao nosso lado e sinalizar com o olhar que estamos em defesa das nossas, peles nossas, para que possamos continuar existindo como pluralidades.

* Leticia Virtuoso é mulher latino-americana, feminista, atriz e poeta. Formada em Ciências Sociais pela UFRGS e tem a arte como ofício e manutenção de existência.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko