Rio Grande do Sul

ANCESTRALIDADE

E-book documenta histórias de batuques e batuqueiros de Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre

Dois autores da obra contam o que esperar das 74 páginas em entrevista a coletivo de historiadores da capital gaúcha

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Fartamente ilustrada e com caráter didático, obra que resgata história do Batuque no estado será lançado em live no dia 23 de novembro - Fotos: Reprodução

Em atividade alusiva aos 50 anos do legado da luta do Grupo Palmares e do 20 de Novembro, como símbolo da Consciência Negra em nosso país, o Coletivo de Professoras/es de História da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (CPHIS), conjuntamente com o Ponto de Cultura Africanamente – Centro de Pesquisa, Resgate e Preservação de Tradições Afrodescendentes, promove dia 23 de novembro, terça-feira próxima, as 19h, live de lançamento da publicação do e-book "Histórias de batuques e batuqueiros: Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre".

A live, além de destacar a religiosidade de matriz africana como um dos territórios negros de resistência e solidariedade, também celebra os dois anos de existência do CPHIS, e conta com o apoio da Associação dos Trabalhadores em Educação de Porto Alegre (ATEMPA), que fará a transmissão da atividade em sua página do Youtube, e do Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (SIMPA).

A obra, de 74 páginas, fartamente ilustrada e com caráter didático, tem autoria dos historiadores Jovani de Souza Scherer, Vinicius Pereira de Oliveira e Denis Pereira Gomes.


Doca do Mercado de Porto Alegre no final do século XX - local de trabalho de africanos minas / Fonte: Prati Fotos antigas

Na sequência você confere a entrevista realizada por Marco Mello e Fernanda Panerai, do CPHIS, a dois dos autores da obra, Jovani Scherer (RME/Porto Alehre) e Vinicius Pereira de Oliveira (IFSul/Pelotas).    

O que é o batuque? E quem são os batuqueiros? 

A história para o batuque e para os batuqueiros é muito importante. O batuque é uma - se não a principal – das manifestações de resistência sociocultural afro-brasileira do Rio Grande do Sul. Essa não é, entretanto, uma pergunta de fácil resposta. Talvez possamos dizer que o batuque foi sendo construído ao longo do próprio processo histórico da diáspora africana no Sul do Brasil, desde a Colônia, e atualmente sobrevive como manifestação religiosa, ainda que provavelmente na África fosse apenas a vida, sendo vivida.

Aqui se manteve na forma dessas tradições africanas religiosas, amparadas em uma ligação ancestral com o continente africano, através do culto e preservação da memória de suas raízes por seus praticantes: os batuqueiros. Esses, assim nomeados, de forma pejorativa pela sociedade branca, assumem essa identidade, mas sobretudo, preservam essas tradições (configuradas nas Nações Oyó, Ijexá, Jeje, Cabinda e Nagô) na virada do século XIX e início do XX, e constituem-se desde então como grupos diretamente relacionados com sua Nação, e com determinadas práticas do sagrado que os diferenciam e identificam assim. Sua principal identidade refere-se ao culto aos Orixás africanos.

O RS é o estado brasileiro, segundo o Censo de 2010 (IBGE), com maior percentual de pessoas autodeclaradas como adeptas de religiões de matriz africana. Mas ainda persiste a estigmatização e por vezes a perseguição. Qual a origem dessas práticas de intolerância religiosa?  

Como diz o babalorixá Baba Diba de Iemanjá, o Batuque tem sido o “suprassumo” da resistência afro, em uma região de forte racismo simbólico e prático. A estigmatização, no Rio Grande do Sul, nasce muito do desconhecimento profundo que persiste na atualidade sobre as práticas afroreligiosas e sobre a história da sua formação. As tradições de matriz africana caminham junto ao próprio processo de chegada das populações africanas em diáspora, portanto, sempre estiveram presentes na América Portuguesa e, portanto, no Rio Grande do Sul, não foi diferente.

No caso específico do Batuque e outras tradições a ele ligadas, a intolerância atual reverbera táticas antigas de associar o sagrado africano e afro-brasileiro com práticas ilícitas, alegando que a crença em orixás, caboclos e outras divindades visam o engano, ou o enriquecimento dos sacerdotes.

Por outro lado, no século XIX os diferentes contextos de repressão e controle por parte das autoridades, nas cidades como Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas, engendraram a configuração atual do Batuque, ou seja, as populações afro-brasileiras apresentaram uma solução criativa ao crescente cerceamento que sofriam e formaram uma nova configuração religiosa. Esta surge como um local social de acolhimento aos mais pobres, que não tinham a quem recorrer para suas angústias espirituais e físicas, mas que o pai e a mãe de santo passam a acolher, ajudar e tratar nas suas mais variadas dimensões.


Quitandeiras africanas em Porto Alegre, no ano de 1901 / Fonte: Prati Fotos antigas

Estruturalmente o livro destaca as “sementes do Batuque” no RS do séc. XIX, e Rio Grande e Pelotas ganham relevo. Na segunda parte, os territórios negros em Porto Alegre são destacados: Areal da Baronesa, Colônia Africana, Mont´Serrat e região. O que os/as leitores/as encontrarão nessa seção?

De certa forma, o livro propõe uma aproximação com a experiência dos indivíduos que institucionalizaram o Batuque, ou seja, participaram do momento em que as casas de Nação passaram a ter rituais, um calendário mais organizado, com certa regularidade, a partir da fixação em uma territorialidade específica, conhecidas como Territórios Negros. A ideia, portanto, é apresentar ao leitor fontes que permitam essa aproximação aos batuqueiros considerados pela tradição oral como as raízes do atual Batuque.

Entendemos assim, que a história do Batuque deve ser vista pela perspectiva dessas lideranças, cada um com suas especificidades, contribuindo para evitar a homogeneização das personagens da História africana e afro-brasileira, que é uma das questões mais importantes a ser combatida na Educação para as relações étnico-raciais. Também buscamos propiciar aos leitores a visualização de alguns outros aspectos do cotidiano desses territórios de resistência, nos quais eram vivenciadas uma diversidade de práticas de resistência como a sociabilidade nos clubes e ligas de futebol de negros, por exemplo. Para isso, procuramos explicitar as formas como os territórios negros foram sendo construídos frente a dinâmica da cidade e como foram, ao longo das décadas, sendo progressivamente atacados e deslocados para a periferia geográfica da cidade.

Autoridades religiosas como o lendário Príncipe Custódio, Mãe Rita, Antoninho de Oxum e Mãe Andreza ganham vida nas páginas do livro. Qual a importância desse resgate, em se considerando o contexto que vivemos? 

Entendemos que a importância de resgatar e valorizar o papel dessas lideranças possui um duplo significado. Primeiramente para a memória e identidade batuqueira, já que esta religiosidade se baseia nas noções de tradição e ancestralidade, no culto não só aos orixás, mas também aos antepassados humanos. Essas antigas lideranças das diversas famílias religiosas (as bacias de cada nação) são constantemente acionadas nas memórias batuqueiras como modelos e exemplos de vida e de conhecimento, e reverenciadas por terem propiciado, aos que vieram depois, a permanência da cultura do Batuque.

Por outro lado, acreditamos que resgatar personagens de carne e osso, com nome e sobrenome, é um exercício fundamental para que se rompa com a invisibilidade das populações afro descendentes na história nacional. Não foram apenas “negros, negras”, “africanas e africanos”, mas sim pessoas que construíram uma história de lutas, de escolhas, e enfrentaram o desafio do racismo religioso e social para se tornarem referências para toda uma comunidade. O fato de muitas dessas principais lideranças terem sido mulheres deve ser destacado, visto a permanência de uma cultura patriarcal até os dias de hoje.

Em tempos cada vez mais marcados pela intolerância com a diferença e pela crítica ao reconhecimento da diversidade constitutiva da cultura brasileira, apontar tais perspectivas adquire uma dimensão política de luta por direitos e igualdade.


Antoninho da Oxum, nação Oyó, e residente no Mont´Serrat, foi um dos mais célebres babalorixás na Porto Alegre da primeira metade do século XX / Foto: Reprodução

A obra se destaca pela leveza da escrita, diagramação atraente e, do ponto de vista historiográfico, pela diversificação no uso de fontes de época, mapas e iconografias preciosas. Inclui ainda sugestões didáticas e recursos para uso em sala de aula. Uma característica pouco comum entre produções dessa natureza. O que motivou vocês a fazer algo do gênero?  

O livro surge com a proposta de atingir um público amplo - batuqueiros, ativistas dos movimentos sociais, professores e estudantes do ensino básico e estudiosos em geral. E o eixo central foi a preocupação de que pudesse ser um instrumento informativo e reflexivo de agradável apropriação. Particularmente, pensamos no público escolar, o que não poderia ser diferente pois os três autores são professores em escolas.

Nesse sentido, pensamos em montar um texto que pudesse ser leve, que atingisse qualquer público, mas sem perder o rigor característico do processo de produção do conhecimento histórico.

Pensamos também em ofertar um material que apresentasse definições conceituais sucintas, vinculadas aos contextos estudados e que pudesse ser utilizado em partes, de forma independente. Apresentamos, por exemplo, diversos pequenos subcapítulos e caixas de texto com explicação de conceitos ou processos, algo como um “glossário histórico”, que podem auxiliar na abordagem de determinados conteúdos e que remetem, via notas de rodapé, à bibliografia e fontes documentais para aprofundamento.

Desse modo, pensamos em potencializar a análise de fontes históricas em aulas de História, na qual o docente e os discentes podem operar lendo e analisando as informações apresentadas (imagens, quadro conceituais, documentos, etc.), o que entendemos como um momento de efetiva produção de conhecimento.

Em se considerando a garantia constitucional da laicidade da educação pública e ao mesmo tempo as ameaças de cerceamento à liberdade de crença, expressão e mesmo de ensino, qual o papel da escola em relação à cultura religiosa?

A educação pública tem o compromisso de oferecer aos indivíduos em formação uma gama mais ampla de experiências e conhecimentos que possam ir além daquela oferecida na esfera familiar que cada um e uma estão inseridos. A escola, nesse sentido, não interfere nas escolhas familiares, mas garante o respeito ao maior número possível de práticas socialmente relevantes nas comunidades em que está inserida.

Nesse campo, as tradições de matriz africana podem e devem ser entendidas como uma das expressões mais importantes das comunidades periféricas de Porto Alegre. E incorporar seu estudo como fenômeno de pertencimento identitário que faz parte de um quadro maior de reparação histórica aos grupos populares e, em especial, afro-brasileiros vítimas de políticas de repressão alicerçadas em preconceitos étnico-raciais. Compreender o passado dessas populações, desde uma perspectiva que os perceba como protagonistas, é valorizar a própria história de nossos alunos.

Uma criança, um adolescente ou nosso público da Educação de Jovens e Adultos, ao perceber que a escola se abriu para histórias de Príncipe Custódio, da Mãe Rita e outras lideranças afro-religiosas, poderá ali se ver também. Quiçá perceber o espaço escolar como um local de pertencimento, ou pelo menos de acolhimento, onde alguns poderão assumir essa identidade como sua, outros conhecê-la com menores distorções. Quem sabe alguns ainda poderão, inclusive, contar outras histórias vindas de sua memória e vivência batuqueira.

Serviço

O acesso e o download da obra Histórias de batuques e batuqueiros: Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre pode ser efetuado clicando neste link.

A live de lançamento acontece dia 23 de novembro, terça-feira próxima, as 19h, no canal do Youtube da ATEMPA.


Lançamento do livro ocorre nesta terça-feira (23) / Divulgação

Edição: Marco Mello e Marcelo Ferreira