Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | De baleias e vacas...

"Para desmontar argumentos torpes de internet, basta você acordar com insônia às 4h da manhã e pensar um pouco"

Santa Maria | BdF RS |
"Preservação ambiental e privatização são duas palavras que não cabem na mesma frase, a não ser que, ao invés de afirmativa, a sentença seja de negação" - Reprodução

Neste domingo acordei às 4h da manhã e fiz a coisa mais insalubre que se pode fazer quando se acorda com insônia numa madrugada de domingo – e também a menos recomendável pela sempre lembrada, mas nunca seguida, “higiene do sono” –, abri minhas redes sociais. 

Enfim, por alguma razão íntima destes algoritmos que redirecionam conteúdos e que eu ainda ignoro (talvez seja porque tenho o estranho hábito de ouvir coisas tolas até o fim esperando que haja lá alguma derradeira luz, que nunca ocorre), recebi pela enésima vez uma daquelas falas de um palestrante anônimo, mas muito seguro de si (destes que falam com um sorriso de sapiência entre os dentes), com a seguinte reflexão neoliberalóide:

“Você sabe porque as baleias estão em extinção e as vacas não? Porque as vacas foram privatizadas, e as baleias não! O que é público não é de ninguém!”, sugerindo que se privatizássemos tudo, até as baleias agradeceriam, e não haveria sequer problemas ambientais.

- Clap, clap, clap...

Bem, ouvido isso, e após uma pequena pausa para... blarghhh, urghhhh! Arghhh! e outras anomatopeias do gênero, fiz a segunda coisa menos recomendável pela inclemente higiene do sono quando se quer voltar a dormir: fui pensar. E para não desperdiçar o resto da noite, subi para o terceiro nível de como perder o sono numa manhã de domingo sem se sentir um completo idiota: resolvi escrever a respeito.

Eis-me aqui.

Bom, primeiramente, diria que aquele argumento utilizado acima, apesar do sorriso de quem o descobriu ontem, não é novidade. Já foi descrito por um ecologista chamado Garrett Hardyn em um ensaio de 1968 chamado "The Tragedy of the Commons", em que descrevia como bens públicos costumam ser super explorados. Suas soluções iam da privatização de recursos e pagamentos pelo direito de poluir, até o acirramento das regulamentações ambientais.

Também, soluções como a subliminarmente sugerida na postagem citada acima, de “privatização das baleias”, já foram utilizadas mundo afora, sobretudo na era de ouro do neoliberalismo, após os governos Reagan e Thatcher dos anos 1980. Os casos mais famosos foram as privatizações de manadas de elefantes na Namíbia, Zimbabue e África do Sul, que permitiam a agentes privados a venda de direitos de caça por até 20 mil dólares por elefante. Mas, para que matar elefantes, né? Bem, principalmente para a extração do marfim, usado para fazer obras de arte, joias e outras coisas “nobres” (e bregas) para os ricos do mundo. Só isto já me dá um certo asco desta política, agentes privados vendendo o direito para caçadores perversos e ricos matarem os cartões postais das savanas africanas, para exibirem como troféus e venderem suas presas para que façam artefatos supérfluos e de luxo, para uso e ostentação de outros iguais a eles.

Bem, hoje não são mais os agentes privados, mas sim os próprios governos daqueles países que vendem, eventualmente, direitos de caça, pois a espécie é protegida por lei. E as populações de elefantes continuam a crescer, em alguns casos como na Namíbia chegando a causar transtornos com fazendeiros locais, o que mostra que o que faz aumentar a população de animais não é a privatização, mas a proteção ambiental.

Aliás, se tem uma área em que o neoliberalismo sofreu as maiores derrotas teóricas e empíricas nos últimos tempos foi com relação à proteção do meio ambiente. Já faz muitas décadas que se sacramentou, mesmo nas teorias econômicas mais conservadoras, a concepção teórica de que os problemas ambientais são causados exatamente por “falhas de mercado”, pela incapacidade dos agentes econômicos privados, que agem com base em interesses de curto prazo, reconhecerem os custos sociais e ambientais de suas ações e transmitirem isso ao mercado via sistema de preços. E sem isso não há eficiência privada possível. Então, hoje, teorias neoliberais totalmente baseadas na suposta eficiência da mão invisível do mercado não tem nenhum espaço ou reputação quando o assunto é proteção do meio ambiente, porque seus argumentos são risíveis e já foram largamente refutados pela teoria e pela história.

Além disso, é reconhecido amplamente, menos pelos que não querem ver, que os grandes problemas ambientais da atualidade são causados exatamente pelo uso indiscriminado de recursos ambientais promovido pelo próprio setor privado, comandado pelo tal mercado. São interesses privados que geram tragédias ambientais e sociais como a de Brumadinho, o efeito estufa, a devastação da Amazônia, a poluição dos rios, a super contaminação dos alimentos por agrotóxicos, a extinção das abelhas (que, aliás, já foram há muito tempo privatizadas, mas não tem adiantado muito para salvá-las), etc. E são, por outro lado, a regulamentação estatal, os acordos internacionais e a fiscalização que têm tentado, e em alguns casos até conseguido, reverter muitos destes problemas.

Mas, deixemos os argumentos teóricos enfadonhos um pouco de lado, vamos voltar para o nível argumentativo da fala que me levou a este texto, que é muito mais interessante. Minha pergunta agora é oposta, por que privatizar as baleias não as salva da extinção, e por que principalmente elas talvez nem queiram isso?

1) Primeiro, é preciso ressaltar que, embora elas não sejam privatizadas, nem todas as espécies de baleias estão em extinção, o que prova que a extinção não é um problema delas serem supostamente “públicas”, e sim de como são protegidas ou não internacionalmente.

2) Fatores que levam à extinção ou à superpopulação não tem nada a ver com as espécies serem privadas ou não. Há fatores naturais que levam à extinção, muitas espécies foram extintas mesmo antes da existência da propriedade privada, e há fatores de super exploração em nível industrial que também levam à extinção, assim como há fatores naturais e industriais que levam à superpopulação de animais, também danosa ao meio ambiente. É só ver que ratos, pombos e javalis não são privatizados e no entanto infestam cidades e lavouras, da mesma forma que o fato de terem sido privatizadas não tem salvado as abelhas da extinção, vitimadas pela destruição dos ambientes naturais e pela super exposição aos agrotóxicos.

3) Prova de que a privatização pode não só não proteger espécies de extinção como levá-las a isso, é o caso das sementes nativas (crioulas) de milho. Reproduzidas pelos próprios agricultores no passado, elas entraram em extinção exatamente quando grandes empresas capitalistas desenvolveram o milho híbrido e outras formas "melhoradas", muito mais produtivas, mas que, por sua constituição genética artificial, não poderiam ser reproduzidas pelos próprios produtores, tendo que ser adquiridas de uma das 4 grandes empresas oligopolistas do mercado mundial de sementes de milho, que hoje dominam mais de 75% do mercado. Atualmente, elas é que detém e exercem o poder de manter ou não a produção mundial de milho e todas as cadeias produtivas que dependem desta produção. 

Em contrapartida, sementes crioulas de milho (que são aqui as nossas baleias em extinção) são de uma enorme biodiversidade, tão linda quanto necessária à própria manutenção da espécie, mas só tem sido preservadas atualmente por meio de projetos públicos e comunitários filantrópicos, que operam verdadeiros museus biológicos da biodiversidade, porque não cabem no modelo industrial de produção de milho, este controlado pelo oligopólio capitalista das produtoras de sementes. A indústria privada promove o seu desaparecimento, enquanto as comunidades e o setor público tentam salvar estas sementes da extinção.

4) Na indústria, assim como ocorreu com o milho, os animais supostamente “preservados” pela privatização deixam de ser os mesmos que eram, ou que supostamente estavam em extinção. A vaca que deu origem às atuais produtoras de leite e carne privadas já quase não existe mais, e as atuais pouco se parecem com ela. Aliás, na Europa a Política Agrícola Comum (PAC) ainda hoje faz pagamentos diretos para alguns produtores preservarem certos exemplares da extinção. Mas a lógica industrial da produção animal é a do “melhoramento genético”, que transformam os animais originários em outros, mais atrativos para o mercado e para a produção, criando, até mesmo, raças que nem de longe lembram os seus ancestrais. Então, sim, a produção industrial extingue exatamente aquilo que ela privatizou, para criar congêneres que funcionem, agora, como produtos para o mercado – como o famoso “Chester” da indústria de frangos –, e sejam não mais o ser animal que era na natureza.

5) Ainda, tal produção industrial de vacas, e de bois, alimenta uma produção tão ou mais nefasta ao meio ambiente que a própria extinção das baleias. Sem falar na destruição da Amazônia para expansão da pecuária, ou de inúmeros outros danos ambientais causados por ela, o mais recente e ameaçador à própria humanidade é a impressionante produção de gases estufa, mais precisamente o Metano, dezenas de vezes mais potente para o aquecimento global que o Dióxido de Carbono exalado da queima de combustíveis foceis. Fruto de quê? De uma superpopulação bovina produzida em escala industrial e internacional.

E as soluções para este problema, que não sejam a redução da população de vacas, e de bois, não são nada amigáveis para os animais: a substituição da produção a pasto, onde os animais vivem mais livres – embora vivam cada vez menos por conta do abate precoce – pelo confinamento com alimentos menos fibrosos (que reduzem a ruminação e a produção de Metano), ou o uso de uma “carenagem” pelos animais, com um equipamento individual ligado ao seu rumem que reduziria a formação de Metano, uma cena deprimente. Se assim for, além de elevar os custos e elitizar ainda mais o consumo de carne, creio que as próprias vacas talvez preferissem a extinção.

6) As baleias também, se fossem privatizadas, pelo seu tamanho e mobilidade, provavelmente seriam colocadas em gaiolas pouco maiores que o seu corpo, para que se movimentassem o mínimo possível e pudessem crescer e engordar mais rapidamente, como se faz ainda hoje em sistemas de produção confinados de porcos, frangos e gado. Sei não, mas creio eu que assim como estas outras espécies criadas em confinamento, as baleias talvez também preferissem a extinção.

Bem, não tenho o objetivo aqui de exaurir o assunto, comecei a escrever sem nenhuma pretensão maior além de problematizar mais esta falácia de que a mão invisível do mercado é capaz de resolver todos os nossos males. E também de mostrar que todos estes argumentos de internet que resumem temas complexos a um “simples assim”, quase sempre visam disseminar ideologias torpes, mas que não resistem a um aprofundamento mínimo. O “simples assim” geralmente é um recurso heurístico para colonizar mentes preguiçosas. Porque se você pensar bem, no mundo em que vivemos, nada, mas absolutamente nada pode ser tão “simples assim”. Basta você acordar com insônia às 4h da manhã e pensar um pouco.

Mas o fato derradeiro é que, contemporaneamente, por tudo o que se sabe, preservação ambiental e privatização são duas palavras que não cabem na mesma frase, a não ser que, ao invés de afirmativa, a sentença seja de negação.

* Renato Souza, professor Titular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), formado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Pelotas (1992), mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996) e doutorado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004).

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko