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Rap Nacional

Artigo | Uma análise dos significados do álbum “Roteiro para Aïnouz (Vol. 2)”, de Don L

Álbum lançado nesta semana projeta desejos de alguém que observa o mundo ao seu redor e percebe que este não está certo

Brasil de Fato | Porto Alegre |
O músico natural de Brasília que se criou nas periferias de Fortaleza, mais conhecido como Don L, lançou seu mais novo álbum: Roteiro para Aïnouz (Vol. 2) - Reprodução

Nesta semana, mais especificamente às 00h de hoje (26), o músico natural de Brasília (DF), mas que se criou nas periferias de Fortaleza (CE), mais conhecido como Don L, lançou seu mais novo álbum: Roteiro para Aïnouz (Vol. 2). Ao todo, são 17 faixas que compõem uma espetacular e necessária narrativa resumida em 49min de obra.

O nome do álbum indica uma sequência da trilogia de “Roteiro para Aïnouz (Vol. 3)”, lançado em 2017, contando em ordem regressiva. Segundo indica o próprio autor, o nome dessa trilogia é uma referência ao cineasta Karim Aïnouz, seu conterrâneo de Fortaleza, responsável por filmes como “Madame Satã” e “O Céu de Suely”.

O Volume 2 dessa trilogia representa uma nova etapa nessa série de roteiros escritos em formato de álbuns, que falam da vida do músico, mas também do Brasil e do mundo. Esta breve análise busca retomar alguns dos temas e significados contidos nas músicas.

Além de relatar experiências vividas dentro de um contexto linear histórico, esta nova produção projeta desejos de alguém que observa o mundo ao seu redor e percebe que este não está certo. Como disse Karl Marx, "os filósofos se limitaram a explicar o mundo de diversas maneiras, porém o que importa é transformá-lo". 

Na singela perspectiva deste que vos escreve, parece que esse também é um objetivo de Don L: não somente observar e relatar, mas ajudar a transformar, projetando ideias que podem ser realizadas no plano concreto.

Análise das faixas

A introdução do álbum conta uma pregação que parece questionar implicitamente se o público “tem um minuto para ouvir a palavra de Don L”, como brincam seus atentos fãs.  

Faixa 2: Em Vila Rica, é feita referência à atual cidade de Ouro Preto (MG). A cidade ficou marcada na história pela extração de metais preciosos nos séculos passados, onde colonos saquearam toda a riqueza ali existente. Neste retorno, Don L propõe imaginar a uma inversão da história, com a morte dos bandeirantes e demais genocidas que fundaram um projeto de país que reflete até os dias atuais as mazelas socioeconômicas do nosso Brasil.

Faixa 3: “A todo vapor” é uma composição intimista, falando sobre consciência e caminhada. Adversidades, desilusões com o crime e o rebelde que agora tem uma causa pra chamar de sua. Fala em "fazer tudo que posso, ser tudo que sou".

Faixa 4: “Pânico de nada” fala de uma revolução em marcha, visualizada na forma de guerrilhas urbanas. Fala do levante de quem não tem mais nada a perder além de suas próprias correntes. "Eles sangram como eu sangro", constata, em referência aos inimigos do povo que apesar do poder, também são feitos de carne e osso e que, portanto, também podem morrer. 

Faixa 5: “Enquanto recomeça” Don L imagina o momento após: aconteceu, tomamos o poder. E mesmo na batalha, há espaço para o prazer, o gozo, o belo, ainda que diante das ruínas do velho mundo que cai sob seus pés.

Faixa 6: “Primavera” fala sobre reflorestar, fazer crescer novamente. O mundo novo não vai se reconstruir sozinho. E apesar do foco no horizonte (que se distancia na medida que caminhamos), não se abandona a luta. É endurecer, mas sem perder a ternura, como disse Guevara.

Faixa 7: “Pela boca” o rapper afirma que não permitiremos que mintam sobre nossa história. A depender de Don L, podemos escrever e contá-la nós mesmos, e lembra dos que "não têm moral pra dizer nada" (a burguesia), que levou consigo muitos, em nome de suas falsas premissas e distorcidas narrativas. 

Faixa 8: “Volta da vitória” sugere a ideia de forma. A vitória chegou, aconteceu, vencemos, homens e mulheres, descendentes de heróis e heroínas forjam o novo e prendem os financiadores da opressão. Cada trabalhador, cada morador, cada mãe solo é parte de um todo, e o todo é o povo celebrando a revolução com as armas pro ar.

Faixa 9: “Favela venceu” faz questão de traçar uma linha que separa nós e eles, opressores e oprimidos, favelados e playboys, burguesia e proletariado. Quem tá com nóis e quem tá contra.

Faixa 11: “Aura Sacra Fames” condena a ganância insaciável por riqueza dos colonos e burgueses, que contaminam a todos, inclusive a nós próprios. Nem mesmo Don L escapa a essa armadilha na tentativa de recusar esse ideal capitalista em troca de um mundo mais justo.

Faixa 12: Em “Bingo”, o capitalismo é retratado como um jogo de azar, em que não é opção não fazer apostas. Fala também como esse papo de meritocracia é uma mentira em um mundo que não dá oportunidades iguais (“uns metem milhão porque têm muito, quem tem só o pescoço, põe à prova”) - e que os vermes controlam o jogo. 

Faixa 14: “Contigo pro que for” é sobre quem está do nosso lado na trincheira. É sobre amor em tempos de guerra. Sem medo dos erros, das paranoias, ser o que se é em prol do que acredita. A impressão é que Don sugere “meu caminho é esse, se for vir junto, vem sabendo”.

Faixa 15: “Élewood” nessa faixa Don L afirma que sabe do seu valor e, apesar da hipocrisia dos que condenam aqueles que desprezam a moral burguesa, continua não fazendo questão desta mesma moral. "Julgame cómo le gusta". 

Faixa 17: “Trilha para uma nova” é o ato final dessa narrativa que poderia ser sem sombra de dúvidas um roteiro de filme. Arriscaria dizer ainda que a obra já nasce um clássico: é um ensaio para a revolução brasileira. Aqui Don parece reafirmar tudo que disse antes, desde o retorno ao sombrio passado deste país de colonos à projeção de um mundo novo. 

E se for para viver por esse Brasil colônia em que não há espaço para todos no topo, é preferível morrer lutando pelo mundo novo que há de surgir das ruínas do mundo velho.

* Vinicius Costa é coordenador do projeto Tempo de Cuidar, Articulador Cultural e grande entusiasta das ideias de emancipação.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko