Rio Grande do Sul

Coluna

Sequestraram a gramática

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Sérgio Moro é a variante eleitoral da mesma extrema direita que sustenta Bolsonaro - Evaristo Sá / AFP
O surgimento de Moro se dá a partir do uso de lawfare para eliminação de adversários políticos

Para Antonio Gramsci [1] a forma superior da dominação é a hegemonia. Esta se dá em várias esferas da luta política, nas do Estado e da sociedade. Influenciar e dirigir o senso comum é decisivo na luta pela hegemonia. Essa importância se dá porque, para Gramsci, o senso comum ordena e normatiza as ações de uma sociedade através da organização de diferentes concepções heterogêneas e contraditórias. A incorporação ao senso comum garante, para valores e noções, que a eles sejam conferidas as condições de objetividade e verdade.

A política tradicional brasileira é fortemente marcada por essa disputa no senso comum. Os significados são decisivos para alinhar as relações de dominação e de poder. Há uma disputa pelo vocabulário e pela gramática da política, de forma a reposicionar as forças políticas através da imposição de significados.

Os significados, ainda que se embasem em visões de mundo e cortes teóricos, se posicionam a partir da hegemonia política. É assim, portanto, que as forças que se reposicionam após o fim da ditadura militar o fazem num ambiente onde as ideias e discursos democráticos predominam e dominam. A gramática e os significados se ajustaram àquela dinâmica da luta política. Até então, a direita que se baseava em uma retórica autoritária e tradicionalista, com a derrocada da ditadura se reenquadrou em um discurso liberal democrático e assim manteve a situação.

Esse sentido faz com que, misteriosamente, a direita deixe de existir na régua da política brasileira como tal, ao menos até as eleições de 2018. Evidentemente, que este “milagre” se dá do ponto de vista da retórica e do esforço político de ressifignação e não no plano econômico e ideológico, ou seja, no plano material. Deste modo, durante a vigência da constituinte entre 1987 e 1988, a direita se apresentou como “Centro Democrático”, como forma de angariar legitimidade para barrar o crescimento da esquerda e da centro-esquerda nos debates constituintes. E com isso garantir os interesses da grande burguesia no texto constitucional. [2]

Nas décadas seguintes o processo de camuflagem política se acentuou. O partido orgânico do capital financeiro e que aprofundou no governo as políticas neoliberais se nomeou Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB. Os parlamentares conservadores de direita no Congresso Nacional criaram uma articulação efetiva que passou a se chamar de “Centrão”; com o Partido Trabalhista Brasileiro votando e liderando a dilapidação da Consolidação das Leis do Trabalho, desconstituindo direitos e conquistas dos trabalhadores brasileiros em função dos interesses da grande burguesia.

Mais recentemente, um conjunto de grupos de direita criou novas legendas partidárias, sempre procurando preservar certa retórica democrática ou progressista para buscar legitimidade. São os casos do Podemos, Democratas, Progressistas e Avante. Todos grupos de direita e extrema direita que optam por denominações suavemente progressistas.

O processo golpista aberto em 2016 e as eleições de 2018 permitiram uma quebra parcial, mas não definitiva desse paradigma político. A extrema direita se reposicionou na disputa discursiva apresentando-se explicitamente a partir da aglutinação em torno do combate ao PT, à esquerda e na defesa da candidatura de Jair Bolsonaro. A partir de então, organizada pela política do governo Bolsonaro, desenvolveu uma retórica ofensiva e sectária, abrindo espaço para crescer sobre um discurso abertamente antidemocrático e neofascista.

A presença consolidada de dois polos políticos contrários e antagônicos, representados pelas pré-candidaturas de Bolsonaro e de Lula, parece estar sendo respondida por forças de direita dissidentes de Bolsonaro com o mesmo subterfúgio político: construir uma retórica moderna e democrática para projetos programaticamente de direita. Este é o esforço que marca a tentativa de consolidação da “terceira via”. Sergio Abranches vem chamando a atenção para o fato de que não há terceira via no Brasil. Isto porque ela não surge do campo democrático, como nos casos clássicos, e não se constitui como uma via alternativa de fato “porque se define por negação: "nem Lula, nem Bolsonaro, o que não lhe confere qualquer identidade programática” e “porque praticamente todos os nomes especulados - até agora sem sucesso - para encarná-la são de direita ou centro-direita. Todos já se mostraram identificados com agendas conservadoras no campo social e, em alguns casos, com pautas reacionárias”. Ou seja, mais uma vez, uma derivação da direita brasileira busca se legitimar e consolidar eleitoralmente com uma retórica progressista sem correspondência com o real conteúdo de sua política.

A tentativa de emplacar Sergio Moro, como uma candidatura de terceira via, aprofunda essa falsificação retórica proposital. Trata-se de um verdadeiro sequestro político da gramática e dos seus significados. Sergio Moro é uma candidatura de extrema direita, vinculada à ideia de regressões democráticas e criminalização da política. Ainda que se apresente, até agora, como um candidato às eleições, seu protagonismo político emerge do controle antidemocrático de instrumentos estatais burocráticos. Seu surgimento se dá a partir do uso de lawfare para eliminação de adversários políticos, ou seja, do emprego de manobras jurídico-legais como substitutas dos procedimentos democráticos. Impossível, a não ser no mundo dos aparelhos ideológicos e das falsificações, caracterizá-lo com uma terceira via. Para isso deveria, minimamente, se enquadrar no campo da democracia. Não é o caso! Moro é a variante eleitoral da mesma extrema direita que sustenta Bolsonaro.


[1] GRAMSCI, António. Cadernos do cárcere. vol 1. Rio de Janeiro: ed Civilização Brasileira, 2014

[2] Sobre isto sugiro a leitura de CASIMIRO, Flavio Henrique Calheiros. A nova direita: aparelhos de ação política e ideológica no Brasil contemporâneo. São Paulo: Expressão Popular, 2018.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko