Rio Grande do Sul

Ataque à saúde

Entidades e usuários do SUS protestam contra projeto que altera Conselho Municipal de Saúde

O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), encaminhou à Câmara um projeto que pretende tornar o CMS consultivo

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Em live, representantes do Conselho e usuários criticam enfraquecimento da participação popular em detrimento de interesses privados - Foto: Reprodução

Há quase três décadas o Conselho Municipal de Saúde (CMS) de Porto Alegre vem atuando de forma deliberativa e permanente. Esse ano, porém, o prefeito Sebastião Melo (MDB) encaminhou à Câmara de Vereadores de Porto Alegre o Projeto de Lei Complementar do Executivo (PLCE) nº 26/2021, que visa atribuir caráter consultivo ao CMS, entre outros pontos.

Em live, realizada no início da tarde desta quinta-feira (2), representantes do Conselho e usuários destacaram que o objetivo central do projeto é reduzir a participação e o controle social na cidade de Porto Alegre. Uma audiência pública está marcada para esta noite, às 19 horas, na Câmara de Vereadores, para debater o projeto.

O Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre, tal como define a Lei Federal 8.142/90, foi criado pela Lei Complementar 277/92, como órgão colegiado, de caráter deliberativo e permanente. Na atual proposta, o Executivo municipal alega que o CMS apresenta um número de membros maior que o dobro da maioria das capitais do país. Atualmente, o Conselho possui 85 representantes, entre titulares e suplentes, de diversos segmentos. A proposta é que se reduza para 42 (titulares e suplentes), sendo representantes do Executivo, prestadores de serviços de saúde, trabalhadores da saúde e usuários.

Segundo a justificativa do governo Melo, o CMS vem sofrendo demasiada influência político partidária e sindical, “desnaturando o seu principal objetivo que é a participação popular". O que, afirma o Executivo, tem como consequência "o emperramento e a burocratização da gestão da saúde", e por isso "necessita ser atualizada aos novos tempos em que a velocidade das decisões da administração é um imperativo de eficiência”.

Na live, os participantes resgataram a história do Conselho e os ataques brutais que vem sofrendo nos últimos anos, destacando o caráter autoritário do atual projeto. Conforme foi destacado, a proposta recente foi feita sem diálogo como a gestão atual do colegiado. Segundo os presentes, ao mexer na composição do Conselho, o Executivo pretende manter maioria na sua composição, enfraquecendo a participação popular, em detrimento de interesses privados. 

O debate virtual teve a participação do médico popular Alcides Miranda, professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Maria Letícia Garcia, coordenadora do CMS 2018/2019; Tiana Brum, representante dos trabalhadores no CMS; Waldir Bohn Gass, usuário e coordenador do coordenador do conselho Distrital (CD) da região Glória Cruzeiro Cristal (GCC); Dejanira Correia, coordenadora do CMS 2014/2015; Cláudia Franco, presidente do Sindicato dos Enfermeiros RS (Sergs); Alberto Terres, representante da CUT no CMS; João Ezequiel, diretor-geral do Simpa; e Julio Jesien, presidente do Sindisaúde/RS. 

Desmonte da saúde em Porto Alegre

Alberto Terres, que juntamente com Luis Muller, da Rede Soberania, coordenou o debate virtual, iniciou sua fala destacando a importância do Conselho e do reconhecimento que o mesmo tem no país. “Estamos vivendo um momento bastante complexo do ponto de vista da democracia em Porto Alegre, onde temos um Conselho reconhecido em todo país pela sua atuação na defesa do Sistema Único da Saúde, assim como pela sua participação popular. Infelizmente estamos vendo um desmonte da saúde em Porto Alegre”, destacou o dirigente, pontuando que o prefeito Melo segue a mesma linha política de Bolsonaro, de acabar com os conselhos de participação popular.  

Na sequência falou Tiana Brum, que também trabalha na Atenção Básica da Capital, pelo Grupo Hospital Conceição, em uma das equipes que ainda são 100% públicas. “Estamos com a nossa atenção básica em 86% entregue à rede privada”, expôs. Ela lembrou que ainda na gestão anterior, de Marchezan Júnior (PSDB), o Conselho sofreu muitos ataques, situação agravada na gestão de Sebastião Melo. Prestes a completar 30 anos, Tiana disse que o atual projeto é um ataque ferrenho a toda a história do colegiado, inserido em uma conjuntura nacional que vem a partir do golpe de 2016. Ela recordou que todos os ataques sofridos ao longo dos anos vêm sendo denunciados pelo Conselho. 

A presidenta do Sergs, Cláudia Franco, afirmou que no país foi criado o melhor sistema sanitarista do mundo, o SUS, e que não é à toa que se queira pôr a mão. “Eles fazem isso através do controle social. Não vamos permitir, prefeito Melo, que sua ânsia privatista acabe com esse sistema. Estaremos lutando”, afirmou a dirigente. Ela pontuou que o prefeito desconhece a função do controle social. “O Sergs vai estar nas trincheiras de luta para manutenção e defesa intransigente do CMS e de todas as instâncias deliberativas do Controle Social e do SUS”, ressaltou.

A ex-coordenadora do CMS Maria Letícia reforçou que os ataques ao Conselho não começam na atual gestão, mas começam mais explicitamente em 2018 com o prefeito Marchezam e com o secretário Erno Harzheim, que promoveu uma intervenção no processo eleitoral do colegiado, com uma postura autoritária e anti-democrática. Ela também recordou que em 2019, a secretária municipal não participou da Conferência Municipal de Saúde e nem delegou recursos para realização da mesma.

“O Conselho que eles atacam é o conselho que trabalhou, se manifestou com relação a uma Oscip que veio para administrar a Atenção Básica, que foi o instituto Solis”, disse Maria Letícia. Ela resgatou também outros momentos significativos do Conselho durante a sua trajetória, como a luta por manutenção de hospitais públicos.

"Pedra no sapato para governos autoritários "

O médico Alcides Miranda expôs que no país, durante muitos séculos, as conquistas aconteceram em transições conservadoras. “O SUS e a seguridade social são produtos dessa transição conservadora, em um momento muito difícil”, apontou, destacando que quando se refere à gestão participativa, o que ficou na Constituição foi o termo participação comunitária. “Quando eu li o projeto do Melo, me chamou atenção os absurdos que estão colocados. Como a assessoria jurídica de um prefeito é conivente com a apresentação de um projeto flagrantemente ilegal. Que assessoria é essa? Nesse projeto a prefeitura cobra que o CMS cumpra o preceito constitucional de participação comunitária, isso beira o cinismo”, afirmou.

“Além de querer diminuir, definir as competências do Conselho, ou descaraterizar as competências do Conselho que estão claramente estabelecidas na Lei Federal, ele comete absurdos como escrever na proposta de que a indicação dos trabalhadores vai ser feita pelos gerentes de distritos e a indicação dos trabalhadores vai ser feita pelo governo, que já tem acento no Conselho”, apontou Alcides, sublinhando que os conselhos são uma pedra no sapato de governos autoritários, e por isso querem degradá-los. 

Usuária do sistema público de saúde, Dejanira Correia ressaltou que é preciso resistir para seguir com um Conselho deliberativo, e não consultivo. Ela recordou de que quando Melo era vice-prefeito, falava manso. “Melo é um grande mentiroso. Um cara que diz que o Conselho não poder ser deliberativo, e sim consultivo. Temos que lutar, resistir, a saúde não é mercadoria. Estamos garantido por lei, enquanto conselheiros da saúde. Estar na audiência de logo mais é muito importante. Enquanto estive no Conselho tivemos muitas brigas, mas os secretários nos ouviam, diferente do que acontece agora”, afirmou.

"Por o medo da participação popular"

Também usuário do sistema, e militante dos movimentos sociais, Waldir Bohn Gass lembrou do Programa Mais Médicos, que foi extinto, e de como ele poderia ajudar no contexto pelo qual o país vive por conta da pandemia. “Por que eles têm medo da participação popular? Ignorância é que não é. Eles sabem exatamente para que serve a participação popular, por isso não a querem. Eles sabem que onde há participação popular e controle social efetivo, a possibilidade de atender outros interesses escusos, de minorias, não pode acontecer”, ressaltou Waldir. Ele pontuou que o controle social é a alma do SUS e de qualquer política pública, por isso estão tentando destruir. “Não podemos retroceder, não podemos deixar de lutar. Só com a participação popular podemos mudar a realidade,” avaliou.

Por fim, João Ezequiel disse que o governo Melo quer se apossar do Conselho para que não haja resistência para seu projeto de terceirização e privatização da saúde. “Esse Conselho está sofrendo um ataque brutal por esse atual governo. Sabemos o que há por trás disso, na verdade existe o projeto de empresariamento da saúde em Porto Alegre, o projeto de terceirização, de privatização dos equipamentos de saúde. A entrega dos equipamentos de saúde, como as Unidades Básicas de Saúde, os Pronto Atendimentos e até os hospitais municipais. Existe um processo onde o governo Melo quer entregar esses equipamentos à iniciativa privada, dando continuidade ao projeto de Marchezan”, afirmou. Para ela, o Conselho é a trincheira mais forte e combativa contra esse processo de mercantilização da saúde.

Em seu site, o Conselho fez um resgate do caso e também um quadro comparativo do projeto

Professores, pesquisadores e profissionais da saúde lançaram, recentemente, um manifesto contra a proposta de reorganização do Conselho. O manifesto pode ser acessado neste link.


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Edição: Marcelo Ferreira