Rio Grande do Sul

Movimento

Assentamento Nova Sociedade, 30 anos depois

Um dos primeiros assentamentos da reforma agrária e do Movimento Sem Terra na Região Metropolitana de Porto Alegre

69 famílias dividem 1,2 mil hectares, de onde tiram seu sustento, principalmente da produção e comercialização de hortigranjeiros e arroz agroecológicos - Foto: Igor Sperotto

A área de 1,2 mil hectares da antiga Fazenda Itapuí, localizada em Nova Santa Rita, município a 27 quilômetros de Porto Alegre, abriga um dos primeiros assentamentos da reforma agrária e do Movimento Sem Terra (MST) na Região Metropolitana da capital gaúcha.

Batizado de Nova Sociedade, o assentamento é integrado por 69 famílias que tiram seu sustento, principalmente da produção e comercialização de hortigranjeiros e arroz agroecológicos (livres de venenos). Também têm uma pequena agroindústria vegetal, que fabrica e engarrafa, principalmente suco de laranja.


Fabricação própria de suco de laranja / Foto: Igor Sperotto

A produção agroecológica no local é pioneira, precedendo outras iniciativas oficiais do próprio MST e é objeto de várias monografias e pesquisas universitárias de vários pontos do país, como Ufrgs, Unesp, Uniara entre outras.

As primeiras 15 famílias ocuparam parte da área na manhã do dia 1º de maio de 1987, quando ergueram suas barracas de lona. A posse das terras viria em agosto do ano seguinte e os títulos do Incra somente três décadas depois.

Hoje, a paisagem construída pelos moradores é bem diferente de 33 anos atrás. As lonas foram trocadas por casas de alvenaria e áreas arborizadas. O vasto descampado arenoso e aparentemente infértil daqueles dias, cedeu espaço para uma grande variedade cores, com predomínio do verde. Seja das árvores nativas e frutíferas, seja dos hortigranjeiros ou até mesmo do arroz e das pequenas criações de aves, porcos, ovelhas e gado leiteiro.

Um pensador da terra


João e Zenilda Vink mantém a família unida em torno do trabalho com os orgânicos / Foto: Igor Sperotto

Natural de Marau, o agricultor João Vink, hoje com 66 anos, foi um dos primeiros a chegar na antiga fazenda. Ele tinha 33 anos na época. Três anos antes, em 1985, participou ativamente de sindicatos rurais na região de Passo Fundo e da organização e ocupação da Fazenda Annoni, no município de Sarandi, interior do Rio Grande do Sul, ao lado de mais de 7 mil camponeses e ajudou a fazer história. O episódio é considerado um marco da construção da luta coletiva do MST.

Na década anterior, o pai de João perdeu as terras para um dos antigos proprietários da Annoni. A família brigou por 13 anos na justiça, mas foram derrotados. “Ele tinha dinheiro e nós não tínhamos. O pai trabalhava de dia para comer de noite”, recorda. Dos 10 hectares que estavam sob litígio restou apenas um hectare e meio, dividido por uma estrada.

João chegou na Itapuí junto com as 15 primeiras famílias. Depois, chegariam mais 15, que estavam acampadas em uma área da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Nos primeiros tempos, viveram em barracas de lona, assim como os anos que passaram na Annoni ou mudando de um lugar para outro nas beiras das estradas.

Verde que te quero verde


Parte da produção local também é comercializada nas feiras ecológicas da Capital e Região Metropolitana / Foto: Igor Sperotto

Ele é um dos poucos que recebeu apenas 16 hectares, por conta de ter ficado com uma área grande de mata nativa e, portanto, pouco utilizável. João explica que em média cada família tem 15 hectares, mas na prática a distribuição foi feita conforme a qualidade e usabilidade. Quem ficou com a área mais baixas, com banhados, chega a ter 22 hectares, por exemplo, onde estão as plantações de arroz orgânico certificado.

“Mas também há produção convencional”, explica o agricultor. “Nem todos ainda aderiram ao projeto, mas cada vez mais companheiros vão se dando conta da viabilidade econômica e do benefício para a saúde de quem compra e da própria família”, explica.

Vink faz parte de um núcleo produtivo dentro do assentamento, composto por quatro famílias, com o foco em hortigranjeiros e em escoar a produção para a merenda escolar de 16 escolas públicas da região e feiras orgânicas. Ele responsável é responsável por fornecer para quatro escolas e uma feira agroecológica no bairro Auxiliadora, em Porto Alegre.

Diariamente, a esposa Zenilda Almeida Vink, a nora Marieli dos Santos Pinto e um dos quatro filhos, Anderson, cuidam da produção de alface, rúcula, tempero verde, pepino, moranga, abóbora, berinjela, pimentão, feijão de vagem, repolho, beterraba, cenoura, aipim, quiabo, melancia, feijão, couve, entre outros itens.

Contrato com a Prefeitura de Nova Santa Rita para a merenda escolar prevê R$ 150 mil/ano e cada família pode negociar até R$ 20 mil/ano, que é rateado entre todos os produtores do assentamento que participam da produção. As compras são financiadas com recursos federais do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

João conta, que durante a pandemia as famílias dos estudantes das escolas da região buscavam as cestas ecológicas diretamente no assentamento. Além disso, uma grande parte da produção foi destinada a doação às comunidades vulneráveis, quilombos e aldeias indígenas da periferia na região metropolitana de Porto Alegre, em ações de solidariedade dos movimentos sociais.

De pai para filho


Anderson Vink aprendeu a lida ecológica com o pai e já repassa os ensinamentos aos filhos / Foto: Igor Sperotto

Anderson Vink, 40 anos, morou com os pais pelos acampamentos em beira de estrada de forma nômade até perto de oito anos de idade. O assentamento foi sua primeira referência de residência fixa, com vínculos permanentes e de frequência escolar regular.

“O que eu tenho e o que eu sou é por causa do meu pai. Independente dele ser meu pai, ele é antes de mais nada, um pensador da terra e um homem que, ao lado da minha mãe, valoriza o trabalho do campo e a união da família. Temos dois filhos (10 e 15 anos) e tudo que vou aprendendo, aos poucos, minha esposa, os avós e eu, vamos passando para eles”, se emociona Anderson. “Tanto um quanto o outro (os filhos) adoram estar aqui. O mais velho já me acompanha nas feiras ecológicas”.

Para Anderson, a terra é para quem trabalha. “Fui criado na estrada, então valorizo muito o que conquistamos com luta. Enfrentamos cassetete da polícia e todo tipo de dificuldade e preconceito, eu acho que o mais justo, não só pela minha parte, mas pela parte de todos, é seguir no mesmo caminho”.

O princípio da produção que eles seguem é o orgânico, protegendo a fauna e a flora. “A gente tem que ter um foco na vida. Para mim não tem coisa melhor do que ver um filho meu poder tirar um produto da terra e poder comer sem precisar se preocupar se tem veneno”. O filho mais novo, de 10 anos, já toma conta de uma pequena plantação de girassóis.

Protagonismo das mulheres


Juraci Lima de Oliveira, a Jora, é uma das lideranças / Foto: Igor Sperotto

Juraci Lima de Oliveira, a Jora, 68 anos, é dirigente do MST e, assim como muitos pioneiros do movimento, nasceu em Palmeira das Missões. Ela é uma das lideranças no assentamento e defensora da agricultura ecológica.

Estava ao lado da sua companheira Roseli Celeste Nunes da Silva – imortalizada no documentário Terra para Rose, de Tetê Moraes –, no dia em que foi morta com mais dois camponeses, aos 33 anos, por atropelamento, num fatídico outubro de 1987. Um caminhão de uma empresa agrícola carregado de ferro, acelerou por cima dos mais de 300 sem-terra que protestavam na BR 886, em Sarandi, contra a política agrária e os altos juros que estavam endividando pequenos agricultores.

Jora também passou pela Fazenda Annoni e Pelotas antes de se fixar em Nova Santa Rita. Ao lado do esposo – com quem completou 50 anos de casada – recorda que já tinha seus três filhos, Darlan, Andreia Margarete (profissional de saúde e vereadora no município) e Andriara (professora municipal e estadual com atuação no Assentamento).

Ela recorda, que tanto ela quanto o marido entraram para o movimento por conta da religião católica, via Pastoral da Terra. “Nossa família foi lutar pela terra prometida que nunca vinha”, conta. “Então, eu tinha muito isso na minha cabeça. Eu pensava e dizia, mas essa terra é dom de Deus por que nós não temos? Todos os dias colocávamos nossas crianças nas carroças para ir longe trabalhar nas terras dos outros”, recorda. O pai de Jora, que casualmente visitava a filha no dia em que a reportagem do Extra Classe esteve no assentamento, à época que precedeu o surgimento do MST possuía 5 hectares de terra e 10 filhos.

Já Maria Gorete Meneses Argolo Nunes, 60 anos, veio de longe para participar do movimento. Ainda jovem saiu do sertão de Sergipe, a mais de 3 mil quilômetros (cerca de 45 horas de viagem via BR-116) para trabalhar no MST no Sul. Já militante da reforma agrária em sua terra natal, conheceu o marido Olair Nunes Santos, 62 anos, quando ele esteve por lá para ajudar a estruturar o movimento no nordeste do país.

“Sou fundadora do MST em Sergipe. Antes mesmo do Movimento estar estruturado já havíamos ocupado terras em ações organizadas pela Pastoral da Terra. Vim para cá, depois a gente se casou lá no acampamento sem-terra em Sergipe. Mas entrei no movimento por opção de vida, não foi porque a minha família é do movimento. Meu pai é agricultor, mas eu sou e era professora”, conta.

“Vim embora para o Sul, não por minha vontade, mas porque tinha casado. A gente não tinha combinado nada. Nem chegamos a conversar. Estava com dois meses de gravidez do nosso filho Sandino, que vive da terra junto da gente. E aqui nós adotamos uma menina com 3 anos e 8 meses, que hoje está assentada na fazenda Apolônio de Carvalho e graças a Deus muito bem”, relata. “Tem também a Maíra que é mais nova, que hoje não é casada com ninguém ligado a terra”.

Ela conta que estranhou que no Sul haviam muitas lideranças, enquanto no Nordeste faltavam. “Quando saímos de lá, nós deixamos 32 lideranças assumindo um movimento, e o MST já criado, com todas as instâncias. Aqui, a gente tinha liderança se chocando. Tinha muito cacique. Imagine uma nordestina, mulher mandar neles, estar na frente deles. Eu enfrentei muita coisa, além de ser sem-terra também era nordestina e mulher. Então, quando eu cheguei aqui foi muito difícil. Fiquei perdida, porque não tinha espaço na verdade para mim, naquela época. Aí o pessoal da CPT nacional entrou em contato com a CPT daqui e disse, a Gorete está aí e ela é uma liderança aqui no estado. E aí como é que ela está? Então, acolham a Gorete aí”.

Questão de gênero no MST


Maria Gorete Meneses Argolo Nunes é uma das precursoras no plantio orgânico / Foto: Igor Sperotto

Foi então que Gorete assumiu trabalhar a questão de gênero junto ao MST pela pastoral. “Então eu conheci praticamente o estado todo, inclusive as aldeias indígenas. Visitei todas. A gente conseguiu reunir mulheres do estado inteiro na organização. Então, a partir daí foi que eu conheci a agricultura orgânica, lá em Torres, com as mulheres que já plantavam orgânico, e como eu tinha dificuldade de compreender a cultura de vocês, até a linguagem, eu não tinha como estar na sala de aula, então eu não assumi a sala de aula quando eu cheguei aqui por cinco anos, até me readaptar, mas fui da primeira equipe de educação daqui da região de Porto Alegre”.

Ela recorda, que a primeira horta orgânica foi feita na escola Nova Sociedade, da qual é uma das fundadoras, e que havia alguma resistência dos camponeses, no início, com a prática. “Não foi fácil assim não, viu, para trabalhar orgânico no assentamento, tinha uma resistência muito grande”.

Gorete recorda um dos estudantes da escola, que hoje é médico, o Dr. Moisés. Ainda criança ele disse, “professora, mas é difícil a gente convencer os pais da gente de plantar orgânico, mas nós vamos conseguir”. E assim foi.

“Primeiro eu e Olair começamos com os orgânicos em família e na horta da escola. Na escola, a gente produzia brócolis, couve, cenoura, beterraba. A cultura agroecológica foi crescendo no assentamento e hoje estamos mostrando para o mundo que é possível e necessário que a gente produza sem veneno. Temos que produzir mais orgânicos e nos alimentarmos com alimento saudável”.

Sem veneno desde sempre

Olair entrou para o movimento nos primórdios, em 1983. Natural de Redentora, de uma família com 11 irmãos em 3,5 hectares de terra perdidas para o banco. “Vivíamos de arredar terras e plantar nas terras dos vizinhos. Qualquer cantinho que sobrava a gente plantava”. Participou do núcleo da Pastoral da Juventude e da Terra que deu origem ao MST, ao lado de nomes que se projetaram como Zecão, Darcy Maskell, Marangão e Adão Pretto. A atuação era região do Alto Uruguai.


Olair Nunes Santos ajudou a organizar o MST nos primeiros anos / Foto: Igor Sperotto

“Quando a gente tava no acampamento da Anonni, a gente já discutia a questão do modelo orgânico. A gente não tinha bem claro ainda, mas eu vivi a minha vida toda dentro do orgânico. Eu nunca trabalhava com produto químico”, contextualiza.

“E aí a gente, chegando aqui, a gente se deparou com a região completamente diferente. Nós éramos da monocultura. Viemos da região da soja, do trigo, do milho, do feijão. E aqui mudou completamente. Nós ficamos dois anos juntos num grupo cooperado de alimentação, animais, implemento, tudo junto, a terra toda junta. E aí quando a gente chegou, em 1988, quando chegou um momento que a gente viu da necessidade de trabalhar o orgânico, já em 1990,  teve um grupo que aceitou, outro que não aceitou, aí nós ficamos num semicoletivo.


Vista aérea das estufas de hortaliças orgânicas / Foto: Igor Sperotto

Um santuário ecológico

Natural de Áurea, na Região de Erechim, Olípio Vodzik, 60 anos conta que entrou para o MST meio por acaso. Após um acidente em um engenho de cana retornou do tratamento e encontrou a situação da família bem complicada.  Quem participava das reuniões, inicialmente era seu pai. Acabou levando um tempo para ganhar a confiança das lideranças. Participou da ocupação da Annoni, de grandes marchas. Na época da ocupação da Itapuí, como era solteiro, aceitou ficar com uma parte que era mais complicada para plantio, onde era a antiga sede da fazenda. Mas como havia muita mata nativa Olair acabou incrementando ainda mais suas terras e transformou o lugar em uma espécie de santuário ecológico.


Olípio Vodzik investiu nos morangos ecológicos / Foto: Igor Sperotto

“Aí no fim tinha algumas canafístulas, uns angicos, uns cedros. Então, a ideia, era quem pegasse esse lote não podia derrubar as árvores. É um santuário aqui, tem mata que não é nativa, mas a maioria é nativa”, explica. “A diversidade é muito grande, tem açoita, guapuruvu chal-chal, pau de canguatá, umas 20 figueiras que nasceram depois que eu me instalei. “E disse: se ninguém quiser eu fico com o lote. E estou aqui até hoje”.

Vodzik se adaptou ao lugar, encontrando formas de produzir sem afetar o ambiente. Foi quando teve a ideia de pesquisar que tipo de produção poderia ser feita em pequenos espaços. “No início eu pensei, vou plantar cana, que cana não precisa muito espaço, e fazer cachaça. Daí, pra mim não precisa muito espaço. E aí no fim foi, comecei, tenho até hoje. Com o tempo entrou o morango ecológico, que tem boa lucratividade”, diz. “Eu fui o primeiro a plantar morango orgânico aqui na Nova Santa Rita. É uma cultura difícil, mas mesmo com preço alto o pessoal quer, tem saída. Principalmente com o diferencial de não ter veneno”

Hoje, Olípio tem três filhos e quatro netas. Um dos filhos é veterinário e trabalha com genética animal. Presta serviços técnicos para assentados. Outro estudou engenharia mecânica e se envolveu na implantação da agroindústria vegetal nos assentamentos, coordenadas pela Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (Cootap) e levou o mais novo (engenheiro agrônomo pela Ufrgs) para ajudar na cooperativa.


Hoje, a paisagem construída pelos moradores é bem diferente de 33 anos atrás / Foto: Igor Sperotto

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Edição: Extra Classe