Rio Grande do Sul

Coluna

Uma carta sobre amor e saúde em 2021

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"bell hooks: obrigada por nos ensinar e ser guia intelectual para tantas/os" - Divulgação
Se amor é ação no mundo, precisamos viver mais conscientes de como pisamos ao caminhar no mundo

Olá querida,

O final de ano de um 2021 longuíssimo chegou: um ano que doeu a existência como não tinha visto antes em minha vida. Sentir o ano que se vai foi uma tarefa brutal. Quando der me conte como foi aí para você. Queria te escrever, e como vem sendo de costume, me saiu uma carta. Como já dizia Gloria Anzaldúa, é com as cartas que conseguimos uma maior intimidade, e intimidade é força que deve ser alimentada com toda nossa intensidade.

Queria te contar um pouco sobre como venho pensando em saúde mental nos tempos em que vivemos (covid-19, pandemia, Estado ultraconservador, acirramento das desigualdades sociais e das violências). Vai te parecer um tanto de utopia, mas eu, psicóloga formada, hoje aproximo saúde mental de um conceito que acabamos por negligenciar em nossas vidaṣ (principalmente no âmbito acadêmico): o amor.

Sim, que falemos de amor para resistir em tempos cruéis! Não o amor dos filmes românticos, não o amor que mata mulheres em números absurdos, que violenta e abusa de crianças, que acirra diferenças de classe, gênero e raça, que fortalece os sistemas de dominação que movimentam o mundo. Falemos do amor, como bell hooks nos ensina: amar como um gesto de responsabilidade com nosso próprio crescimento e com o crescimento das/os outras/os pessoas. A autora, mais do que uma aposta nas relações cotidianas do hoje, parece que cunha um projeto de mundo outro, como se possível fosse uma sociedade amorosa; e o amor é o alimento principal desse projeto, algo que deveríamos aprender e ensinar e viver em nossos corpos como afirmação da vida. Amor, desta forma, é um gesto de recusa à dominação e relações de violência.

E por que aproximo esse conceito do campo da saúde mental? Tu já reparaste em como vivemos cada vez mais medicalizadas/os? Como se a solução para nossos problemas viesse de uma pílula e de uma prescrição médica? Medicalizamos a existência, vivemos sonhos de um futuro falido e de um presente em devastação, nos medicamos para aguentar mais pressão, mais devastação, mais dor e mais dominação, como se as/os únicas/os responsáveis fossemos nós mesmas/os. Se aprendêssemos com bell hooks, teríamos que olhar para o miúdo de nossas relações, para o que a vida nos apresenta, e entender que o amor é gesto aprendido e vivido no calor das relações e envolve cuidado, respeito, verdade, reconhecimento, pertencimento e responsabilidade. Envolve, acima de tudo, autoafirmação, um certo exercício de respeito por si mesma nas relações que nos colocamos. Te desejar saúde mental assim como te desejo uma vida amorosa, é assim, um gesto de afirmação da vida, que em tempos de excesso de dor e morte, precisa ser disputada por todas/os nós.

Venho aprendendo com intelectuais como bell hooks, que não há como desejarmos um projeto de mundo outro, se não mudarmos a nós mesmas/os. Desta forma, venho tentando exercitar por todas relações em que me envolvo o gesto de amor, ou seja, de me responsabilizar por entrar de maneira respeitosa comigo nos encontros que a vida me possibilita, por me responsabilizar pelo crescimento espiritual meu e das outras pessoas envolvidas. Se amor é ação no mundo, um verbo intransitivo, gesto que alimentamos no cotidiano, precisamos viver mais conscientes de como pisamos ao caminhar no mundo, como nos lembra Ailton Krenak. Assim, tendo a pensar que preservar a nossa saúde mental nos tempos contemporâneos, é como se cuidássemos da bolha de sabão que ganha o mundo: um exercício de fragilidade, de consciência da efemeridade de algumas coisas no espaço-tempo que vivemos e de honestidade com o nós e com o mundo.

Cuidarmos da nossa saúde é sentir criticamente o mundo, como nos convida bell hooks. Sentir, é um ato revolucionário em tempos como o que vivemos: fará doer a alma, mas nos deixará mais consciente ao que precisamos e ao que os outros à nossa volta precisam. Assim, encerrando por aqui, te desejo saúde, como uma artesania de afetos e cuidados; desejo que nossas práticas sejam orientadas pelo amor e pela ética do cuidar e que envolvam intensidade, crítica social e um desejo profundo por um mundo mais justo. Com o final do ano se aproximando, faço votos de que em tua vida haja espaço para sonhos, utopias, rebeldia e teimosia, para seguir apostando no amor como morada de uma existência mais inteira.

Um abraço demorado! E me escreva quando puder!

Referências:

Anzaldúa, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. In: Pedrosa, Adriano; Carneiro, Amanda; Mesquita, André (org.). Histórias das mulheres, histórias feministas. São Paulo: MASP, 2019. v. 2, p. 85-94.

hooks, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Editora Elefante, 2021.

Krenak, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

* Bruna Moraes Battistelli - psicóloga, professora, pesquisadora interessada no amor, nas práticas de cuidado e nos feminismos.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko