Rio Grande do Sul

Vida das Mulheres

Menstruação: Vida ou problemática?

Brasileiras de baixa renda sofrem sem respostas e lutam pela dignidade menstrual

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Quando tem doação de absorvente eu uso, senão eu tenho que usar pano porque a minha mãe não tem condição de comprar" - Foto: Arquivo Pessoal Rafaela Domingues

O tema da pobreza menstrual - falta de acesso das mulheres e meninas à compra e ao uso do absorvente, e que também está relacionado a todas as questões de riscos à saúde que podem decorrer do uso de produtos de higiene inadequados à contenção do fluxo menstrual - abrange a vida das pessoas que menstruam de uma forma que muitos nem chegam a considerar. “Eu trabalho com mulheres há muitos anos, sou mulher, tenho uma filha, e eu nunca parei para pensar na possibilidade dessas mulheres e meninas que estão em vulnerabilidade social não terem absorventes ou um local adequado para fazer a sua higiene durante o período menstrual!”, conta a enfermeira obstetra do Hospital Conceição de Porto Alegre, Rafaela Domingues. 

Segundo a Unicef (Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância), em enquete realizada com pessoas que menstruam, 62% afirmaram que já deixaram de ir à escola ou a algum outro lugar de que gostam por causa da menstruação, e 73% sentiram constrangimento nesses ambientes. Apesar dos dados já publicados, em 7 de outubro, o presidente Jair Bolsonaro vetou o PL 4968/19, que já tinha sido aprovado pelo Congresso Nacional. O projeto garantia a distribuição gratuita de absorventes para mulheres de baixa renda. “Tratando-se da questão do veto sobre disponibilizar absorventes gratuitamente, é óbvio que acharam um absurdo, imagina, 500 homens dentro de um Congresso discutindo isso, o que importa esse assunto para eles”, critica a médica ginecologista Anita Lucas de Oliveira. 

Em comparação, no Rio Grande do Norte, único estado brasileiro governado por uma mulher, o tratamento conferido à questão foi outro. A governadora Fátima Bezerra (PT) desenvolveu o “Programa Dignidade Menstrual no Rio Grande do Norte”, publicado e regulamentado no Diário Oficial no dia 23 de novembro de 2021. O projeto consiste na distribuição de absorventes e na promoção de condições de higiene adequadas para meninas, mulheres e pessoas trans que menstruam e estejam em situação de vulnerabilidade social. O investimento será de R$ 1,5 milhão e pretende beneficiar 45 mil pessoas.

Projeto de Estratégia da Saúde Menstrual

Em iniciativa mobilizada para tratar deste tema na reportagem, foram entrevistadas meninas e mulheres moradoras da comunidade do Morro da Cruz, em Porto Alegre. Elas pediram para não serem identificadas, por isso os nomes usados nos relatos a seguir são fictícios. A situação das mulheres e pessoas periféricas que menstruam é de decisões constantes quando se trata do tema menstruação: "Às vezes, não sobra dinheiro pra comprar absorvente. Tenho que escolher absorvente ou leite pra minha filha”, diz Paula. 

Assim como ela, muitas outras sofrem na capital gaúcha. Por isso, motivado pela vontade de ajudar e pela demanda de mulheres parceiras do mandato, o vereador Leonel Radde (PT) protocolou, no dia 22 de dezembro, o “Projeto de Estratégia da Saúde Menstrual”. O PL nº 069/21 foi aprovado na Câmara de Vereadores por 27 votos favoráveis, cinco contrários e uma abstenção. Radde explica que o projeto abarca um tema bem relevante para o seu mandato. "Cada um tem a sua representatividade dentro da construção dos nossos projetos do mandato. É nesse contexto que surge o Projeto de Estratégia da Saúde Menstrual." 

A pauta foi construída em parceria com Júlia Rosa, membro da equipe do mandato e ativa nas políticas públicas, Carla do Gapa, militante feminista, e Evelyn Canizares, militante feminista e das pessoas com deficiência. “As pessoas que menstruam que estiverem cadastradas no sistema da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e em idade fértil terão acesso aos absorventes. O orçamento é uma rubrica que está na Lei Orçamentária do PPA (Programa Plurianual), então fica limitado aquele valor que é destinado à essa política pública, que é cerca de R$ 500 mil”, informa Radde. 

O vereador destaca ainda que, em termos orçamentários e de investimento, para a prefeitura a não distribuição desse bem básico geraria a possibilidade de existir uma gama de complicações. Entre elas, um número considerável de mulheres com doenças decorrentes da falta de produtos adequados, meninas faltando às aulas e funcionárias não indo ao trabalho por conta da menstruação. “Fazer a distribuição é precaver entradas no SUS, em postos de saúde e a ida do Conselho Tutelar às casas para entender as faltas das alunas. É uma política pública que vai se equivaler, no final das contas”, declara.

“Quando tem doação de absorvente eu uso, senão eu tenho que usar pano porque a minha mãe não tem condição de comprar”, diz Alice, que começou a menstruar faz apenas um ano e já sofre as consequências da pobreza menstrual. 


Card de instruções de uso do Tablue / Foto: Arquivo Pessoal Rafaela Domingues

Enfermeira cria projeto Tablue de absorventes sustentáveis

A enfermeira Rafaela Domingues, criadora do Projeto Tablue, conta que tomou a iniciativa de começar o trabalho ao se deparar com a realidade da pobreza menstrual em meio a pesquisas autodidatas. Seu objetivo era produzir absorventes de forma mais sustentável e barata para doar a mulheres e pessoas que menstruam em situação vulnerável. “Eu peguei doações de retalhos de tecido e de TNT, aí fiz o molde, montei alguns absorventes e testei. A minha maior preocupação era que eles segurassem o fluxo menstrual e também que as mulheres pudessem ou jogar fora, ou higienizar os absorventes, se tivessem condições. Vi que segurava o fluxo, então segui em frente”. 

A enfermeira obstétrica relata que quando produziu o primeiro modelo, ela mesma usou para garantir que o produto cumpriria sua funcionalidade, o que de fato aconteceu. “Eu doei mais ou menos 1.350 absorventes de abril pra cá, eles são todos sustentáveis. Porém, eu sei que muitas das mulheres não conseguem higienizá-los, então eu coloco um recadinho com os passos de higienização caso elas consigam. Mas se não conseguirem, podem jogar fora. Não é o melhor para o meio ambiente, mas se fosse um absorvente descartável, elas também teriam que jogar fora”, explica. 

O projeto é chamado de “Tablue” por conta da junção das palavras “tabu”, relacionado ao tabu da menstruação criado pela sociedade e “blue”, azul em inglês e a cor do TNT usado para produzir os absorventes ecológicos para doação.

Menstruação é algo natural e não algo “pecaminoso”

A médica e ginecologista Anita de Oliveira explica que para a mulher/pessoa que menstrua possa se manter saudável durante o período menstrual, basta garantir a simples higiene diária, combinada ao uso de produtos higiênicos corretamente higienizados para conter o fluxo menstrual. Ou seja, “a nossa higiene normal que aprendemos desde crianças é suficiente. Um banho normal em que a mulher tenha o cuidado de limpar entre os lábios vaginais para retirar a secreção já é suficiente”. Ela sublinha que o uso de produtos impróprios no lugar de absorventes, contudo, pode ser perigoso. “A higienização é importante para evitar a contaminação, tanto na vagina como no resto do corpo. Temos que pensar que a vagina é um buraco aberto que leva a outras partes. Leva ao útero, que também é aberto; bactérias que entram pelo útero chegam até o nosso abdômen. Podem provocar graves infecções na região pélvica.”

Entre os principais riscos para a saúde estão o aparecimento de infecções recorrentes, como a contaminação da flora vaginal e da uretra por diversas bactérias. Tais consequências podem ser provocadas, por exemplo, pelo uso de folhas de jornal, algodão, papel higiênico e até mesmo miolo de pão no lugar do absorvente. O motivo é que, além de um maior manuseio, que contamina o produto com as bactérias presentes nas mãos, esses objetos contêm químicos que podem ser prejudiciais quando em contato com a vagina. “No pão, tem farinha, tem produtos químicos nele! Tem produtos químicos no jornal, tem produto químico no papel também”, demarca.

“Eu menstruo sim, mas às vezes não sobra dinheiro pra comprar absorvente”, diz Clara. Esta frase, dita por uma moradora anônima do Morro da Cruz, em Porto Alegre, é um reflexo de que a pobreza menstrual é parte integrante da vida de incontáveis mulheres e pessoas que menstruam ao redor do mundo, afetadas pela baixa renda. “Infelizmente é um problema que é antigo, que vem ao encontro principalmente da população que está em maior situação de vulnerabilidade, que são as mulheres das periferias que vivem essa situação de desigualdade social”, sublinha a militante pela Marcha Mundial das Mulheres, Any Moraes.

Assim, torna-se necessária a compreensão de que “o fenômeno da menstruação, por ser algo meio desconhecido, por essa história de o corpo da mulher ser um pouco misterioso, a gente cria muitos tabus com a menstruação, mas é tudo muito simples! A menstruação é algo que sai de dentro do útero. Preparou-se o útero para gravidez, não aconteceu, aquilo vai embora”, reitera a médica Anita. Isso porque, a menstruação é algo natural e parte integrante da biologia do corpo feminino e não algo “pecaminoso” ou sujo. Apenas quando existir a compreensão social deste fato, será possível alcançar uma cobertura nacionalizada da distribuição de absorventes e garantia de condições básicas de higiene, essencial para todas as mulheres e pessoas que menstruam em idade fértil. Menstruação é vida e é básica.

* Colaboradora da Amigos da Terra Brasil (ATBr)

** Colaboraram com a reportagem a militante pela Marcha Mundial das Mulheres, Any Moraes, a militante feminista da Marcha Mundial das Mulheres e atuante na Aliança Feminismo Popular, Cláudia Prates, e Letícia Paranhos, da ATBr.


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Edição: Katia Marko