Rio Grande do Sul

Memória

Artigo | Até qualquer hora, prum abraço e olho no olho. Até sempre, Elis

Há 40 anos, Elis partiu num rabo de foguete fazendo o Brasil chorar. Juarez Fonseca relembra momentos com a cantora

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Aos 20 anos, Elis Regina revolucionou a MPB - Foto: Juarez Fonseca

O jornalista e crítico musical Juarez Fonseca publicou esta matéria na revista Aplauso em janeiro de 2002, nos 20 anos da morte de Elis Regina, mas poderia ter escrito hoje, dia 19 de janeiro de 2022. Cedeu gentilmente ao Brasil de Fato para marcarmos os 40 anos da partida da grande cantora.


Era agosto de 1974 e eu estava diante dela pela primeira vez. Veio a Porto Alegre com o show que antecedia o lançamento de um de seus melhores discos, aquele que tem Conversando no Bar, Ponta de Areia, Maria Rosa, O Mestre Sala dos Mares, Na Batucada da Vida, Caça à Raposa e Dois Pra Lá, Dois Pra Cá. Naquela época ainda não tinha essa história de os grandes nomes só excursionarem depois de saírem os discos, para promovê-los. Também não era tempo de só um show ou dois, como agora. Eles ficavam quatro, cinco dias, uma semana, no Teatro Leopoldina (hoje Teatro da Ospa). Podia-se conversar com mais calma, como eu começava a fazer, no hotel, no dia seguinte ao da estreia do show.

Houve empatia. Falamos sobre o show e comentei que a música nova de Milton Nascimento e Fernando Brant, que ela estava lançando, me impressionara pela beleza. Era Saudade dos Aviões da Panair (Conversando no Bar). Perguntou se eu queria a letra, pegou uma folha de meu bloco de anotações e a escreveu: “Lá vinha o bonde no sobe e desce ladeira/ E o motorneiro parava a orquestra um minuto/ Para me contar casos da campanha da Itália/ E do tiro que ele não levou/ Levei um susto imenso nas asas da Panair/ Descobri que as coisas mudam/ E que tudo é pequeno nas asas da Panair...”. Elis tinha uma letra muito bonita, clara e segura. Claro que até hoje guardo aquela folha como um troféu.

Enquanto Elis escrevia, cantarolando, eu a olhava e o tempo andava para traz. Para uma época, depois do Clube do Guri, em que eu a ouvia na Rádio Gaúcha, cantando no programa Campeões da Semana Eucalol, uma parada de sucessos com o elenco de cantores e a orquestra da Gaúcha, transmitida ao vivo. Naquele trecho de minha memória ela cantava lindamente a versão de Tonight, de Johnny Mathis. Depois veio a primeira gravação e o primeiro sucesso, Dá Sorte, de Eleu Salvador (ator de novelas da Gaúcha que se revelava como compositor). Depois Rio, São Paulo, os festivais, a TV Record, O Fino da Bossa, aquilo tudo, ela explodindo.


Elis Regina em 1965/1966 No Fino da Bossa / Reprodução

O teipe d’O Fino da Bossa era apresentado pelo Canal 12 nos domingos à noite. Era um horário que eu não trocava por nada, na casa da primeira namorada. Adorava Elis, tinha orgulho dela. E agora ela estava ali, na minha frente, falante, feliz com o disco especial que lançara naquele ano, Elis & Tom, com o novo show, com César, com a vida. Conversamos durante quase duas horas, com e sem o gravador ligado. Elis usava cabelos encaracolados e ria por qualquer coisa. Quis saber minha opinião sobre determinada parte do show, que achava poder melhorar, talvez trocando músicas de posição. A entrevista saiu numa página central de sábado em Zero Hora, título em letras enormes: “Eu tô legal”.

Novos encontros em 1976 e em 1977. Em 77 ela voltou para a estreia nacional em Porto Alegre de Transversal do Tempo, show que carregava a pesada responsabilidade de suceder o megassucesso Falso Brilhante, de 75/76, apresentado apenas em São Paulo e Rio. Participei de perto. No dia do primeiro ensaio geral, no Teatro Leopoldina, ela me ligou: “Vem pra cá”. Pediu palpites e avisou que eu passava a integrar informalmente a equipe de produção, encarregado de informar onde-conseguir-tal-e-tal-coisa-na-cidade. Para completar, a revista Veja me encomendou um comentário do show, publicado em página inteira, assinado, fato importante para um repórter da província.

Transversal do Tempo fazia um contraponto ao exuberante e meio autobiográfico Falso Brilhante. Elis dava um giro. A mesma Fascinação que encerrava Falso Brilhante em clima de apoteose, ironicamente abria o novo show. Transversal era sobre as “querelas do Brasil”, político, pesado em Deus lhe Pague, Sinal Fechado, O Rancho da Goiabada, Construção, Cão sem Dono. Ela cantava Romaria vestida de Nossa Senhora e Saudosa Maloca vestida de operário. Ficou duas semanas em cartaz no Leopoldina e fez as pazes definitivas com a cidade: frequentou restaurantes, foi a festas, passeou de moto com César, deu muitas entrevistas. No fim, aeroporto, “obrigada por tudo, beijo, vamos ver se nos escrevemos”.

Não nos escrevemos.

Quando voltou, em 1979, com o show de lançamento do disco Essa Mulher, primeiro pela gravadora Warner, Elis estava insatisfeita. Os homens da gravadora mexeram em seus cabelos, colocaram nela umas roupas de lady, uns batons que normalmente não usava. E ela mostrava nas entrelinhas uma reação crítica a esse modelito. Também não concordava com o volume de trabalho exigido pela Warner. Queixava-se de estar vivendo em corredores – de aeroportos, de aviões, de ônibus, de hotéis, de teatros. Era outubro. Em julho ela se apresentara em Bruxelas, em Montreux e em Tóquio. Em agosto, começara a turnê de Essa Mulher, que só terminaria em dezembro, um show atrás do outro.

No apartamento do Hotel Plaza eu a esperava arrumar-se para descermos ao saguão quando o telefone tocou. Era a babá de seus filhos. Ela atendeu já com lágrimas nos olhos. “Como é que tá o João? Mais calmo? E o Pedro, tá comendo direito? E aquele negócio na cabeça dele, o que que é? E a minha filha? Ah, meu Deus, tanto tempo para ter uma filha e não poder ficar perto dela... Olha, segunda-feira a gente está aí. Pra jantar.” César, numa mesa perto da janela, levantou os olhos das palavras cruzadas e comentou que a barra estava mesmo pesada por causa de tanta estrada e as saudades de casa.

Descemos eu e Elis, conversamos sobre essas histórias, sobre filhos e sobre a questão da gravadora, fizemos a entrevista. Não foi uma conversa leve, claro. Lembrei da frase usada como título da entrevista de cinco anos antes. Ela emendou: “Se em 74 eu disse ‘tô legal’, em 79 digo ‘não tô legal’. Tô carente pra burro”.  A frase “Não tô legal”, seria o título da nova matéria. Nos despedimos, Elis sublinhou o tchau repetindo a antiga intenção, agora acrescida de uma interjeição: “Vamos ver se nos escrevemos, porra!”. Ela gostava de escrever e receber cartas. Mas cadê tempo? De novo não nos escrevemos. E o que viria a seguir não mudaria muito os tons dessa barra. Pelo contrário, os acentuaria.

Em setembro de 1981 estávamos mais uma vez frente a frente. Eu e outros. Coletiva no Hotel Embaixador para promover o show Trem Azul, primeiro dela no Gigantinho, novos tempos de uma apresentação só em grandes lugares, pressa, fugaz contato dos artistas com o público, números falando cada vez mais alto. Mas essa é outra história. A entrevista foi chata e burocrática como todas as coletivas. Fiz poucas perguntas, pois uma repórter pautada pela redação insistia em misturar banalidades tipo revista Amiga com política do tipo estudantil. Elis fez força para parecer simpática nas respostas, nem sempre conseguindo.

Encerrado o “expediente”, consultou o relógio e me convidou para subir ao apartamento. Estava para chegar seu novo namorado. Parceiro em dois filhos e grandes momentos musicais, César não havia mais. Agora havia Samuel, um advogado. Subimos. Depois de criticar entrevistas coletivas e reclamar das perguntas que os repórteres faziam, disse que já me conhecia bem e preferia conversar comigo sozinha. Liguei o gravador. E ela não foi nada light, despejando uma pilha de problemas. Estava mergulhada até o pescoço em pendengas com gravadoras: a Odeon exigia um disco atrasado por contrato, estava em litígio judicial com a Warner e tinha assinado com a Som Livre. Ronha braba a atazanar sua paciência – que, aliás, nunca foi das maiores.

Chega Samuel. Não sem uma ponta de ciúme, confesso, eu o examino: careca, de terno e gravata, silencioso, achei que não combinava com ela. Ele senta e fica ouvindo. E Elis: “Estou de saco muito cheio. De música e de muitas outras coisas. Já dei inclusive uma parada grande, de seis meses, embora ache que parar não seja solução para crise nenhuma. A solução é arregaçar as mangas e ir em frente. Mas o negócio é que estou cansada de buscar e não encontrar. Quero cantar coisas novas e está tudo muito velho. Às vezes acho que os compositores não se deram conta de que muitas coisas se modificaram nos últimos tempos. Ninguém fala do que está acontecendo no Brasil”.

Só para lembrar, 1981 foi o ano do atentado à bomba no Riocentro, sublinhando os estertores da ditadura. O que está acontecendo?, provoco. “Em 79, quando sai para fazer uma maratona de cinco meses com o show Essa Mulher, deu para ver a grande diferença entre o Brasil que eu imaginava e o Brasil que existe realmente. Eu imaginava o que tinha aprendido na escola, e de repente me senti com a sensação de quem está sentada em cima de um barril de pólvora. A gente que tem sensibilidade um pouco mais aguçada sente o que pode acontecer, o que nos espera. O descenso econômico, o empobrecimento, a miséria que se abateu sobre o país mais cedo ou mais tarde pode dar uma catástrofe.”

Sim, eu já conhecia razoavelmente bem Elis para entender seus altos e baixos. Dependendo do momento, ela podia estar eufórica, feliz, terna, otimista; ou estar amarga, irritada, agressiva, sem esperanças. Eram características que às vezes oscilavam entre períodos mais ou menos longos, e às vezes entre um dia e outro. Por isso, as pessoas que não a conheciam bem dividiam-se entre as que a consideravam antipática e as que eram conquistadas por ela. As que a conheciam sabiam que não havia contradição, que essa estável instabilidade era uma característica de seu temperamento e faziam a unidade viva da pessoa, da artista, da cidadã.

Mas naquele dia ela conseguiu me surpreender. Me detenho um pouco nesse dia, que seria o último, porque imagino ter sido esta a mais contundente entrevista dada por Elis. Tanto, que o editor da Revista ZH preferiu não publicá-la. Disse que pareciam declarações de uma pessoa drogada. Barra demais para um caderno dominical. Ofereci um resumo ao CooJornal, que chamou o texto na capa: “Dramas de Elis”. O título interno foi “A face oculta de Elis Regina”. Não sei se ela já estava usando cocaína e nem isso me passou pela cabeça enquanto conversávamos. Depois, no desenlace, fiquei matutando sobre a impressão do editor da Revista ZH. Ele estaria certo? Não importa.

Naquele dia, então, Elis me impressionou com sua ênfase. Pedi que explicitasse mais o porquê da insatisfação. “Eu estava me sentindo um pouco sem alternativas. Mas acho melhor deixar pra lá, porque senão vou ter que botar quatro velas aqui, fazer um velório, e não tô a fim. Isso começou faz tempo, e as coisas estão tão interligadas que nem vale a pena a gente falar... Olha, depois de Saudade do Brasil foi só uma arruação, essa coisa arrastada, cheia de picuinhas. Em março eu estava firmemente decidida a abrir um restaurante e parar de cantar profissionalmente. Um restaurante não, um bar, pros amigos tocarem e de vez enquanto eu ainda cantar. Mas parar com aquela merda, porque eu não aguentava mais.”


Elis Regina partiu em 19 de janeiro de 1982, aos 36 anos, deixando saudades e um gostinho de quero mais / Reprodução

Parar de cantar? Abrir um bar?

“Às vezes a gente tem ideias malucas, mas a gente não é louco. Eu sou louca de parar de cantar? Eu morro! Mas juro que pensei nisso, porque não queria mais ouvir falar aquelas histórias todas. Alguém dizia 'músico' e eu ficava com erisipela, toda empipocada.... Música, gravar, televisão, disco, arghh!; eu entrava em pânico e me fechava no quarto. Era uma crise braba, séria, pesadona. De me passar pela cabeça a ideia de suicídio e tudo, coisa que eu nunca havia pensado na vida. Felizmente hoje já estou legal, mas o trabalho de desobstrução foi lento. Quando eu puder respirar mais livremente, vou me apaixonar pela música de novo.”

No sábado 19 de setembro, dia do show no Gigantinho, Elis parecia outra pessoa. Riu muito à tarde, contou e lembrou histórias, passeou pela cidade. À noite, deu ao público que não lotava o Gigantinho uma apresentação impecável, ágil, renovada, quente e afetiva. Calçava botas e a saia era uma estilização do xiripá gaúcho. Nos camarins, depois, estava alegre, beijando e abraçando as pessoas, querendo saber o que tinham achado. Levei minha filha Lis, de cinco anos, para conhecê-la. Eu estava chateado pelo pouco público, umas cinco mil pessoas, pequeno para o ginásio. Ela nem falou disso. Pegou no colo, estalou um beijo na bochecha de Lis e me pediu desculpas pelo “baixo astral” da entrevista. “Faremos outras melhores”, prometeu.

Daí chega à redação de Zero Hora uma carta para mim, com data de 21 de setembro, postada na agência dos Correios da Rua Haddock Lobo, em São Paulo. Começava assim: “Gostei muito de ter te reencontrado. Pode crer! Achei tua filha linda. E sugiro um acordo entre famílias: guarde-a para Pedro. Rapaz simpático, louro, gente fina e com bom dote. A mãe garante! E deverá ser bom de cama, suponho. Tem bom ‘instrumental’, é cheio de doçura e meiguice e gosta de um beijo na orelha...”.

(Em 1997 mostrei a carta a Pedro Mariano, que lançava seu primeiro disco. Ele achou graça, mas não mostrou interesse em saber como era Lis.)

Por coincidência, em 19 de janeiro de 1982 eu e minha filha estávamos em Garuva, cidadezinha do nordeste de Santa Catarina. Passávamos uns dias de férias na casa do padrinho dela, Jaime. Na manhã do dia 19 fomos fazer compras em Joinville, meia hora de distância. Caminhando, vislumbrei no outro lado da rua, numa banca de revistas, Elis Regina na capa da Manchete. Estranhei, pois a Manchete normalmente não daria capa a Elis, num momento em que não havia nada de sensacional acontecendo com ela. Mas de longe eu vira mal, não era ela: era Sílvia, a brasileira que se tornara rainha da Suécia. Sabe-se lá por que meus olhos a viram.

De volta à casa, fui para o banho. Mal me ensaboava, Jaime bate na porta. “O Jornal Nacional está noticiando a morte da Elis Regina”, disse, sobressaltado. Só acreditei vendo na TV as filas diante do caixão no palco do teatro. Não liguei para Zero Hora, me senti bloqueado para escrever qualquer coisa. A morte de Elis me acentuou velhas questões íntimas sobre as propaladas objetividade e imparcialidade que o jornalista deve ter. Onde começa e onde termina cada uma? Em muitos casos, penso que o jornalista pode, ou deve, ser parcial e subjetivo. No caso de Elis, nem isso consegui ser. Não corri à redação para fazer o “caderno especial”.

Para falar a verdade, ainda não me recuperei daquela morte. No início, passei um tempão sem ouvir discos de Elis. Vamos dizer que tenha me sentido traído por morte tão precoce, aos 36 anos. Cada vez que a ouço dar uma gargalhada, como nos discos do programa O Fino da Bossa, no qual, aos 20 anos, ela revolucionou a MPB, penso nisso. Cada vez que a ouço cantar Atrás da Porta, Retrato em Branco e Preto, Águas de Março, As Curvas da Estrada de Santos, O Bêbado e a Equilibrista, Conversando no Bar (Saudades dos Aviões da Panair), Maria Rosa, Como Nossos Pais, Tatuagem, Gracias a La Vida, as melhores interpretações que essas (e dezenas de outras) músicas já tiveram, penso nisso.

Diziam que ela não gostava da bossa nova. Ora... Malharam porque malhara o tropicalismo. Ora... E que criticara Roberto Carlos e depois o gravara. Ora... Quanto tempo se perdeu acentuando suas contradições, em vez de acentuar que era genial exatamente por ser contraditória, inconstante, inquieta, inconformista, iconoclasta, mutante, e que por tudo isso, mais aquela voz, e o bom-gosto, e a atitude, nunca houve outra igual. O jornalista Zuza Homem de Mello, que era técnico de som n’O Fino da Bossa, diz que durante os ensaios, na tarde da estreia d’O Fino da Bossa, 17 de maio de 1965, resolveu que iria gravar o programa e guardar as fitas.

“Tive o pressentimento de que algo histórico estava começando a acontecer na nossa música”, lembra Zuza. Quando a ouviu ao lado de mestres como Caymmi, Adoniran, Ciro Monteiro, Ataulfo Alves, entrevistando-os e cantando com eles como se fosse a coisa mais natural do mundo para uma garota de 20 anos, e recém-chegada do Rio Grande do Sul, Zuza ficou tão impressionado que só encontrou uma comparação: “Pensei em quando assisti ao surgimento de Pelé”. Depois de Pelé surgiu outro sequer parecido? Pois é. Aos 20 anos Elis já era a maior cantora brasileira de todos os tempos. E ficaria ainda melhor.

Sobre sua característica inquieta e mutante, fiquei agora olhando as fotos dela em várias épocas e me dei conta de que isso se manifestava também fisicamente. Em cada disco, em cada fase, um tipo de cabelo. Longo, curto, curtíssimo, liso, ondulado, cacheado... E cada corte lhe caía bem. Comparando com Gal e Bethânia, só de brincadeira: você lembra que tenham usado outro corte de cabelo diferente do que usam hoje? Tá certo, no primeiro disco, Domingo, aquele com Caetano, o cabelo de Gal estava curto. Mas não é curioso isso?

E a gargalhada de Elis, o que me dizem? Ela entrevistando Adoniran Barbosa n’O Fino. Ele conta aquelas histórias e ela morre de rir. Ele anuncia que vai cantar a música Um Samba no Bexiga. Ela pergunta: “O que é Bexiga?”. Risadas gerais no auditório. Ela justifica: “Eu não sou daqui, tenho direito de querer saber”. Claro, chegara a São Paulo dias antes, depois de um ano de “escala” no Rio, onde era considerada meio estrangeira. “O gaúcho é menos dotado de escudos”, comentou, bem mais tarde, em Porto Alegre. “Somos mais sérios e a própria paisagem, a amplidão dos horizontes, ajuda. Nossas frases são mais secas, mais incisivas. Eu tive muitas dificuldades por ser daqui. Muitas vezes não fui bem compreendida.”  

Na última entrevista, ela me disse que sonhava com umas férias viajando de trailer pelo Pampa. “Quero ver uns buracos por onde andei cantando algumas vezes na minha vida e dos quais tenho imagens guardadas da cabeça. Então queria conferir. Tomara que não tenham mexido muito nesses lugares, mas é provável que eles também tenham dançado.” Que lugares? “Ah, alguns, tipo assim Guaporé, Bento Gonçalves, uns muros de pedras empilhadas, umas águas que passavam no meio da relva, essas coisas. Eu gosto do Rio Grande do Sul, embora aqui também tenha muita coisa de que não gosto. Não gostaria de ter nascido em Porto Alegre, por exemplo; gostaria de ter nascido no Interior.”

Mas a viagem foi outra, exatamente quatro meses depois do último show em Porto Alegre. E volta e meia eu releio a carta que ela me mandou. Continuava: “Vê se a gente encontra um espaço pra se escrever ou telefonar. Vamos parar com essa besteira que o país é imenso, que quase sempre estamos ocupados e que bom mesmo é um canto silencioso, alguns ‘livros, discos e nada mais...’. O ser humano nasceu pra tribo, pra troca, pra convivência, pruns abraços, pruns carinhos e pra gostosura de estar sempre no meio de gente semelhante e/ou amiga. O resto é mentira inventada pelo capitalista pra forçar isolamento, concentração no trabalho e abstração do prazer de viver a vida plena e usufruindo de todos os direitos e regalias que se equivalem às obrigações. Vamos brincar de pensar que somos só nós, míseros e distantes companheiros de trincheira (pensamentos + gostos), que vamos romper este viciado e vicioso círculo. Até qualquer hora, prum abraço e olho no olho. Até sempre. Elis.”

E eu não respondi à carta. Tive quatro meses para fazer isso e não fiz.

* Jornalista e crítico musical

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko