Rio Grande do Sul

Visibilidade Trans

“As vidas Trans precisam ser humanizadas, reconhecidas socialmente”, afirma Thales Avila

No mês da visibilidade Trans, o Brasil de Fato RS conversou com o ativista e integrante do Coletivo Homens Trans em Ação

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"O que me fortalece hoje é ter um pilar de irmãos e irmãs Trans e travestis, com quem posso construir e compartilhar tanto projetos de vida quanto de militância" - Foto: Arquivo Pessoal

“Um corpo Trans não é invisível, é um corpo invisibilizado. Quando este corpo aparece, a violência também se faz presente”, destaca o Dossiê Assassinatos e violências contra pessoas Trans em 2021, elaborado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), e lançado neste sábado, 29 de janeiro, Dia Nacional da Visibilidade Trans no Brasil. 

O Brasil segue sendo o país mais perigoso para pessoas Trans no mundo, responsável por 33% das mortes em escala global. Entre outubro de 2020 a setembro de 2021, a cada 10 assassinatos de pessoas trans no mundo, quatro ocorreram no Brasil. Ao todo o país contabilizou 125 mortes de travestis, homens e mulheres Trans por conta da sua identidade de gênero. Os dados foram divulgados no dia 20 de novembro de 2021, pela equipe do projeto TvT– Transrespect versus Transphobia World Wilde. México e Estados Unidos aparecem em segundo e terceiro lugar, com 65 e 53 respectivamente. 

O levantamento da Antra revela que no ano de 2021 foram registrados pelo menos 140 assassinatos de pessoas Trans, sendo 135 travestis e mulheres transexuais, e cinco casos de homens Trans e pessoas transmasculinas. Segundo a entidade, os números deixam claro que a motivação, assim como a própria escolha da vítima, tem relação direta com a identidade de gênero (feminina) expressa pelas vítimas, que representam 96% dos casos. Além disso, 81% das mortes foram de pessoas negras. O Rio Grande do Sul aparece como o 12º estado em assassinatos, São Paulo aparece em primeiro. 

Para além da violência, dos assassinatos, a população trans é marcada também na exclusão do mundo do trabalho formal. De acordo com um levantamento da Antra, 90% desta população Trans têm na prostituição sua fonte de renda e possibilidade de subsistência. 

Com intuito de amenizar um pouco essa realidade, em dezembro passado, o governo do RS aprovou a reserva de vagas para as pessoas trans e indígenas em concursos públicos, tornando-se um dos primeiros estados no país, se não o primeiro a fazer tal ação. O IPE Prev realizará o primeiro concurso público do estado este ano com a garantia das reservas. Além disso, também em dezembro, a Câmara Municipal de Porto Alegre aprovou a indicação ao governo municipal, de autoria dos vereadores Leonel Radde (PT) e Daiana Santos (PCdoB), para implementação, por meio de projeto de lei do Executivo, do Programa Transcidadania em Porto Alegre.

No Dia da Visibilidade Trans, o Brasil de Fato RS conversou com o ativista Thales Avila, homem trans, sobre a sua história, trajetória e contexto da população trans no estado. Nascido em uma cidade próxima à Capital, Thales fez sua transição ao se mudar para Porto Alegre, onde também iniciou seu ativismo. 

“Quando falamos em (in)visibilidade de trans/travestis, para mim o ponto essencial esta na necessidade de que as vidas trans/travestis sejam humanizadas, reconhecidas socialmente enquanto filhas(os), trabalhadoras(es), funcionárias públicas, estudantes e afins”, ressalta. 

Abaixo a entrevista completa

Brasil de Fato RS - Para começar queremos conhecer um pouco da tua vida, história e trajetória.

Thales Avila - Sou Thales, um homem Trans, filho, irmão, neto, amigo, namorado, ativista, graduando em Fisioterapia, estagiário. Tenho 28 anos e há quem julgue importante, sou geminiano (não entendo sobre signos) (risadas). Bom, minha trajetória é atravessada por algumas intersecções, uma delas é ser um homem trans. 

Mas, vamos do início com a clássica pergunta “Quando você “se descobriu” trans?” a minha resposta é: eu nasci trans. Tenho muitas lembranças de brincadeiras, regras, e inúmeros padrões sociais opressores que só hoje eu sei nomear, mas quando criança eu já sabia que o “normal cis” não me comportava. 

Eu cresci trans em uma cidade com cerca de 20 mil habitantes, próximo a Porto Alegre. Vim trans morar na Capital há cerca de 6 anos, desde que comecei a cursar Fisioterapia na UFRGS em 2016. A faculdade foi um marco para mim, porque a partir dela tive muitas experiências fundamentais para minha trajetória, como foi a Ocupação do campus ESEFID (contra a PEC da morte), o espaço empoderador para o início da minha transição corporal, visto que a social eu já havia iniciado há mais tempo. 

A partir da indicação de uma colega na universidade, no ano seguinte, conheci e fui acolhido no HTA (coletivo Homens Trans em Ação - RS) onde pela primeira vez pude compartilhar um local com outros homens e meninos trans, até então inédito pra mim.

Acredito que foi pelo meio acadêmico que iniciei na militância, na busca de encaixar a minha futura profissão dentro dos meus sentidos, principalmente após o anúncio da minha transição que ocasionou várias mudanças na minha vida, na minha socialização, nas relações, no meu autocuidado, nas reflexões e sobre as novas formas de ser discriminado. 

Não foi ao acaso que logo no início da minha apresentação citei pontos importantes de aspectos que me constituem para além e também do fato de eu ser um homem trans, pois quando falamos em (in)visibilidade de trans/travestis, para mim o ponto essencial esta na necessidade de que as vidas trans/travestis sejam humanizadas, reconhecidas socialmente enquanto filhas(os), trabalhadoras(es), funcionárias públicas, estudantes e afins. 

Deveríamos poder alcançar, com o mínimo de dignidade, novos locais pra além dos cenários de vulnerabilidade, cujas mulheres e homens trans vivem atualmente

Ser Trans e ocupar locais é muito solitário, muito dolorido, seja no mercado de trabalho, na escola ou universidade, por vezes em casa. O que me fortalece hoje é ter um pilar de irmãos e irmãs trans e travestis, com quem posso construir e compartilhar tanto projetos de vida quanto de militância, inclusive organizamos um coletivo juntes, chamado Coletivo Transfeminista, que é um local de resistência e de família. Eles me motivam a seguir, me ensinam a ressignificar tristeza e revoltas provocadas pela transfobia.  


"Tenho muitas lembranças de brincadeiras, regras, e inúmeros padrões sociais opressores que só hoje eu sei nomear, mas quando criança eu já sabia que o “normal cis” não me comportava" / Foto: Arquivo Pessoal

BdFRS - O Brasil segue como o país que mais mata pessoas trans no mundo. Em 2020, foram 175 travestis e mulheres transexuais assassinadas. Como homem Trans, tu chegaste a sofrer algum caso de violência física, ou outro tipo de violência? Ou preconceito?

Thales - Violência física, até então, felizmente, eu nunca sofri. No entanto, violências verbais, institucionais, os olhares repulsivos infelizmente estão no meu dia-a-dia.   

BdFRS - Na tua avaliação ao que se deve essa situação e o que precisaria ser feito para que esse contexto fosse modificado?

Thales - Estamos falando de situações de transfobia estrutural que são reproduzidas socialmente e que também estão presentes em instituições formais como escolas e trabalho, assim como nos sistemas de informações que em muitos casos não possibilitam o uso do nome social. Na falta de estruturas públicas para o acolhimento de pessoas trans em situação de vulnerabilidade, no déficit de dados sobre perfil sociodemográfico da população, enfim. São muitos pontos de trabalho só nos eixos de saúde, educação e segurança, por exemplo. 

Acredito que o combate aos processos de transfobia necessita da criação de políticas públicas que visem a garantia do acesso, a permanência segura e não violenta aos espaços de ensino, serviços de saúde, aos locais públicos e privados de lazer, a rua, a postos de trabalho formal e afins. Também é necessário que se capacite os profissionais de saúde, educação e gestoras(es), dos níveis administrativos, técnicos e assistenciais, sobre as temáticas transversais de identidades de gênero, de sexualidade e do racismo institucional com o objetivo de combater a invisibilidade das nossas demandas para que ciclicamente consolidem-se as ações em prol da humanização da população Trans e Travesti.

Infelizmente, em muitos locais temos que parecer como uma pessoa cisgênero e performar a heteronormatividade para que sejamos aceitos, e isso não faz sentido

BdFRS - Gostaria que falasse sobre o Coletivo Homens Trans em Ação. 

Thales - O Homens Trans em Ação RS é um coletivo de Homens Trans, nascido em 2016, que tem como objetivo exercer, dentro do possível, uma rede de apoio a homens trans, seja para tirar dúvidas a respeito de aspectos relacionados a transição, para prestar acolhimento, pautar demandas, ser um espaço para troca de experiências e acho que o principal é nos vermos (no sentido existencial) sabermos que existem pessoas que também enfrentam situações semelhantes a sua e ter um local para poder compartilhar cumplicidades, isso é algo que eu considero o mais importante. 

Acho que o coletivo tenta suprir uma lacuna social de invisibilidade que os preconceitos e discriminação nos impõe, deixando que a gente não se veja, não tenha referência.

Para que se consiga de fato a inserção no mercado de trabalho é imprescindível que se conscientize culturalmente sobre o combate a transfobia nos ambientes aos quais vamos ocupar

BdFRS - O governo do estado aprovou em dezembro do ano passado a reserva de vagas para as pessoas trans e indígenas. O IPE Prev realizará o primeiro concurso público do estado a contemplar. Gostaria que comentasse a importância, significado que isso traz?

Thales - Esta conquista tem importância histórica. É um passo muito significativo para o reconhecimento de discriminações e preconceitos transversais, cujo tanto a população Trans quanto os povos indígenas vivenciam, dentre eles a invisibilidade e seus agravos que nos deixam, por vezes, à margem dos acessos de direitos básicos. 

Em se tratando das pessoas Trans e/ou travestis é a criação de um espaço para o combate a transfobia estrutural e seus inúmeros obstáculos violentos à nossa população como a evasão das escolas, rejeição familiar, transfobia institucional, violências físicas, verbais dentre outras tantas formas de opressão que vivenciamos no dia-a-dia e que distorcem negativamente nossas perspectivas de futuro. 

É uma política pública de esperança em um futuro com mais representações Trans e Travestis em espaços públicos de gestão, de formação profissional, com poder de voz e espaço para pautar e auxiliar na criação de outras ações e políticas que contemplem as demandas da nossa população. 

BdFRS - Como tu analisa o mercado de trabalho das pessoas Trans no estado? O que precisa avançar quando se trata do mercado de trabalho?

Thales -  Acredito que temos muito a avançar ainda, principalmente na garantia de que a nossa população consiga alcançar vagas de empregos formal. Segundo o Dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra, 2021) cerca de apenas 4% das mulheres Trans e ou Travestis no país têm um trabalho formal, são sobre esses números e realidades que precisamos conversar. 

Não basta conseguirmos uma vaga, precisamos de segurança e dignidade para permanecer nela, sem que nossas identidades e subjetividades sejam desrespeitadas

Quando olhamos para o contexto, muitas pessoas Trans não conseguem o emprego por conta da transfobia. Nesse sentido o Estado carece de incentivos que auxiliem na qualificação e na entrada da nossa população no mercado de trabalho de forma integral. Não basta conseguirmos uma vaga, precisamos de segurança e dignidade para permanecer nela, sem que nossas identidades e subjetividades sejam desrespeitadas. 

Para que se consiga de fato a inserção no mercado de trabalho é imprescindível que se conscientize culturalmente sobre o combate a transfobia nos ambiente aos quais vamos ocupar. Para que não estejamos expostos compulsoriamente a microviolências de colegas, ou mesmo inseguranças relacionadas a se vamos ou não conseguir usar o banheiro sem qualquer impeditivo ou julgamento alheio. 

BDFRS - Já enfrentou dificuldades para ingressar no mercado de trabalho por conta de ser Trans? 

Thales - Sim. E muitas vezes a dificuldade vem antes mesmo de concorrer à vaga, em todo preparo emocional sobre a possibilidade de passar por alguma transfobia, esse receio sempre existe, e ele não vem do nada, é resultado de experiências sociais que já tive e acredito que de alguma forma todas as pessoas vivem. 

Infelizmente, em muitos locais temos que parecer como uma pessoa cisgênero e performar a heteronormatividade para que sejamos aceitos, e isso não faz sentido, afinal, se tem algo que eu não sou é cis. 

BdFRS - Estamos no mês da visibilidade das pessoas Trans, como tu descreverias a realidade no estado?

Thales - O que temos de panorama atualmente no estado são vários pontos de invisibilidade, ainda somos poucos em muitos lugares e isso é um sintoma da transfobia estrutural. Quando procuramos exemplos de outras pessoas Trans em cargos, profissões e não encontramos pontos de referência, também fica mais difícil nos vermos existindo em outros lugares, afinal quais são os nossos maiores números? As violências? Pois é, isso adoece!

Ainda temos dificuldade em acessar serviços de saúde, de permanecer nas instituições de ensino, de sermos acolhidos pelas(os) familiares e são muitos os tristes relatos de pessoas Trans e/ou Travestis que por conta de sua identidade de gênero estão em situação de rua ou a beira de serem colocados para fora de casa. A realidade é de luta!


:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato RS no seu Whatsapp ::

SEJA UM AMIGO DO BRASIL DE FATO RS

Você já percebeu que o Brasil de Fato RS disponibiliza todas as notícias gratuitamente? Não cobramos nenhum tipo de assinatura de nossos leitores, pois compreendemos que a democratização dos meios de comunicação é fundamental para uma sociedade mais justa.

Precisamos do seu apoio para seguir adiante com o debate de ideias, clique aqui e contribua.

Edição: Katia Marko