Rio Grande do Sul

Coluna

Hora de dizer não

Imagem de perfil do Colunistaesd
Reunião inédita envolveu mais de 600 lideranças de quatro estados para buscar soluções para a estiagem - Divulgação
 Ir às ruas e às estradas, dizendo não. Não mais, isso não, não senhor, nunca mais

Vivemos um momento estranho, onde tudo merece desconfiança porque qualquer notícia pode ser falsa e qualquer ação pode estar sendo dirigida por crenças maldosas ou sem fundamento.

Embora se perceba com facilidade que as principais vítimas deste período são os direitos humanos e a democracia, o certo é que afundamos junto. E o triste é que saltam aos olhos a degradação intelectual, ética e moral, bem como as motivações daqueles que tiram ou pensam tirar proveito do caos.

Está ocorrendo uma espécie de consolidação de um mundo paralelo à vida real. E neste, em meio a fantasias e práticas safadas, que mesclam ignorância e intencionalidades políticas que nos roubam o futuro, avançamos dizendo sim, sim senhor.

E vale tudo, contra os humildes.

No extremo da maluquice individual temos o caso daquela advogada que se apresenta como dona do sol. Apoiada em códigos legais, ela registrou seu domínio em cartório e está disposta a vender “partes” do sol, para pessoas reais. Ela também quer cobrar taxas pelo uso da energia solar, e cogita uma linha de impostos a serem aplicados a todos que dependem daquela esfera de fogo e luz.

No outro extremo, perto da alucinação coletiva, temos o que ocorre com a imagem simbólica de que ocupa a Presidência do Brasil. Não me refiro aqui ao esparramo de comida na encenação do farofeiro popular, aquilo resume a visão estratégica daquela pessoa e sua turma, e não passa disso. Estou querendo destacar as responsabilidades da figura presidencial. Passou a ser natural, entre nós, que um presidente brasileiro de baixo nível faça qualquer coisa. Por isso, não é estranho, embora nos custe muito caro suas mentiras na ONU e suas ofensas à China, parceiro comercial que absorve 32% de nossas exportações. Também não estranhamos que com todo seu ódio aos “esquerdistas” ele anuncie que irá à Rússia de Putin, cliente que não adquire sequer 1% de nossas vendas ao exterior, para ampliar mercados e estimular a dinamização de nossa economia.

Mas chama atenção, isso sim, o pouco caso atribuído pelo presidente e seus assessores à reunião inédita, envolvendo mais de 600 lideranças de quatro estados (RS, SC, PR e MS). No mundo real, agricultores familiares e camponeses responsáveis pelo abastecimento alimentar da nação, deram início, naquele evento, ao que pode vir a ser o renascimento da democracia participativa.

 Aquela atividade aponta uma nova fase para as relações entre os agricultores que produzem 70% do que comemos e este governo que os ignora. O encontro marcou o que parece ser ponto de inflexão, por saturação, de um período de tolerância para com a política das mentiras como estratégia administrativa. Foram pontuadas demandas urgentes, emergenciais, a serem seguidas por políticas estruturantes que, sem pressões, simplesmente não acontecerão.

Entre elas, destacam-se a urgente repactuação das dívidas acumuladas ao longo dos últimos anos de seca, com bônus compatível à realidade das perdas contabilizadas, e acompanhado de créditos emergenciais bem como da disponibilização de milho subsidiado para a manutenção dos animais (em especial no caso crítico dos rebanhos leiteiros), e tudo isso com antecedência ao novo Plano Safra.

Também reclamam programas e mecanismos que permitam a captação e a reserva de água, articulados com medidas de apoio à irrigação e sistemas públicos de seguro de safra, assistência técnica e extensão rural cooperativada.  Anunciaram ainda aprovação da Lei Assis Carvalho (Lei 14275), que por depender de regulamentação por parte de um Ministério da Economia pouco motivado a tal, exigirá mobilizações de massa.

Com vistas disso, e como corolário, foi estabelecido um pacto de ações conjuntas, para obtenção de medidas efetivas que atendam àquelas e outras demandas.

Em resumo, agricultores familiares, camponeses, quilombolas, povos e comunidades tradicionais, cansados de esperar, dizendo sim senhor, irão para as estradas em 2022.

Se estes fatos são estimulantes, na medida que revelam conscientização de forças produtivas até aqui desprezadas e apáticas, também preocupam posto que anunciam possível agudização de conflitos perigosos neste momento em que o Estado não trabalha para todos.

Vejam que no discurso presidencial ao Congresso Nacional, dia 2 de fevereiro de 2022, houve claro destaque ao poder dos agricultores armados que compõem a base do agronegócio. O presidente bem sabe que nos seus três anos de governo a venda de armas regulares, com registro, triplicou em relação ao triênio anterior. Sabe também que o contrabando e o comércio irregular cresceram e que as apreensões, pela polícia, caíram 62% (de 8.216 em 2018 para menos de 3 mil este ano) de forma que, em estimativa conservadora, é possível afirmar que fechamos 2021 com mais de 2,2 milhões de armas em arsenais particulares.

Não estão entre os pobres, porque sem dinheiro para comprar feijão, teriam dificuldade para atender ao estímulo do presidente. Ele sabe disso. Em suas palavras: “Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado. Eu sei que custa caro. Aí tem um idiota: Ah, tem que comprar é feijão. Cara, se você não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar”.

E é neste contexto onde crescem a discriminação e a maldade desenfreada, que pode eclodir um choque fraticida, entre brasileiros que precisam de um governo para todos e a incivilidade armada que controla o pais das fantasias.

Não se enganem, já começou.

Nesta semana, no Norte, espaço de conflitos relacionados ao meio ambiente, toda uma família de agricultores ambientalistas foi morta a tiros, e um helicóptero do IBAMA foi incendiado.

No Rio de Janeiro, espaço de conflitos urbanos, um trabalhador acolhido como refugiado foi morto a pauladas, como se fosse um animal.

Pretos, todos eles. Zé do Lago, sua esposa Márcia e sua filha Joene, no Pará, e o Moïse, no Rio, se assemelhavam neste sentido à maioria dos brasileiros. Eles são, na simbologia presidencial, como quilombolas assim descritos, por Bolsonaro, em reunião no Clube Hebraica do Rio de Janeiro: “O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriar eles servem mais”.

Racismo, maldade, ignorância e intencionalidade política voltados à consolidação de uma realidade paralela que tende a nos levar ao caos. Afinal, o que mais pode acontecer neste pais onde o número de excluídos cresce de forma acelerada, em áreas rurais e urbanas? Desde o golpe de 2016, apenas na cidade de São Paulo os sem teto, para não dizer sem tudo que humaniza (31.884 pessoas em 2021) mais do que duplicaram em número, relativamente a 2015 (quando eram 15.905).

Ali temos um reflexo do que se acumula em todo o país e que pode, a qualquer momento, estourar em massacres.

Pois bem, é contra isso, contra pressões que podem levar ao desatino de grupos armados, de seus líderes e cães de aluguel, que os agricultores familiares e camponeses do Sul do Brasil anunciam sua disposição de ir para as estradas, de forma pacífica e democrática, já, antes que seja tarde.

A nós, os urbanos de todas as cores, cabe apoiá-los, estar com eles, unindo inconformidades contra a loucura, a maldade e o oportunismo fascista.

 Ir às ruas e às estradas, dizendo não. Não mais, isso não, não senhor, nunca mais.

 Só assim teremos de volta nosso espírito e poderemos reconstruir, com amor e sem ódio, o país que nos roubaram.

 

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko