Rio Grande do Sul

Assistência Social

Dados sobre a população de rua em Porto Alegre estão muito discrepantes, afirma entidade

Redução dos números apresentada pela FASC é contestada pelo grupo “Passa e Repassa”, ligado a universidades gaúchas

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Dados da FASC aponta para diminuição da população de rua em Porto Alegre, mesmo durante a pandemia - Reprodução

No dia 4 de janeiro publicamos uma matéria chamada "População de rua relata um final de ano mais violento que o comum em Porto Alegre". Na ocasião, colhemos relatos de pessoas em situação de rua na região central de Porto Alegre, que afirmaram estarem enfrentando um cotidiano acirrado de agressões.

Para essas pessoas, está em curso um processo de "limpeza social" das ruas do Centro Histórico e do 4° Distrito, após perceberem um aumento das abordagens violentas, sempre com o objetivo de retirá-las dos locais.

Motivada por esses relatos, nossa reportagem foi atrás dos dados sobre essa população, consultado a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) e entidades especializadas no tema. Entre outros pontos, descobrimos que existe uma grande divergência sobre a real situação da população sem teto de Porto Alegre.

Versão da prefeitura é de que existem vagas

De acordo com a FASC, em 2021, o Sistema de Abordagem de Rua conseguiu abordar a totalidade da população nessa condição na cidade. A Fundação passou a trabalhar com a quantidade de aproximadamente 2.500 pessoas em situação de rua.

Ainda segundo a Fundação, em janeiro, haviam 1.091 adultos abrigados em vagas da assistência social, sendo que ainda haviam vagas disponíveis. Os remanescentes, cerca de mais de mil, recusavam as ofertas de acolhimento por motivos próprios, permanecendo nas ruas por espontânea vontade. Portanto, a posição da prefeitura é de que as vagas oferecidas atualmente são suficientes.

Porém, segundo análise do grupo “Passa e Repassa”, existem aproximadamente 1.500 vagas na assistência social do município: os Albergues Dias da Cruz, Renascer, Acolher I e II somam aproximadamente 320 vagas, mais a Casa de Passagem (antigo Abrigo Bom Jesus), os Abrigos Marlene e República, o programa de Auxílio Moradia (650 vagas até 2024) e a Hospedagem Social (entre 250 a 350 vagas até 2024).

Ou seja, dessa forma não haveriam vagas para toda a população de rua da Capital (faltariam mil). Questionada sobre essa discrepância nos números, a FASC reiterou que as vagas são suficientes, pois ainda existem locais disponíveis, uma vez que nem todos aceitam o acolhimento.

Afirmou ainda que, caso houvesse falta de vagas, os contratos para a prestação do serviço seriam expandidos.

Grupo de trabalho contesta os dados

O grupo de trabalho “Passa e Repassa” é fruto de uma parceira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Integrante do grupo, a professora Gabriela Godoy, afirma que existe uma narrativa criada de que a população em situação de rua não vai para os abrigos por vontade própria.

Porém, a análise dos dados de vagas na assistência demonstra que essa conta não fecha. É do Passa e Repassa o levantamento de vagas na assistência social do município que usamos nesta reportagem.

Além de contestar a afirmação de que existem vagas suficientes, o Passa e Repassa acredita que o número de 2.500 pessoas em situação de rua está equivocado.

"Em julho de 2020, a FASC disse haver 2.679 pessoas em situação de rua em Porto Alegre. No início de 2021, a FASC divulgou no Jornal Zero Hora que havia 3.850 pessoas, o que indicaria um aumento de 43%. Posteriormente, em 2021, a FASC passou a trabalhar com o montante de 2.500 pessoas", relata a professora Gabriela.

Ela questiona como seria possível uma diminuição tão drástica nessa quantidade, ainda por cima em plena pandemia. Recorda também que diversas entidades passaram a fazer trabalho voluntário com essa população, sendo unânime o relato do visível aumento do número de pessoas nessa situação.

Esta observação compartilhada foi confirmada através de uma pesquisa amostral, realizada pela Ong Centro Social da Rua (CSR), em julho de 2020. Observado o aumento da população em situação de rua, a referida Ong se propôs fazer um censo, com um levantamento desta população. O acirramento da pandemia não permitiu a realização, sendo implementada somente a pesquisa amostral, com cerca de 800 pessoas em situação de rua atendidas pela CSR. Destas, cerca de 20% havia ido para a rua depois do início da pandemia.

O próprio censo contratado pela FASC e realizado pela UFRGS nos anos anteriores leva a desconfiar que essa população tenha diminuído em plena pandemia.

"Considerando os cadastros e censos [UFRGS/FASC] realizados em Porto Alegre, encontramos os dados que mostram que, entre 2007 e 2012 houve um aumento de 11,9% da população em situação de rua de Porto Alegre. Já entre 2011 e 2016, esse aumento foi bem maior, de 57%", relata a professora Gabriela.

Ou seja, os dados apontados e informações coletadas com entidades indicam que deveria ter havido, na verdade, um aumento considerável dessa população durante a pandemia, e não o contrário.

Para Fasc, diminuição decorre de limpeza nos registros

A prefeitura, através da FASC, vem informando que a diminuição no número de pessoas em situação de rua é consequência de uma limpeza nos registros e prontuários. Porém, segundo a professora Gabriela Godoy, existe uma discrepância nos dados dos diferentes órgãos da prefeitura, como a Secretaria de Saúde e a própria FASC.

Esses diferentes sistemas de registro não são integrados e dificultam a análise e cruzamento de dados, levantando a dúvida sobre a possibilidade de uma limpeza nos registros acontecer de forma tão rápida. Além disso, existem dados não incluídos, como os do Hospital Conceição, por exemplo, que também atende essa população.

"Ante as evidências apontadas, a redução nos números totais de pessoas em situação de rua realizada pela FASC precisa ser revista. Reduzir aleatoriamente vai acarretar a justificativa para a redução da oferta de ações e serviços já insuficientes para essa população", afirma Godoy.

Para a professora, há uma histórica insuficiência de serviços e ações para essa população, o que se acentuou na pandemia. Na sua análise, mesmo tendo aumentado a oferta de serviços por parte do poder público, estas não foram suficientes. Por isso, entende que cabe questionar esses números. Ela destaca a necessidade de saber quantas pessoas há realmente na rua e quantas pessoas chegam regularmente nas ruas para efetivar políticas públicas em quantidade suficiente para essa população.


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Edição: Marcelo Ferreira