Rio Grande do Sul

Coluna

E quem não vacina?

Imagem de perfil do Colunistaesd
"A negação da tecnologia, dos estudos, das pesquisas, nos catapulta de volta a um tempo em que a vida era bem mais breve e sofrida do que agora, no qual as crianças morriam de varíola, catapora, sarampo e tantas outras doenças já evitadas pelas vacinas" - Renato Araújo / Setor de Comunicação MST
Se em pleno Século XXI há quem evite vacina, por acreditar em teorias absurdas, é porque falhamos

O que está acontecendo em relação à imunização coletiva contra a covid-19 é sintoma de uma crise profunda. O Brasil sempre foi exemplo mundial em campanhas de vacinação e nível de adesão das pessoas à essa forma de cuidado coletivo. De repente, diante de uma pandemia que já vitimou mais de 631 mil pessoas e causou adoecimento e, portanto, sofrimento em pelo menos 26,3 milhões, há resistência à imunização.

Logo que a vacina foi disponibilizada, havia como reconhecer alguma razoabilidade na desconfiança. Afinal, tratava-se de uma doença nova e de uma vacina desenvolvida em tempo recorde. Ainda assim, já se sabia que a tecnologia sempre avança veloz, quando há interesse para isso. A necessidade de sobrevivência da raça humana foi determinante.

Hoje, além disso, temos a prova empírica da redução das mortes, como consequência direta da imunização. Daí porque torna-se ainda mais complicado compreender como há tanta negação. É dolorido pensar sobre isso, especialmente para quem perdeu afetos ou sofreu os efeitos do adoecimento. Afinal, esse negacionismo segue matando, provocando esgotamento das profissionais da saúde e permitindo que a tragédia se prolongue no tempo. 

Nos últimos dias, o número de vítimas fatais novamente aumentou, chegando a mais de mil vidas perdidas em 24h. A maioria dessas mortes são de pessoas que não se imunizaram, cerca de 80%, segundo reportagem do Brasil de Fato. Têm também muitas vítimas fatais entre as profissionais da saúde. E não é só a morte que apavora. Essa doença deixa sequelas, inclusive neurológicas. Nunca houve tantas crianças internadas em UTI, por uma única doença. As internações aumentaram quase 10 vezes no Rio de Janeiro.

No Rio Grande do Sul, a alta é de 255%. Já são mais de 100 crianças internadas. E ainda há quem não vacine. Essas pessoas talvez não desejem causar sofrimento, pois expõem a si mesmas e a seus filhos e filhas, em primeiro lugar. De fato, porém, causam muito sofrimento. Jorge Souto Maior, em artigo publicado semana passada, propõe a responsabilização de quem não se vacina, seja através de medidas de restrição, seja pela taxação. Uma leitura necessária, pois uma resposta a essa conduta negacionista revela-se urgente, diante do retorno do crescimento do número de mortes e hospitalizações. Imunizar-se é dever social, que extrapola a esfera dos chamados direitos individuais. Esse é o tema do artigo, cuja leitura recomendo.

Aqui, quero abordar outro aspecto do mesmo problema. Iniciei esse texto referindo que a resistência à vacinação é sintoma de uma crise profunda. Para além da questão sanitária e da construção coletiva de consequências para esse verdadeiro boicote às nossas possibilidades de sobreviver ao vírus, quero convidá-las a pensar sobre essa crise.

Afinal, não se trata de desinformação, nem tampouco de falta de conhecimento acerca desses dados. É de crença que estamos falando. De quem escolhe acreditar que nada disso é real ou, pelo menos, não é sério a ponto de justificar imunização. Pessoas que tomam vacinas desconhecidas para viajar para praias paradisíacas ou destinos alternativos, mas negam a possibilidade de evitar o contágio e a contaminação por coronavírus. Seria relativamente fácil explicar esse fenômeno a partir de uma análise subjetiva de personalidades narcisistas ou perversas. Ou atribui-la ao fato de que temos governantes que professam e praticam atitudes negacionistas. Mas não é tão simples. 

Quem não vacina costuma referir-se a essa prática como expressão de sua liberdade individual. E a escolha se dá, muitos dizem, porque não acreditam na eficácia do imunizante. Não adiantam os números, as notícias de pessoas próximas que, por estarem vacinadas, não se contaminam ou conseguem enfrentar a doença com mais facilidade. Nada as convence. A verdade é aquela que constroem para si, auxiliadas por redes sociais que replicam apenas os mesmos discursos. Pois bem, a atribuição de novo conteúdo à verdade e mesmo à ideia que temos de ciência está intimamente ligada ao movimento de consolidação do capitalismo. Também naquele momento histórico, de forma complexa e não imediata, houve uma profunda reformulação dos conceitos de propriedade privada e contrato, igualdade e liberdade, ciência e cultura, verdade e mentira. O novo discurso fundou-se na retórica de que todos somos contratantes, livres, iguais e proprietárias da nossa força de trabalho. Como refere Hannah Arendt, trata-se de uma construção teórica, que serviu ao convencimento e determinou nossa aposta nessa nova ordem. Portanto, trata-se de crença. 

Com novas noções de liberdade e igualdade, estruturou-se um modo de convívio em que poucas pessoas conseguem acumular patrimônio e fazer escolhas reais, enquanto a maioria será livre para morrer de fome ou trabalhar, no mínimo 8h por dia, para conseguir dinheiro para morar, comer, vestir ou tratar a saúde. Como não há emprego para todas e nem todas nascem com condições de troca, muitas, um número cada vez maior delas, viverá na miséria, mas será constantemente convocada a exercer sua liberdade. Será lembrada da importância da igualdade, mesmo sendo confrontada cotidianamente com o fato de que são sempre os mesmos corpos a serem sacrificados. Aprenderá a ver os outros como inimigos, competidores. A tomar posse, usufruir e destruir os seres não humanos. Se esforçará para acreditar que será o mérito, e não a forma de distribuição e circulação das riquezas, seu gênero ou a cor da sua pele, o que lhe impedirá de atingir ou lhe garantirá o topo da hierarquia social.

Por mais que se tenha buscado minimizar a realidade desigual e assujeitadora, criando novos discursos dentro dessa mesma ordem, como o dos direitos sociais ou o da igualdade substancial, o fato é que nada disso se sustenta. A igualdade sequer deveria ser um conceito central, nem dela precisaríamos, se houvesse respeito às diferenças, a partir da compreensão de que conviver com todos os seres, em suas singularidades, é condição para reconhecer nosso destino compartilhado e para atuar desde a perspectiva da preservação. Do mesmo modo, o que compreendemos como direitos individuais, uma categoria criada para garantir contra arbitrariedades totalitárias, é parte desse engodo.

Se nossos corpos interagem, afetando outros corpos, o que fazemos como indivíduos interessa e implica toda a comunidade de seres humanos e não humanos. No caso da vacinação isso fica muito claro. Quem não vacina está promovendo a morte e o adoecimento, está provocando o esgotamento do sistema de saúde, está permitindo e estimulando a mutação genética do vírus. Não há como sustentar se tratar de uma escolha individual, fruto da suposta liberdade que conquistamos. Tampouco é possível atribuir a um sujeito, por mais emblemática que seja a perversidade de sua atuação, a responsabilidade por essa distopia.

Não só porque esse sujeito foi eleito por mais de 57 milhões de votos, segue sustentado por quase 20% da opinião pública, conta com a deliberada omissão do Parlamento em relação a centenas de pedidos de impeachment ou tem respaldo, inclusive do Judiciário, em suas ações e omissões, mantendo-se no poder. Não é possível atribuir-lhe a causa do negacionismo, porque sua conduta não é mais do que a explicitação de uma racionalidade que ruiu, de um pacto que não se sustenta mais, porque fundado em uma forma de convívio social que se esgotou. É claro que isso não o isenta de responsabilidade. Apenas implica a necessidade de pensarmos o negacionismo sob uma perspectiva estrutural.

Se em pleno Século XXI há quem evite vacina, por acreditar em teorias absurdas ou apenas rejeitar a realidade, e vê essa conduta reproduzida por representantes eleitos, é porque falhamos em nossa aposta. Não porque a ciência (fruto de pesquisas, estudos e experimentos) não funcione. Mas porque tudo passou a ser chamado de ciência, até o que é cultura, jogo de poder, como o Direito. Porque não há liberdade real. A maioria de nós está em sofrimento, lutando diariamente para sobreviver em uma realidade que a cada dia perde mais seu sentido. Não há igualdade. São sempre os mesmos corpos a morrerem, a serem sacrificados, para que outros, poucos, sigam vampirizando energia, recursos, vida. É porque não há mais como disfarçar as falhas desse discurso. 

A insuportabilidade dessa cisão entre a vivência e o discurso é um dos elementos que conduz à negação. Em vez de enfrentar, o que muitas pessoas fazem é fugir. Esconder-se em simulacros de realidade, nos quais não é preciso encarar o fato de que nos tornamos, como espécie, uma verdadeira máquina de destruição. O efeito é perturbador. A negação da tecnologia, dos estudos, das pesquisas, nos catapulta de volta a um tempo em que a vida era bem mais breve e sofrida do que agora, no qual as crianças morriam de varíola, catapora, sarampo e tantas outras doenças já evitadas pelas vacinas. De forma paradoxal, é o desvelamento da irracionalidade da razão moderna, evidenciando o esgotamento de um modelo de convivência que nos levará para o abismo. E, exatamente por isso, é também uma oportunidade para encararmos os fatos.

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko